O que Mauro Cid, ex-auxiliar de Bolsonaro, disse em delação

O que Mauro Cid, ex-auxiliar de Bolsonaro, disse em delação

"DefesaDelação de ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro é peça fundamental em investigação de trama golpista para anular eleições de 2022. Segundo ministro Moraes, sigilo já não é mais necessário.O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), liberou nesta quinta-feira (20/02) os vídeos e gravações do acordo de colaboração premiada do tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens do ex-presidente Jair Bolsonaro.

No dia anterior, Moraes havia derrubado o sigilo da delação, por entender que já não é mais necessário "nem para preservar os direitos assegurados ao colaborador, nem para garantir o êxito das investigações" – até então, as defesas dos suspeitos se queixavam de não terem tido pleno acesso ao documento.

Na véspera, a Procuradoria-Geral da República (PGR) havia denunciado o ex-presidente e outras 33 pessoas por tentativa de golpe de Estado, entre outros crimes. Caso o STF acate a peça, os denunciados passam à condição de réus.

O acordo – que a defesa de Bolsonaro chama de "fantasioso" – é peça fundamental da investigação sobre a trama golpista que, segundo a PGR, foi preparada por Bolsonaro e assessorespara mantê-lo no poder após a derrota nas eleições de 2022.

Cid era um dos homens mais próximos do ex-presidente e, segundo a Polícia Federal, fazia a ponte entre ele e outros denunciados pela PGR.

A delação de Cid também subsidia outras investigações contra o ex-presidente, como a que apura fraude nos cartões de vacinação da covid-19 dele e de familiares, bem como a venda de joias e relógios entregues à Presidência por autoridades estrangeiras.

Os vídeos liberados por Moraes foram coletados em diversos momentos em que Cid foi ouvido pela Justiça e dão mais detalhes sobre as investigações. Entre eles, o delator afirma que Bolsonaro pediu que um relatório sobre urnas eletrônicas indicasse que o sistema eleitoral é fraudado, mesmo se não fossem encontradas provas, e descreve a ordem expressa do presidente para a venda de um relógio Rolex. Ainda indica a participação do ex-presidente na elaboração de uma minuta golpista e sua orientação para que Moraes fosse monitorado.

Veja, abaixo, os principais pontos da delação de Cid.

Bolsonaro e a minuta do golpe

Com base na delação de Mauro Cid, a Polícia Federal (PF) atribui ao ex-assessor especial de Assuntos Internacionais Filipe Martins a autoria de um primeiro esboço da chamada "minuta do golpe", um documento apresentado a Bolsonaro com propostas para subverter a ordem democrática.

O documento previa a prisão de diversas autoridades, incluindo a dos ministros do STF Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes, além da prisão do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco. À PF, Cid disse que Bolsonaro discutiu o documentocom a cúpula das Forças Armadas.

O ex-auxiliar afirma ter visto o presidente editar o texto, mantendo apenas dois pontos principais: a prisão de Moraes e a realização de novas eleições. Segundo Cid, o próprio Bolsonaro teria apresentado a minuta ao então comandante de Operações Terrestres do Exército, general Estevam Theophilo, numa reunião em 9 de dezembro de 2022.

"Eu falei da minuta. A minuta estava ali. Eu vi a confecção, eu vi o presidente tocando", diz o ex-auxiliar de Bolsonaro em um dos vídeos divulgados.

De Theophilo, Cid teria ouvido que as Forças Armadas cumpririam o decreto caso Bolsonaro o assinasse.

8 de janeiro

Na delação, Cid detalha a gênese das conversas entre os coronéis Rafael de Oliveira e Ferreira Lima com o general Braga Netto, ex-ministro da Defesa, que discutiam o que poderia ser feito para criar um "caos institucional" no país. O ex-auxiliar disse que participou dos minutos iniciais de um encontro em novembro de 2022 quando, segundo ele, iniciou-se um planejamento para os atos golpistas.

"Eles expressavam a indignação com o que estava acontecendo no país, que alguma coisa tinha que ser feita […], Exército tinha que fazer alguma coisa e que estavam propostos a fazer alguma ação e que gerasse mobilização de massa, que pudesse causar um caos institucional", afirmou Cid na delação. "Mas sem saber o que fazer, não tinha nada específico. Começaram a surgir algumas ideias, vamos mobilizar os caminhoneiros, bloquear estradas."

Em outro trecho do depoimento, Moraes questiona Cid sobre uma troca de mensagens identificadas em seu celular, onde ele é cobrado pelo "pessoal que colaborou com a carne". O interlocutor queria saber se o "churrasco" ia ser feito.

"Quero saber o seguinte: quem é o pessoal que colaborou? E estavam colaborando para o quê, para o dia 8 de janeiro?", perguntou Moraes.

"Acho que estavam colaborando para manter o pessoal lá", respondeu Cid em referência aos acampamentos em frente aos quartéis do Exército que tomaram diversas capitais após a derrota de Bolsonaro nas eleições. "Eles estavam nessa angústia de esperar que fosse dado o golpe, esperar que o presidente assinasse um decreto, e as Forças Armadas fossem fazer alguma coisa", continuou.

