Se psicopatas conseguem manipular nações ao longo de décadas, manter-se no poder e causar danos cruéis e irreversíveis à humanidade, por que não conseguiriam manipular pequenas seitas e pequenos grupos, comandá-los ainda que por pouco tempo e induzi-los à prática de atrocidades? Dois exemplos respectivos: Adolf Hitler, na Alemanha, e Charles Manson, nos EUA. Seja qual for o tipo de psicopata, ambos carregam em suas personalidades fatores biológicos para a ruindade, como

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atualmente nos explica a neurociência, mas se favorecem também de ambientes contaminados pelo ódio, pela intolerância e pelo preconceito – e, importante observar, se valem de pessoas emocionalmente vulneráveis, deprimidas, dependentes químicas ou portadoras de alucinações para a execução dos crimes que planejam. Claro que não são todos os indivíduos assim fragilizados que se tornam criminosos nas mãos de psicopatas. Mas, se também eles tiverem traços de perversidade em seus delírios ou temperamentos, aí sim se terá um terreno fértil para a banalização da maldade. Voltemos então a Charles Manson (mais adiante ficará claro porque falamos de Hitler), que morreu no domingo 19 em um hospital da Califórnia, estado americano no qual era mantido preso já havia meio século. Ele estava com 83 anos de idade e, para as autoridades judiciárias, continuava a ser “um dos mais satânicos e malévolos homens que já pisou a face da Terra”.

Manson liderou no final da década de 1960 uma seita que se autointitulava “Família” e chegou a agregar cerca de cento e cinquenta jovens. Ele admirava Hitler, colecionava discursos de Hitler, vivia propagando frases de Hitler. Era um poço de preconceito contra os negros e pregava a supremacia branca. Dizia que amava o rock e os The Beatles. Queria ser músico mas nada além de lixo saía de sua guitarra. Como chefe da “Família” era impositivo e autosuficente, quando conversava com pequenos empresários do meio artístico se transformava num exemplo de docilidade. Os psiquiatras que o examinaram após o tenebroso crime pelo qual foi condenado à prisão pérpetua sempre estiveram, na verdade, mais interessados nos motivos biopsicossociais que levaram alguns jovens, sobretudo mulheres, a segui-lo fanaticamente, sem a menor autocrítica nem hesitação. Isso porque, para os médicos, definir o caráter explorador e predador de Manson era simples demais. E o fizeram com uma única palavra: “camaleão”. Como explicar, no entanto, o comportamento e a submissão de seus adeptos? Por que faziam tudo o que ele mandava, até matar com requintes de extrema crueldade? Por que rastejavam, andavam de joelhos ou de quatro como forma de absurda adoração?

As assassinas Susan, Patrícia e Leslie: sete homicídios com requintes de sadismo e perversidade (Crédito:Divulgação)

Início da madrugada de nove de novembro de 1969. Condado de Los Angeles. Mansão em Bel Air, 10050 Cielo Drive. A linha telefônica é cortada por um homem chamado Charles Watson – o Charles, é claro, ele tomou emprestado de seu ídolo, Charles Manson. Na sequência a casa é invadida pelo próprio Watson e três mulheres, todas muito jovens: Susan Atkins, Linda Kasabian e Patrícia Krenwinkel. Na residência morava a exuberante atriz Sharon Tate, 26 anos, mulher do cineasta Roman Polanski e já consagrada pelos filmes “A dança dos vampiros” e “O vale das bonecas” (Polanski viajava pela Inglaterra).

Estavam também no local mais quatro pessoas que faziam companhia a Sharon, grávida de oito meses e meio. Todos foram amarados e assassindos a tiros e facadas – Watson deu dezesseis punhaladas no ventre da atriz. Antes de fugir, o grupo garatujou nas paredes a expressão “pigs” (porco, em inglês) e furtou documentos. Tudo foi feito a mando de Charles Manson.

Na noite seguinte, os mesmos criminosos, mais Steve Grogan e Leslie Van Houten cometeram outro bárbaro assassinato, e dessa vez a vítima foi o casal Rosemary e Leno LaBianca. Novamente o crime fora ordenado por Manson que, espertamente, em ambas ocasiões macabras não esteve presente – não sujou suas mãos com uma única gota de sangue.

