No interregno de duas semanas, os alcaides de São Paulo e do Rio de Janeiro, respectivamente Bruno Covas e Marcelo Crivella, repetiram exaustivamente a ladainha tão conhecida das populações pelas quais teriam de zelar – por dever político do cargo público que ocupam e por dever ético do dinheiro público que recebem. Diante dos aguaceiros que vêm inundando as duas cidades, sobretudo o Rio de Janeiro, mas em ambas causando mortes e destruição, os prefeitos se valeram da justificativa padrão: “em um dia choveu o que estava previsto para todo o mês”. Crivella sofisticou: “foi uma chuva atípica”. Entra estação de chuva e sai estação de chuva, as desculpas mofadas das autoridades, que assistem às catástrofes pela televisão ou sobrevoam de helicóptero os escombros depois que tudo acalmou, são sempre as mesmas. Em meio a esse caos, vale a colocação: srs. alcaides, os srs. têm acompanhado os estudos da ONU a explicar que o clima está mudando? Os srs. já ouviram falar em aquecimento global?

É importante ressalvar que a explicação que coloca em um dia o índice pluviométrico de um mês e a “atipicidade” crivellana não foram criadas agora, se interpretadas como emblemas de um secular desleixo geral com a população. O aviador, médico, cafeicultor e empresário Ademar de Barros costumava tirá-la da caixinha quando foi interventor federal em São Paulo (1938 a 1941) e também quando se tornou prefeito pelo voto popular (1957 a 1961). Podem também ser citados Anthony Garotinho, ao ser prefeito de sua terra natal, Campo dos Goytacazes (1997-1992); e Leonel Brizola, na época em que comandou Porto alegre (1956 a 1958). A lorota vem de longe mas os administradores dão de ombros. Para nos fixarmos nas tragédias no Rio de Janeiro, em 1575 o padre José de Anchieta cobrava providências: “choveu tanto que se encheu e rebentaram as fontes”. O escritor Machado de Assis remonta diversas vezes em seus livros às enchentes que destruíram em 1811 o Morro do Castelo: “ o dilúvio que uniu a cidade ao mar”. E há as chuvas de 1966 que mataram duzentas pessoas.

É bom avisar aos navegantes que não se molham: o tempo está mudando e países se reúnem em conferências para discutir o clima. Srs. alcaides, o clima está piorando, já se deram conta? As colotas polares estão derretendo. As águas dos mares estão diversificando a cor, partes muito verdes de oceanos não guardam nada de romântica beleza mas traduzem, isso sim, a demasiada absorção de calor devido ao aquecimento global. Lembram-se da camada de ozônio? Hein?! Já leram os estudos que tratam da força crescente dos tufões e e dos tsunamis? Tudo isso clareia a importância da prevenção, que Crivella negligenciou: ele não investiu nem uma moeda em drenagem e contenção de encostas em 2019. E Crivella sabe que, tão certo como o carnaval cai no verão, também a chuvarada cai nessa estação e até meados do outono.

Crivella pediu desculpa. Suas palavras valem tanto quanto uma gota d’água em meio ao temporal. Suas palavras são da boca de lobo para fora

É nesse ponto, no descaso da função pública, que nasce a revolta das vítimas que perdem do sofá à vida de filhos, da cama ao microondas novinho, da televisão à casa que se suou a vida inteira para construir. Bate a desesperança nessa gente que vê o presente e intui o futuro carregados por enxurradas. Já que tanto se fala, ano a ano, sobre a “atipicidade” das águas, não seria melhor cuidar da prevenção do que remendar a situação após as tragédias? Basta investir no básico: construir “piscinões”, desentupir bueiros e esgotos no período de estiagem, cortar e podar árvores que correm risco de queda, verificar estruturas de viadutos, reforçar bloqueios de contenção em áreas de deslizamento. Ao invés disso, preferem os alcaides atuarem depois que o mundo desaba e as suas gestões, a rigor, são gestões de gabinetes de crises. O temporal no Rio de Janeiro submergiu bairros inteiros, casas se tornaram cachoeiras, pedras rolaram esmagando casas, casas esmagadas esmagaram gente. Do asfalto brotaram fatais chafarizes.

O que se viu vai além do que se chama calamidade. E, mais uma vez, a culpa foi jogada no clima. O número de mortos foi subindo ao longo da terça-feira 9: eram quatro, depois cinco e, logo em seguida, seis. Aí vieram as notícias de sete, de oito, de nove, de dez mortes… É criminosa a gestão que não previne e não protege. E aí apareceu Crivella numa autocrítica, que vale tanto quanto uma gota d’água numa tempestade. Sr. alcaide, a defesa civil avisou dos riscos vinte e quatro horas antes. Por que o sr. não fez nada? São duzentos os homens que podem entrar em ação de salvamento, por que o sr. disponibilizou apenas vinte? Não, alcaide Crivella, seu pedido de desculpa e sua autocrítica são da boca de lobo para fora. É “tudo encenação”, “teatralidade” como ensinou o escritor Lima Barreto em seu livro “Os bruzundangas”, de 1923 (edição póstuma). “Não fomos prudentes”, diz agora Crivella. Só rindo. Rindo dele e chorando pelos que ensandeceram e pelos que boiaram frios e rijos e inertes nas águas sujas e fétidas. Sr. alcaide “imprudente”, por que sirenes em algumas favelas ficaram mudas, como ocorreu no Morro da Babilônia? Por que caminhões desobstrutores de ruas ficaram estacionados? Por que a comporta na Lagoa não foi imediatamente aberta?

Há um fato que parece mentira, de tão absurdo que é. A ciclovia Tim Maia, na Avenida Niemeyer, desabou pela quarta vez. Quarta vez! A ciclovia, que custou R$ 45 milhões, é antiga? Não, foi construída para os Jogos Olímpicos, está-se falando de 2016. Quarta vez! E alguma providência será tomada? Não, claro que não. Bela obra! Os últimos dias mostraram no Rio que transbordou a cabal incompetência e o total descaso das autoridades. A ex-cidade maravilhosa foi sucateada pela corrupção de seus gestores em diversos patamares das gestões públicas. É fato que choveu em média trezentos milímetros em um dia, mas isso não serve de desculpa, o volume só reforça a negligência de quem deveria ter atuado na prevenção. Aproveita que está chovendo e vai para casa, sr. Crivella, até porque o seu impeachment está vindo. Vai para casa! Queremos que os cariocas se vejam livres de prefeitos que adotam o bordão de que a natureza é culpada porque faz cair mais água do que eles queriam que caísse do céu.