SÉRGIO BUARQUE Autor de Raízes do Brasil: as elites deturparam o “cordalis”, termo emprestado do poeta Rubén Dario (Crédito:ARQUIVO PESSOAL)

Raízes do Brasil é um dos nossos principais clássicos da sociologia, escrito originalmente como ensaio pelo historiador Sergio Buarque de Holanda e publicado em 1936. Trata-se de uma das mais amplas interpretações da complexa formação do tecido social brasileiro, a partir do conceito do “homem cordial” — termo que o autor tomou emprestado do poeta nicaraguense Rubén Dario e, como bem afirmou o sociólogo e crítico literário Antonio Candido, deu a ele “fundamento sociológico”.

Entre o sentido da poesia e o sentido das ciências sociais, é importante ressaltar que o “cordial” refere-se à expressão “cordalis”, radical latino relativo ao coração e à passionalidade. Essa explicação é vital para se chegar ao esclarecimento de dois lastimáveis pontos que mancham de sangue nosso chão: o crescente índice de assassinato de negros decorrente do racismo, e por qual razão tal racismo não tem fim.

O “homem cordial”, formulado por Sérgio Buarque, nada tem a ver com as características de homem bem-educado, gentil e hospitaleiro com as quais é quase sempre erroneamente associado. O “homem cordial” quer dizer, isso sim, que o “senhor da casa grande”, a contar da escravatura do “negro da senzala” (e aqui a escravatura foi uma das mais violentas do mundo), engendrou o brasileiro passional (“cordial”) que age, sobretudo, pela emoção — pode explodir em alegria (por exemplo, o grito de gol), ou pode explodir em violência (os recentes e selvagens assassinatos, no Rio de Janeiro, do negro Moïse Kabagambe, congolês que trabalhava em quiosque de praia, e do também negro Durval Teófilo Filho, funcionário de supermercado). Não é diferente com as reincidentes ofensas dirigidas a jogadores de futebol pretos, igual ocorreu com Gabigol. E o que impede que o Brasil se livre dessa chaga, dessa ferida supurada? O que impede que o racismo estrutural tenha fim em nossa sociedade e ela se faça de fato democrática? O que impede que se transforme em uma sociedade “cordalis” para a delicadeza e não para o embrutecimento? A resposta parece complexa, mas é simples.

JOSÉ VICENTE Fórmula para banir o racismo: a existência de Justiça no País (Crédito:Claudio Gatti)

A interpretação equivocada do “homem cordial” gestou e deu a luz ao autoritário, falso e demagógico mito da democracia racial. Tal mito, como ensinou o sociólogo Florestan Fernandes, impossibilita que o Brasil reconheça o seu próprio preconceito: “o País tem preconceito de ter preconceito”, dizia ele, e disso decorre, moto-contínuo, a negação permanente da vocação de parte da sociedade para a discriminação de etnias — o negacionismo varre para debaixo do tapete a discussão sobre a permanência da discriminação. Trata-se de um fenômeno social, e assim escreveu a pensadora e filósofa francesa Simone de Beauvoir: “ninguém nasce racista, torna-se racista”. O racismo persiste no Brasil porque as elites não o discutem abertamente e com frequência. Nesse ponto reside a importância da divulgação jornalística dos hediondos crimes raciais. Explica-se, igualmente, a importância dos movimentos que lutam contra a criminosa arrogância herdada da casa grande. Mas, para extirpar-se o racismo, o Brasil, enquanto Estado e sociedade, deve, em primeiro lugar, admitir que não é republicano na questão étnica. “Olhar nos olhos da tragédia é dominá-la”, disse o dramaturgo Oduvaldo Vianna Filho em sua monumental peça Rasga Coração. O que desvia o olhar do trágico, no caso, é a construção teórica do mito da igualdade racial, mito nascido do equivocado entendimento do conceito do “homem cordial”. Sérgio Buarque foi distorcido ao sabor da má intenção de parte das elites do País que faz com que os conceitos de “homem cordial” e “democracia racial” camuflem o preconceito. Chega! É hora de mudar. Se não agora, quando? Basta do som de ossos quebrados, basta do som de tiros no escuro.

O conceito de “homem cordial” não significa ser gentil. Traduz-se, isso sim, por passionalidade: o brasileiro explode em alegria (grito de gol) e explode em violência (mata por preconceito)

SIMONE DE BEAUVOIR A filósofa francesa deu uma lição definitiva: “não nascemos racistas, tornamo-nos racistas” (Crédito:Jacques Pavlovsky)

“A abolição da escravatura terminou com a tortura do negro, mas o racismo persiste. Acabou na norma, continua de fato”, explica o sociólogo da UFRJ Muniz Sodré. “Hoje ele é institucional, se dá no interior da escola, da faculdade, do trabalho, da família”. Da fala de Sodré se depreende que, se na época da escravatura a dominação era física e mental, “hoje tal dominação se reveste de exclusão e hierarquização social”. Existe racismo no Brasil, seja estrutural ou institucional, porque a abolição, atendendo a interesses políticos e econômicos, não transformou o negro escravizado em cidadão. Para colocar fim a essa cruel realidade, é necessário, na avaliação do historiador Marco Antonio Villa, “um processo longo e difícil”. Mais: “é imprescindível a adoção de políticas públicas e a adoção de um novo enfoque na educação”. O professor José Vicente, reitor da Universidade Zumbi dos Palmares, coloca seu corpo e sua alma no lugar do corpo e da alma dos torturados e assassinados: “o racismo terminará quando houver Justiça”.