"E o presidente, de certa forma dava esperança que fosse acontecer alguma coisa que pudesse convencer as Forças Armadas a fazer alguma coisa. Então esse era o ponto."

Apesar de confirmar que existia um financiamento e uma expectativa para que uma ruptura institucional acontecesse, Cid diz que a invasão à praça dos Três Poderes, em 8 de janeiro de 2023, foi uma surpresa.

"Dia 8 foi uma surpresa para todo mundo. Os militares estavam de férias", disse. Ele afirmou que conversou com a esposa ao ficar sabendo da destruição dos prédios institucionais. "Eu falei para ela: imagina se o presidente [Bolsonaro] tivesse assinado alguma coisa [como a minuta do golpe] o caos que ia ser."

Monitoramento de Moraes

Cid ainda relata como o monitoramento de autoridades foi preparado. Segundo ele, Bolsonaro solicitou que os passos de Moraes fossem seguidos.

"Quando o ex-presidente Bolsonaro pediu meu monitoramento, vocês fizeram como?", questionou Moraes.

O delator responde que procurou o coronel Marcelo Câmara, ex-assessor especial da Presidência. Segundo Cid, Câmara foi auxiliado por um juiz do Tribunal Superior Eleitoral para monitorar Moraes.

"É que um dos contatos dele era um juiz, eu não sei dizer a função, mas é um juiz do TSE", disse.

Dinheiro de Braga Netto e tentativa de assassinato

À PF, Cid também incriminou o ex-ministro da Defesa e candidato a vice-presidente na chapa de Bolsonaro em 2022, general Braga Netto. O ex-auxiliar disse ter recebido dinheiro dele no Palácio da Alvorada, residência oficial do presidente da república.

Cid alega que, após as conversas iniciais, foi orientado pelo ex-ministro a questionar o partido de Bolsonaro, o PL, se a sigla poderia pagar pela operação golpista. A denúncia da PGR indica que o monitoramento de autoridades e o financiamento seriam etapas de um plano para assassinar Moraes, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o vice-presidente Geraldo Alckmin. Um representante do partido teria se negado a financiar o esquema.

Sem o recurso da sigla, Cid diz ter recebido valores diretamente de Braga Netto para financiar a operação. A verba, entregue dentro de uma sacola de vinho, teria sido repassada ao militar Rafael Martins de Oliveira, do grupo "kids pretos", e seria destinada à organização do monitoramento e assassinato das autoridades.

"O general Braga Netto me entregou o dinheiro, eu tenho quase certeza que foi no [Palácio do] Alvorada, até me lembro que eu botei na minha mesa ali na biblioteca do Alvorada e depois o [Rafael Martins] de Oliveira veio buscar o dinheiro comigo na próprio Alvorada", disse Cid.

Família de Bolsonaro dividida sobre golpe

Segundo o blog da Andréia Sadi, do portal de notícias G1, Cid apontou que os planos golpistas não seriam unanimidade na família Bolsonaro. Enquanto o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) era contra um golpe de Estado, o deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP) apoiava a ideia e era um de seus mais radicais defensores, assim como a ex-primeira-dama, Michelle Bolsonaro.

Bolsonaro teria agido para evitar prisão de apoiadores

Cid também afirmou que Bolsonaro abrigou dois influenciadores bolsonaristas no Palácio da Alvorada e ordenado o transporte de um terceiro, o blogueiro Oswaldo Eustáquio, num carro da Presidência, para evitar que eles fossem presos.

Os três estavam acampados em quartéis e teriam ligado para o ex-presidente para pedir ajuda após um outro militante bolsonarista, o cacique Serere Xavante, ser detido por tentar invadir a sede da PF.

Bolsonaro e a desconfiança nas urnas eletrônicas

Segundo Cid, Bolsonaro sempre alimentou desconfiança sobre as urnas eletrônicas, e o "gabinete do ódio" fazia parte dessa estratégia.

O militar afirma que a estrutura que operava de dentro do Palácio do Planalto era formada por "três garotos" e gerida por um dos filhos do presidente, o vereador carioca Carlos Bolsonaro (PL-RJ). "Era o Carlos quem ditava o que eles teriam que colocar."

Para fazer o conteúdo reverberar nas redes, o grupo recorria a influenciadores ligados ao presidente, que atuavam como multiplicadores da pauta bolsonarista.

Nos vídeos divulgados, Cid detalha que Bolsonaro teria pressionado também o então ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira, a produzir um documento que indicasse fraude nas urnas eletrônicas, apesar de uma auditoria da pasta indicar o contrário.

"O presidente estava pressionando ele para que ele escrevesse isso de uma outra forma. Na verdade, o presidente queria que escrevesse que tivesse fraude. Então, foi feita uma construção, uma discussão ali, e o que acabou saindo, eu acho, foi que não se poderia comprovar porque não era possível auditar."

