O que está por trás da tensão entre Venezuela e EUA

O que está por trás da tensão entre Venezuela e EUA

Uma frota de navios militares americanos a caminho da América do Sul deve chegar a águas internacionais na costa da Venezuela neste domingo, 24, ampliando a tensão entre a Casa Branca e o regime de Nicolás Maduro.

A operação militar ordenada pelo presidente dos EUA, Donald Trump, é oficialmente destinada a combater o narcotráfico na região, mas seu alcance e implicações práticas são uma incógnita, e fez soar alertas em alguns países latino-americanos.

+ Ameaça dos EUA contra Venezuela traz tensões à América Latina

Trump e Maduro, inimigos de longa data

Washington e Caracas não mantêm relações diplomáticas bilaterais formais desde 2019, no primeiro mandato de Trump. O rompimento ocorreu quando a Casa Branca reconheceu o então líder da oposição venezuelana, Juan Guaidó, como presidente interino do país, após a Assembleia Nacional venezuelana não reconhecer a reeleição de Maduro.

Na época, os EUA impuseram diversas sanções contra Caracas e Trump chegou a falar que uma intervenção militar era “uma opção” para mudar o regime no país. Durante o governo Joe Biden, o governo americano seguiu rompido com a Venezuela.

Em 18 de julho deste ano, uma troca de prisioneiros entre EUA e Venezuela acendeu esperanças de que os dos países poderiam adotar uma atitude pragmática de reaproximação, mas a situação logo se deteriorou. Uma semana depois, o governo americano classificou o Cartel de los Soles como organização terrorista internacional e afirmou que ele era liderado por Maduro e uma ameaça à paz e à segurança dos EUA.

Em seguida, o secretário de Estado dos EUA, Marco Rubio, divulgou um comunicado afirmando que Maduro fraudou as eleições para se manter no poder e que não o reconhecia como presidente da Venezuela. Já Trump, segundo o jornal americano New York Times, assinou uma diretriz sigilosa determinando ao Pentágono o uso de força militar contra cartéis na América Latina classificados como organizações terroristas.

Retorno da Doutrina Monroe?

Em 7 de agosto, o Departamento de Estado dos EUA dobrou a recompensa por informações que levassem à prisão de Maduro, de 25 milhões para 50 milhões de dólares. No dia seguinte, a procuradora-geral dos EUA, Pamela Bondi, publicou um vídeo no X acusando Maduro de ser um dos maiores líderes mundiais do narcotráfico e de colaborar também com os cartéis Tren de Aragua e Cartel de Sinaloa.

Nesta terça-feira, 19, a porta-voz da Casa Branca, Karoline Leavitt, foi questionada sobre a movimentação de navios militares em direção à Venezuela e respondeu que Washington usaria “toda sua força” para impedir que drogas chegassem ao território americano.

“O regime de Maduro não é o governo legítimo da Venezuela; é um cartel narcoterrorista. Maduro, na visão deste governo, não é um presidente legítimo; é um chefe fugitivo deste cartel, indiciado nos Estados Unidos por tráfico de drogas”, afirmou.

A autorização para que o Pentágono atue contra cartéis na América Latina e a escalada sobre a Venezuela trazem indícios de que Trump poderia tentar reativar a Doutrina Monroe, criada no início do século 19 para afirmar a hegemonia dos EUA sobre as Américas, que serviu de pretexto para intervenções e golpes militares na região no século 20.

Na gestão Barack Obama, a Casa Branca chegou a anunciar que essa doutrina estava “morta”, substituída pela priorização de parcerias e cooperações com os países latino-americanos.

Qual é o tamanho da frota mobilizada

O envio de navios militares americanos à costa da Venezuela foi noticiado na segunda-feira pela agência de notícias Reuters e depois confirmado por outros veículos.

Compõem a frota, segundo os relatos:

  • Três contratorpedeiros (USS Gravely, USS Jason Dunham e USS Sampson) equipados com o sistema Aegis de mísseis guiados de alta precisão. São navios de guerra menores e mais ágeis, com poder de fogo para interceptar mísseis e agir contra aeronaves e submarinos;
  • Três navios de assalto anfíbio (USS Iwo Jima, USS Fort Lauderdale e USS San Antonio), úteis para o desembarque de tropas, blindados e outros equipamentos militares no litoral;
  • Um submarino de propulsão nuclear;
  • Aviões P-8 Poseidon, usados para missões marítimas de patrulha e reconhecimento;
  • 4.500 militares, incluindo 2.200 fuzileiros navais.

