Todos os anos, uma festa realizada no Kennedy Center, em Washington, premia os artistas que mais se destacaram na cena musical. O evento não seria nada se não fosse a presença obrigatória do presidente dos Estados Unidos. Quando foram instados a participar, Jimmy Carter, Ronald Reagan, George H. W. Bush, Bill Clinton e George W. Bush, além das respectivas acompanhantes, nunca demonstraram nada além de tédio calculado. Com Barack e Michelle Obama a história foi diferente. Em 2013, na homenagem ao guitarrista mexicano Santana, Obama cantou, a plenos pulmões, “Black Magic Woman”, um dos clássicos do artista. Ele caprichou no refrão “I got a black magic woman, Got me so blind I can’t see” (“Eu arranjei uma feiticeira, Ela me deixou tão cego que eu não posso ver”), enquanto evidentemente paquerava Michelle, sentada bem ao seu lado. Em 2015, no espetacular tributo a Led Zeppelin, Obama e Michelle empurraram o queixo para a frente, sacudiram a cabeça e, de olhos fechados, acompanharam os riffs alucinantes de Jimmy Page, como fariam roqueiros de qualquer parte do mundo. As cenas descritas acima (se você não viu, dê uma espiada no YouTube), revelam uma das faces mais bacanas do casal mais charmoso que o poder produziu nos últimos anos. Obama e Michele, apesar da posição que ocupam, comportam-se como simples mortais. No próximo dia 20 de janeiro, eles saem de cena para dar lugar a Donald e Melania Trump. Eles não poderiam ser mais diferentes. Os Obama são sensíveis, tolerantes, íntegros, bem-humorados, carismáticos. Os Trumps, irascíveis, afetados, superficiais, belicosos, inclementes. O que será do mundo sem Obama e Michelle?

Uma das medidas da decência de um político é conhecer a sua ficha pregressa. Obama passou oito anos à frente da maior potência global sem se envolver em um único episódio de corrupção, algo tão incomum quanto improvável na devassidão brasileira. “O presidente Obama não foi atingido por escândalos éticos, o que é bastante raro até para os padrões americanos”, diz Martin Cohen, analista político da Universidade de Nova York. Ele pode até ter falhado em diversos aspectos, como efetivamente falhou, mas ninguém tem o direito de acusá-lo de lesar o país ou de ter atuado em benefício próprio, característica afeita ao ambiente político. Obama, ao contrário, trabalhou para a sociedade americana. Acertou muito e errou inúmeras vezes, mas a marca pessoal que deixará é a da integridade. Por muitas razões, merece ser chamado de “estadista”, palavra em desuso pela falta de candidatos a justificá-la.

Que outro político de presença global inspirou gerações? Que líder tem o carimbo da retidão estampado em seu rosto? Não à toa, ele deixará o governo com 54% dos americanos aprovando a sua gestão, índice bem acima dos 29% registrados por seu antecessor, George W. Bush. Longe dos Estados Unidos, a imagem de Obama é ainda mais positiva. Segundo o instituto Pew Research Center, 75% dos alemães, britânicos, espanhóis e franceses confiam em Obama, taxa que se manteve estável durante todo o seu mandato. Se ele é tão popular, por que não conseguiu eleger a democrata Hillary Clinton? “Em primeiro lugar, porque os Estados Unidos se revelaram um país dividido”, diz o analista Martin Cohen. “Em segundo, porque Obama falhou em atender a uma parcela expressiva da população, a classe operária que não surfou na onda da globalização”. O especialista completa: “Em terceiro, porque Hillary se revelou uma candidata fraca.”

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Em 8 anos de governo, Obama não se envolveu em escândalos, o que é raro até para os padrões americanos

RETOMADA DA ECONOMIA

A despeito da vitória de Trump, Obama deixará um legado consistente. No ambiente interno, sua maior contribuição foi a retomada da economia. Ela se deu no começo de seu mandato, e por isso muitos apagaram da memória o que o país viveu antes de ele assumir. Com a crise de 2008, bancos quebraram, a indústria automobilística patinou, o setor imobiliário ruiu, Wall Street gerou perdas bilionárias da noite para o dia. Obama não só socorreu as empresas em vias de desaparecer, com um bem-sucedido plano de resgate de US$ 20 bilhões, como restaurou a confiança em uma nação sem rumo (qualquer comparação com o Brasil não é mera coincidência). Resultado: além de debelar a crise e fazer o PIB voltar a crescer (a recessão de 3% virou 56avanço de 2%), Obama reduziu o desemprego pela metade, um milagre que os americanos de bom senso não esqueceram.