Cartão de vacinação da covid falsificado a mando de Bolsonaro

Embora não tenha se vacinado contra a covid-19, o ex-presidente teria dado ordens para a falsificação de certificados de imunização em nome dele e de sua filha, para usá-los em caso de necessidade, como viagens internacionais.

Pouco antes de deixar a Presidência, Bolsonaro viajou para os Estados Unidos, no dia 30 de dezembro, com a esposa e a filha. Mas, como ele viajou com passaporte diplomático, não precisaria, de acordo com as regras americanas, apresentar comprovante de vacinação.

Nos vídeos divulgados, Cid diz que o pedido para falsificar o documento veio diretamente do presidente e surgiu em uma conversa informal. "Quando o coronel Câmara, ficou sabendo, falou: 'Você está doido? Está maluco? Faz essa porra não'. Tanto que ele pegou o cartão do bolso do presidente e rasgou", contou o ex-auxiliar.

Venda de presentes

Cid afirmou ainda à PF que ele e seu pai, o também militar Mauro Cesar Lourena Cid, repassaram 86 mil dólares (R$ 492 mil, no câmbio atual) a Bolsonaro entre 2022 e 2023. O dinheiro teria sido obtido com a venda de joias presenteadas a Bolsonaro enquanto ele era presidente.

Lourena Cid é acusado de ter sido operador de Bolsonaro e ocultado dinheiro das joias. Ele teria guardado alguns desses presentes e oferecido-os a possíveis compradores.

O fim do sigilo da delação mostra que o ex-auxiliar foi taxativo ao indicar Bolsonaro como o autor do pedido para que os itens fossem vendidos. Segundo Cid, o ex-presidente estava preocupado com os gastos com ações judiciais que teria ao deixar a Presidência.

"Ele pediu para verificar quais seriam os presentes dele que poderiam ter valor. Uma maneira mais fácil de quantificar seria relógio. Os relógios poderiam ser quantificados por causa da marca, tudo. Aí eu fiz um levantamento. Não sei se 10 ou 20. A gente viu qual relógio poderia ser quantificado, qual podia realmente ter algum valor. E esse relógio que estava nessa relação, o Rolex estava entre eles", afirmou.

Questionado se a ordem para venda foi expressa de Bolsonaro, Cid respondeu que sim. "Isso, para vender o Rolex", afirmou, indicando que os valores levantados do relógio e do kit ultrapassavam 15 mil dólares por peça.

O que Mauro Cid ganha

Se não descumprir os termos do acordo de delação premiada, Mauro Cid será beneficiado com o perdão judicial ou uma pena privativa de liberdade inferior a dois anos – caberá ao STF decidir se um ou outro.

Segundo o jornal Folha de S.Paulo, Cid negociou o acordo para salvar sua carreira no Exército e garantir benefícios que perderia se fosse expulso da instituição – destino reservado a militares condenados a mais de dois anos de prisão. Se for expulso do Exército, Cid deixa de poder se aposentar pela instituição, perdendo salário e benefícios.

Ainda segundo a Folha de S.Paulo, Cid também queria evitar que as investigações da PF respingassem em sua família. Por isso, os benefícios acordados por ele foram estendidos ao pai, à esposa e à filha mais velha. Como parte do acordo, Cid também ganhou proteção da PF.

O que acontece em caso de descumprimento

O acordo de Mauro Cid impõe a ele o dever de "falar a verdade incondicionalmente em todas as investigações" e "esclarecer espontaneamente todos os crimes que praticou". Ele também tem o dever de informar a PF sobre qualquer contato com outros investigados por suspeita de envolvimento na trama golpista de 2022, e se comprometeu a restituir bens e valores apreendidos ao longo da investigação.

A delação quase foi anulada no início de 2024, após a revista Veja divulgar áudios em que Cid criticava o ministro Alexandre de Moraes, do STF, e dizia estar sob pressão da PF para delatar coisas que não sabia.

Convocado por Moraes a prestar esclarecimentos, Cid disse que os áudios eram uma conversa "particular", e que as declarações dele não correspondiam à verdade.

Depois, no final de 2024, a PF acusou Cid de se contradizer em seus depoimentos e prestar informações falsas. Perante Moraes, porém, o militar deu novos detalhes sobre o envolvimento do general Braga Netto nos planos golpistas. À PF, Cid insiste que não participou de "nenhum planejamento detalhado" de tentativa de golpe.

A lei brasileira prevê a perda de benefícios caso o acordo de delação seja rescindido por alguma falha do delator. As informações prestadas nos depoimentos, contudo, continuam válidas para a Justiça.

A palavra do delator, sozinha, não basta para fundamentar uma condenação. A denúncia da PGR sobre a trama golpista, por exemplo, traz diversos outros elementos de prova, como vídeos, anotações, mensagens de WhatsApp e registros de frequência em prédios públicos.

ra/av/gq (Agência Brasil, ots)