Outro dia, depois de uma brincadeira para escalar o time de futebol com os melhores jogadores de todos os tempos, desafiei alguns amigos para indicarem coleções ou museus impressionantes localizados fora da Europa. Surgiram os nomes de sempre, como MoMA, MET e Guggenheim. Sem dúvida, esses museus são sensacionais, mas há sempre novas descobertas para quem gosta de arte.

Os mais céticos podem não acreditar, mas na Filadélfia (Estados Unidos) existe um local que reúne 181 obras de Pierre-Auguste Renoir, 69 pinturas de Paul Cézanne, 59 de Henri Matisse, 46 de Pablo Picasso, 21 de Chaïm Soutine, 18 de Henri Rousseau, 16 de Amedeo Modigliani, 11 de Edgar Degas, 11 de Giorgio de Chirico, 7 de Vincent van Gogh e 6 de Georges Seurat. Esse local dos sonhos se chama Barnes Foundation.

A fundação tem um acervo de milhares de obras, incluindo, também, Peter Paul Rubens, Ticiano , Paul Gauguin, El Greco, Francisco Goya , Édouard Manet, Jean Hugo, Claude Monet, Jacques Lipchitz, Maurice Utrillo, William Glackens, Charles Demuth, Roger de La Fresnaye, Horace Pippin, Jules Pascin e Maurice Prendergast, além de obras africanas, arte egípcia antiga, grega e romana.

Definitivamente, com todo esse arsenal, pode-se dizer que a Barnes Foundation tem uma das maiores coleções do mundo de pinturas impressionistas, pós-impressionistas e modernas, com acervos altamente representativos de Renoir, Cézanne, Matisse e Picasso, entre vários outros artistas mundialmente conhecidos.

No princípio dos anos 90, foi nessa fundação que comecei a fotografar obras de arte e suas legendas. O hábito, que me acompanha até hoje, começou com um impulso: não acreditava no que estava vendo. Parecia um sonho ver aquela quantidade de obras, reunidas em uma única coleção. A cada passo me deparava com dezenas de obras que me hipnotizavam, em uma jornada infinita de descobertas. Definitivamente, no minuto em que você entra nas galerias da coleção Barnes, já sabe que terá uma experiência artística inenarrável.

Foi também nos corredores da Barnes Foundation que a arte me deu uma das maiores lições da minha vida. Fiquei atônita ao ver “Nu Reclinado (Reclining Nude), obra de Vincent van Gogh produzida de janeiro a março de 1887. Trata-se de um dos poucos quadros de nu produzidos pelo artista. A obra mostra um corpo feminino e faz uma curiosa mistura de fascínio e repulsa. A mulher retratada tem o quadril muito curvo, os seios assimétricos e os olhos estão fechados para transmitir sensualidade. Seu corpo tem pelos em excesso e o rosto é bem estranho, com características ásperas que certamente desafiam todas as convenções de beleza do século XIX.

Para muitos, a obra de Vincent van Gogh é uma verdadeira aberração. Para mim é o maior exemplo de que as pessoas só crescem errando. Talvez se ele, como pintor autodidata, não tivesse se desafiado para pintar uma mulher nua, certamente não teríamos outras obras primas como as que ele brilhantemente produziu. Essa pintura de nu feminino mostra que o pintor ainda estava tentando se posicionar, na procura de estilo artístico marcante. Mesmo que de forma prematura, seu traço inconfundível e suas pinceladas fortes já estão surgem nessa pintura, produzida apenas dois anos antes de “A Noite Estrelada”, que é uma das obras mais famosas e mais conhecidas do mundo.

Para mim, portanto, “Nu Reclinado (Reclining Nude)”, de Vincent van Gogh que ilustra esta coluna, representa uma das maiores descobertas da minha vida. A pintura transmite a grande lição de que sempre precisamos continuar praticando para nos aperfeiçoarmos. Só quem é artista sabe a dificuldade que é ter um terceiro ou um crítico de arte questionando (e muitas vezes detonando) seu trabalho. A jornada de evolução é sempre difícil, com avanços e tombos, mas os grandes artistas não desistem, superam as críticas, conseguem se reinventar e seguir rumo ao seu propósito na arte.

Vale comentar também que essa obra faz parte da coleção da Bernes Foundation, iniciada em 1912 pelo Dr. Albert C. Barnes depois de fazer fortuna no ramo farmacêutico. Sua atenção e seu dinheiro foram direcionados para a compra de artes. Com um gosto apurado e a ajuda de seu amigo, o artista plástico William Glackens, trouxe logo de cara de Paris 33 das melhores principais pinturas de vanguarda da época que ele encontrou na Europa. Incorporou nesse lote inicial obras emblemáticas como “O Carteiro”, um dos quadros mais famosos de van Gogh (1889) e “Mulher Jovem Segurando um Cigarro”, obra prima de Picasso (1901).

O Dr. Barnes rapidamente se estabeleceu como um colecionador ousado e ambicioso, viajando frequentemente para Nova York e para Paris no intuito de negociar obras diretamente de artistas. Ao longo de quatro décadas, ele conseguiu criar o que hoje é considerada uma das maiores coleções do mundo de pinturas impressionistas, pós-impressionistas e dos primeiros tempos modernos europeus, com obras de Paul Cézanne, Henri Matisse, Pablo Picasso, Amedeo Modigliani, Pierre-Auguste Renoir e Chaïm Soutine.

Depois deste lote inicial de 33 pinturas, continuou comprando obras em ritmo acelerado. O curioso é que até hoje na fundação as obras-primas de Vincent van Gogh, Henri Matisse e Pablo Picasso estão penduradas ao lado de objetos domésticos comuns, como uma espátula ou uma dobradiça de porta. Essa mistura era uma de suas manias, assim como reunir “conjuntos de arte bem diferentes”. A integração de objetos e pinturas tornou-se uma ferramenta de ensino, essencial para o programa educacional que ele desenvolveu na década de 1920.

Em 1922, o Dr. Barnes fundou a Fundação como uma instituição educacional para ensinar as pessoas a admirarem obras de arte. Ele se inspirou nos escritos do filósofo John Dewey, que enfatizou a importância da educação em uma sociedade verdadeiramente democrática. Depois das pinturas, Dr. Barnes continuou construindo sua coleção com máscaras e esculturas africanas, cerâmicas, joias, tecidos de índios americanos, pinturas de antigos mestres, arte egípcia antiga, grega e romana, além de artes decorativas e industriais americanas e europeias.

Interessante saber que Dr. Barnes, que virou um dos maiores colecionadores de arte do mundo, era de uma família de classe média. Virou médico por ser bom aluno, mas direcionou sua carreira para a farmacologia, onde fez fortuna por inventar com um colega um antisséptico. Em 1912, aos 40 anos, ele começou a comprar pinturas modernas com a ajuda de seu amigo de infância William Glackens. Acreditava que a educação era fundamental para a democracia e dava aulas de apreciação de arte em sua fábrica. Sensacional saber que diariamente, por duas horas, a produção de sua empresa parava para os seus trabalhadores discutirem pintura e filosofia. Ele era também a favor da inclusão. Contratava mulheres e negros.

A coluna de hoje é dedicada à memória de Dr. Barnes. Assim como ele, eu acredito que a arte tem o poder de melhorar mentes e de transformar vidas. Alguém duvida? Se desejar saber mais sobre um artista ou se tiver uma boa história sobre arte para me contar, aguardo contato pelo Instagram Keka Consiglio, Facebook ou Twitter.