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Em dezembro do mesmo ano, após investigar dia e noite e por todos os lados, a polícia chegou à fazenda na qual Manson e seus seguidores moravam, prendeu os executores e o mandante. Los Angeles repirou aliviada e voltou a dormir após quatro meses. Como vivia a “Família”? Eram diversos ranhos em torno de um rancho principal, nos quais se consumiam fartas doses de LSD (a droga da época a embalar a utopia hippie) e se fazia sexo grupal – no harém do chefe o vaivém de parceiras era constante, e ele jamais colocou uma droga em seu corpo. A grande maioria das moças da fazenda pertencia à classe média, muitas com passagem por clínicas psiquiátricas, todas com sérios problemas com drogas e que abandonaram suas famílias para viverem inconsequentemente nas ruas. Loucura total. Mais uma vez, frise-se, nada disso faz de uma pessoa um assassino, a não ser que já exista, em meio ao ambiente, a predisposição para a violência. De novo nos socorrendo da neurociência, a genética é o gatilho, o ambiente é o dedo.

Nos arquivos dos tantos teóricos que escreveram sobre o caso, há um documento elucidativo sobre Susan Atkins. Em resumo, narra que seu desespero por drogas era tanto, que a sua fragilidade emocional era tamanha, que a perda da autoestima chegara a tal ponto revirando lixeiras nas ruas para se alimentar que, se alguém diante dela fingisse ser um deus, Susan acreditaria. Os psiquiatras que examinaram Patricía, também resumidademnte, anotaram que ela era cruel e frágil ao mesmo tempo, fragilidade que não a inocentava em nada. As quatro “devotas” assassinas de Manson se mostravam racistas e facilmente sugestionáveis, sobretudo diante de temas místicos, e ele sabia explorar isso. “Charles Manson dizia justamente aquilo que o interlocutor não podia ouvir para não enlouquecer”, declarou o promotor de justiça Vincent Bugliosi.

Por que houve os crimes: Manson dizia ter a premonição de que brancos e negros se enfrentariam numa grande guerra. Como ela estava demorando, ele entendeu que o “Álbum branco” dos The Beatles era o código para tal conflito ser deflagrado. A culpa pelos assassinatos de brancos deveria recair falsamente sobre negros, que então reagiriam, e por isso as matadores escreveram “pigs” nos locais das mortes – era com essa expressão que os “Panteras Negras”, organização contrária ao preconceito, chamava policiais racistas. Quanto aos documentos furtados, seriam eles “plantados” em casas de negros para os incriminar. Mais que maquiavélico, Manson era diabólico. Ele, Suzan, Patrícia, Watson, Steve e Leslie foram condenados à morte em 1971, mas tiveram as penas comutadas em prisão perpétua porque na mesma época a Califórnia suspendeu a pena capital. Linda Kasabian, que esteve na casa de Sharon e tentou impedir a chacina, ganhou imunidade ao detalhar à Justiça como tudo ocorrera. Os americanos acompanhavam petrificados cada por menor, e petrificados e perplexos também ficaram frente ao fanatismo histérico de alguns membros da seita que “caminhavam” de joelhos nas ruas próximas ao tribunal durante o julgamento de seus pares. Alguns desses manifestantes, soube-se depois, buscaram voluntariamente auxílio em instituições psiquiátricas.

O CASAL Sharon Tate com o marido, Roman Polanski, que estava em viagem profissional quando ela foi morta: gravidez de oito meses e meio e dezesseis facadas no ventre (Crédito:Divulgação)

Com a morte de Manson, é natural que surja a curiosidade sobre o destino dos demais assassinos de Sharon. O que foi feito deles? Susan, que na noite de terror bebeu sangue da atriz, converteu-se ao cristianismo na penitenciária e, presa, morreu em 2009. Patrícia, que escrevera com sangue “morte aos porcos”, está com 69 anos, é tida como presidiária exemplar e dá aulas na cadeia. Leslie tornou público um documento de “arrependimento”, mas também ainda segue encarcerada. Watson é considerado “preso modelo e cordial”. Cada um deles já teve, em média, quinze vezes negados os pedidos de liberdade condicional, e a Justiça deve continuar nessa linha até que o último membro da famigerada “Família” morra trancafiado. A mãe de Sharon, Doris Tate, conseguiu a aprovação de uma lei que permite a parentes de vítimas conversarem com réus em audiências. Olhos nos olhos, mas mãos trêmulas, ela disse a Watson: “que clemência o senhor deu à minha filha quando ela implorou por sua vida? Que clemência o senhor teve quando ela pediu para viver somente mais duas semanas, tempo de nascer a criança, e então o senhor poderia matá-la?”. A luta de Doris, para que nenhum deles seja solto, é um exemplo a todos que perdem seus entes queridos nas mãos de fanáticos. Claro que não faltou quem associasse Manson ao movimento hippie e à contracultura. Nada a ver. Psicopatas existem em toda a esteira da história humana. E doidos a segui-los, também.

 


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