Ele foi um presidente sintonizado com os novos tempos, e talvez esteja aí a sua maior contribuição para a sociedade americana. Seu engajamento em causas humanitárias resultou no Nobel da Paz em 2009, prêmio que antecipou o que viria a ser o seu segundo mandato. Graças à defesa de imigrantes, pobres e oprimidos (o oposto, portanto, de tudo o que Trump prega), Obama entrará para a história como o primeiro grande líder global pró-minorias. Seus discursos marcantes contra o machismo e a homofobia surpreenderam não apenas pelo tom incisivo, mas por culminarem em ações concretas. Em junho de 2016, legalizou o casamento gay em todo país, e decidiu que o assunto deveria fazer parte de sua política externa, chegando até a nomear um diplomata para defender a causa. “Nos direitos civis, Obama promoveu uma revolução no país”, diz Randy Berry, ex-Cônsul Geral dos Estados Unidos em Amsterdã e que ocupou o cargo de Enviado Especial para Direitos Humanos do governo Obama. “Ele foi uma liderança muito forte nas questões humanas. Temo agora um retrocesso na gestão Trump.”

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Os avanços sociais foram mais significativos na área de saúde. Uma de suas bandeiras, o Obamacare, permitiu que 20 milhões de desassistidos tivessem acesso à rede médica de atendimento. Como consequência direta do Obamacare, a taxa de adultos sem seguro de saúde caiu de 17,3% em 2013 para 10,8% em 2016. “O princípio subjacente da reforma, a ideia de que os cuidados deverem ser estendidos a todos, como um direito de cidadania e não como um privilégio para poucos com dinheiro, ganhou muita aprovação no país, especialmente entre os jovens”, diz o professor Anthony Pereira, do King’s College London.

Para Rubens Barbosa, ex-embaixador do Brasil em Washington, os principais legados estão na política externa. “Dentro de uma perspectiva histórica, Obama vai ser considerado um dos maiores presidentes americanos”, afirma o diplomata. Barbosa elenca os avanços dos últimos anos. “Ele restabeleceu relações com Cuba, fez o acordo nuclear com o Irã, assinou o acordo do clima de Paris e negociou o Tratado Transpacífico, que é muito importante para o interesse das empresas do país.” O especialista ainda destaca outro ponto essencial, mas que corre risco sob Trump. “Obama regulamentou a questão das armas, tornando mais difícil a compra delas.” Antes dele, nenhum presidente teve coragem de encarar uma questão sensível para os americanos.

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O Obamacare, programa de sáude de seu governo, permitiu que 20 milhões de desassistidos tivessem acesso à rede de atendimento

ATAQUES COM DRONES

Apesar das conquistas, não seria correto ignorar os deslizes de seu governo. Há uma corrente que considera o legado Obama questionável. Ele fez o melhor que podia? Segundo Noam Chomsky, um dos intelectuais americanos mais polêmicos, a resposta é não. Prova disso seria o programa de drones militares, definido por Chomsky como “a mais extrema campanha terrorista dos tempos modernos.” Segundo dados da própria Casa Branca, entre 2009 e 2015 cerca de 120 civis morreram em decorrência de ataques aéreos não-tripulados em países como Iêmen e Paquistão. Para a organização britânica de direitos humanos Reprieve, o número é bem maior, com pelo menos 1.147 vidas perdidas apenas no Paquistão. “Milhares de inocentes foram mortos por essa política bélica”, diz o historiador americano Paul Street, autor de um aclamado livro sobre a era Obama. Segundo Street, o primeiro negro a chefiar o país também foi incapaz de refrear as tensões raciais. “A simples presença de Obama na presidência reforçou a falsa crença de que o racismo não é mais uma barreira”, diz Street. “Os brancos pensaram algo como: ‘o presidente é negro e isso prova que não existe racismo nos Estados Unidos. Então, que não se fale mais nisso.’”

Os principais acertos
As realizações que fizeram do governo Obama um dos mais efetivos da história americana recente

Obama não acertou em tudo. Ele falhou no combate ao terrorismo ao deixar o Estado Islâmico expandir suas bases

O presidente também fracassou no combate ao terror. Em 2011, a morte de Osama Bin Laden apresentava-se como um dos marcos da política de combate ao terrorismo de Obama. Mas o desaparecimento de Bin Laden não ceifou a violência. Com o fim da Guerra do Iraque, em dezembro de 2011, os Estados Unidos começaram a retirar tropas do país, o que acabou por comprometer a transição. Sem a presença americana, novos grupos terroristas se organizaram. Entre eles, o temível Estado Islâmico, que viu em um país fragmentado e ferido pela guerra a oportunidade de se estabelecer. Desde então, Obama foi incapaz de impedir o avanço da organização, embora os ataques tenham sido mais frequentes na Europa do que nos Estados Unidos. A política hesitante de Obama também naufragou na Síria, alimentando uma guerra civil que produziu, nos últimos 5 anos, cerca de meio milhão de mortos.

No balanço entre erros e acertos, a verdade é que o casal Obama deixa a Casa Branca com um saldo positivo para os Estados Unidos e o mundo. Acredite: eles vão fazer muita falta.

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