O que sustenta e o que refuta a tese de que militares não sustentaram trama golpista

Marco Antônio Freire Gomes
Marco Antônio Freire Gomes (à direita) e o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) Foto: Reprodução

As denúncias apresentadas pela PGR (Procuradoria-Geral da República) contra Jair Bolsonaro (PL) e 33 aliados por planejar um golpe de Estado com o objetivo frustrado de impedir a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) após as eleições de 2022 implicaram diretamente as Forças Armadas.

Há 24 oficiais da ativa ou reserva do Exército e da Marinha (não há integrantes da Aeronáutica) entre os denunciados pelo procurador Paulo Gonet, em lista que inclui um almirante de esquadra e seis generais, patentes elevadas da carreira militar.

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Em posição de maior destaque pela ascendência na caserna, estão os generais da reserva Walter Braga Netto Paulo Sérgio Nogueira, ministros da Defesa — chefes das F.A., portanto — no governo Bolsonaro, o almirante de esquadra Almir Garnier Santos, ex-comandante da Marinha, e Augusto Heleno, general da reserva com longa trajetória de poder no Exército.

A tese da distância

Mesmo com o porte dos personagens, Gonet expressou na denúncia que as instituições militares não se engajaram na intentona golpista: “O próprio Exército foi vítima da conspirata. A sua participação no golpe foi objeto de constante procura e provocação por parte dos denunciados. Os oficiais generais que resistiram às instâncias dos sediciosos sofreram sistemática e insidiosa campanha pública de ataques pessoais, que foram dirigidos até mesmo a familiares”.

Em linhas gerais, o procurador baseou sua tese em apurações da Polícia Federal que revelaram as recusas do general Marco Antônio Freire Gomes e do tenente-brigadeiro Baptista Júnior, à frente de Exército e Aeronáutica em 2022, a aderir ao plano sugerido. Denunciado pela PGR, por sua vez, Garnier colocou a Marinha à disposição da ruptura.

Sem a anuência de 2/3 da chefia da caserna e mais próximos do fim do mandato de Bolsonaro, militares, assessores e mesmo um comentarista de rádio elevaram a pressão para que o Alto Comando das Forças Armadas embarcasse na trama.

Em dezembro de 2022, às vésperas da diplomação de Lula, Braga Netto, candidato derrotado a vice de Bolsonaro, chamou de “omissa” a postura de Freire Gomes e sugeriu “oferecer a cabeça dele” em mensagens obtidas pela PF. Familiares do general foram ofendidos nas redes sociais, em um braço público da estratégia dos denunciados. O tom deixava iminente que a adesão do chefe do Exército era imprescindível para a trama.

Em delação premiada, o tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro e também denunciado pela PGR, disse aos policiais que a elite fardada recusou o golpismo. Segundo o delator, o ministro Paulo Sérgio Nogueira foi “pressionado” por Bolsonaro a usar um relatório militar para apontar fraude nas urnas, mas não cedeu. “Uma coisa que eu sempre falei é que, por mais que a busca foi [tenha sido] incessante, não foi encontrada fraude nas urnas e o Exército não iria apoiar [o golpe]”, declarou.

“Cid está na ativa e tem preocupações com a própria carreira ao preservar superiores. Ainda que o espírito de corpo seja importante para o exercício militar, há nas Forças Armadas brasileiras um corporativismo muito problemático“, disse à IstoÉ Lucas Pereira Rezende, professor do departamento de ciência política da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e diretor de publicações da Revista Brasileira de Estudos da Defesa.

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O Procurador-geral da República, Paulo Gonet, entendeu que as Forças Armadas não se mobilizaram pela trama golpista

À luz da delação e das investigações subsequentes, Gonet considerou que a cúpula golpista atuou às margens do Alto Comando e “pretendia sensibilizar as Forças Armadas, sobretudo o Exército, e as suas autoridades de mais alta patente“.

“Oficiais do Exército, auxiliares de Comandantes de Regiões e de setores estratégicos, que tinham em comum vínculo com as Forças Especiais, reuniram-se para encontrar meio de fazer com que a alta cúpula do Exército aderisse ao golpe a que estavam dando curso”, seguiu o procurador.

Para Jorge Oliveira, pesquisador do Gedes (Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional) e do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, a patente dos denunciados contraria a tese. “São militares que não só passaram pela formação em suas respectivas corporações, como tiveram o crivo positivo de seus pares. Não é possível crer que as condutas antidemocráticas estavam isoladas nos principais postos da caserna“, disse à IstoÉ.

Sinais de intimidade

O mesmo inquérito que baseou a denúncia da PGR mostra a falta de reação ao golpismo. Um exemplo é o relatório mencionado por Cid: divulgado após o segundo turno por uma Comissão militar de Fiscalização que acompanhou as eleições de 2022 a convite do Tribunal Superior Eleitoral, o documento não apontou qualquer indício de fraude, mas declarou que os fiscais não tiveram acesso ao código fonte das urnas.

Negada pelo TSE, a informação insuflou as narrativas de acampamentos que já se formavam na porta dos quartéis por todo o país — com apoio financeiro do núcleo golpista, segundo a PF. A fiscalização representou um “esforço dos militares para descredibilizar o processo eleitoral“, na avaliação de Rezende.

Em 11 de novembro de 2022, quando manifestantes pediam intervenção militar a plenos pulmões em terrenos do Exército, os três comandantes das Forças Armadas divulgaram uma nota que não condenava os protestos e transmitia mensagens ambíguas em relação à atuação do Judiciário.

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Mauro Cid: em delação, tenente-coronel afastou Exército do desejo de ruptura

Na mesma data, segundo a PF, Freire Gomes orientou suas tropas a não desmobilizarem os acampamentos. “O Exército, com conhecimento do Alto Comando, foi complacente”, disse à IstoÉ Rubens Pierrotti Júnior, coronel da reserva da corporação e autor do livro “Diários da Caserna: Dossiê Smart — a história que o Exército quer riscar” (Labrador, 2024).

Já a “minuta do golpe”, elaborada por Filipe Martins, ex-assessor da Presidência, e pelo advogado Amauri Saad, foi discutida na presença do então comandante em mais de uma oportunidade — tudo isso antes de sua oposição à proposta. “O Alto Comando ao menos discutiu a ruptura e, ainda assim, nenhuma dessas pessoas acionou os mecanismos que poderiam investigá-la. Há uma permissividade na cultura das Forças”, afirmou Rezende.

Mobilização dos ‘kids pretos’

O plano “Punhal Verde e Amarelo”, que previa as execuções de Lula, do vice-presidente Geraldo Alckmin (PSB) e do ministro Alexandre de Moraes, do STF (Supremo Tribunal Federal), se daria nas mãos de militares com formação em Forças Especiais do Exército (os “kids pretos”, treinados em operações de contra-inteligência, insurreição e guerrilha), maciçamente envolvidos na proposta.

Segundo a PF, Bolsonaro se reuniu com Estevam Theofilo, general que, na ocasião, comandava os kids pretos, para avançar no planejamento golpista. O batalhão é expressivo na hierarquia do Exército. Gonet ressaltou que os oficiais “atuaram para pressionar o Comandante do Exército e o Alto Comando, formulando cartas e agitando colegas em prol de ações de força no cenário político“.

O número de integrantes das Forças Especiais implicados na fomentação do golpismo provoca o questionamento imediato do propósito da atuação desse batalhão. É preciso entender se elas são mantidas ou treinadas pelo Exército com objetivo de ingerência política”, apontou Jorge Oliveira.

Para Pierrotti, há um “esforço a qualquer custo para preservar a imagem da instituição e varrer a sujeira para debaixo do tapete“. “Os kids pretos se deslocaram de Goiânia a Brasília nas ações do plano, usando viaturas e recursos públicos, mas não houve abertura de processo administrativo disciplinar. O Exército respondeu à imprensa que aguardará a decisão da Justiça, apesar de ter autonomia para fazê-lo sem ela”, concluiu.