A previsão inicial era de que os navios chegariam à posição pretendida na quarta-feira, mas a missão foi adiada em alguns dias devido ao furacão Erin, ativo na costa leste dos EUA.

O que pode estar por trás da ordem de Trump

No seu atual mandato, Trump vem testando em diversas oportunidades até que ponto consegue mobilizar militares para atuar em questões internas e no combate à criminalidade.

Ele já destacou militares para a fronteira com o México para atuar no controle da imigração de pessoas indocumentadas, para Los Angeles para proteger prédios federais e autoridades policiais durante uma onda de protestos contra as políticas anti-imigração da Casa Branca, e mais recentemente para Washington D.C. com o objetivo declarado de combater a criminalidade.

O uso das Forças Armadas do país para o combate ao narcotráfico não seria inédito. No governo de George H. W. Bush, militares americanos invadiram o Panamá para capturar o então ditador Manuel Noriega, acusado de chefiar uma quadrilha de tráfico de drogas – a iniciativa durou de dezembro de 1989 a janeiro de 1990 e ficou conhecida como Operação Justa Causa.

Segundo fontes venezuelanas consultada pelo jornal O Globo, sob anonimato, Caracas considera diversos possíveis cenários relacionados à chegada da frota de navios militares americanos. Um deles seria usar essa frota para impor restrições ao movimento de navios no litoral venezuelano e dificultar a exportação de petróleo, maior fonte de recursos do regime chavista.

Outra opção, menos provável, seria um ataque pontual e direcionado contra Maduro ou outra autoridade venezuelana, como ocorreu com o general iraniano Qassim Soleimani, comandante da Guarda Revolucionária do Irã, morto em 2020, durante o primeiro governo Trump, por um míssel disparado por drone americano no Iraque.

Também compõe o cenário uma tentativa de invasão ou de golpe na Venezuela liderada por grupos paramilitares, como ocorreu na chamada Operação Gideão em maio de 2020, que acabou com a prisão e morte dos envolvidos.

A mobilização da Marinha americana também pode ter efeitos além da Venezuela, ao enviar um sinal a outros países da região sobre a natureza do atual governo americano.

Maduro vê ‘ameaça bizarra de um império em declínio’

Se para Trump o deslocamento de navios militares para o litoral venezuelano serve para mostrar poder militar, para Maduro isso também é de certa forma útil como pretexto de união nacional.

O ditador venezuelano chamou a mobilização naval americana de “uma ameaça bizarra de um império em declínio”, anunciou o deslocamento por todo o país de 4,5 milhões de milicianos armados (integrantes da Força Armada Nacional Bolivariana) como parte de um “plano de paz” e apelou às milícias para que estejam “preparadas, ativadas e armadas”.

“Nenhum império vai tocar o solo sagrado da Venezuela, nem deve tocar o solo sagrado da América do Sul”, disse Maduro.

O governo venezuelano rechaça acusações de vínculos com o narcotráfico. O ministro do Interior e da Justiça, Diosdado Cabello, afirmou que o Cartel de Los Soles era uma “invenção” da Casa Branca.

“O Cartel de los Soles é uma invenção, não sei há quantos anos eles inventaram isso e, nesse tempo, já teve cerca de 300 chefes. Sempre que alguém os incomoda, eles o colocam como chefe do Cartel de los Soles”, disse ele em uma coletiva de imprensa transmitida em 7 de de agosto pelo canal estatal Venezolana de Televisión (VTV).

Maduro é presidente desde 2013, e nas últimas eleições, em 2024, foi declarado vencedor pela Justiça Eleitoral em um processo contestado por observadores internacionais e sem apresentar as atas eleitorais para conferência, e para muitos analistas comanda hoje uma autocracia.

O governo brasileiro se engajou em negociações que buscavam a realização de eleições limpas na Venezuela em 2024, mas criticou a falta de transparência do processo eleitoral e não reconheceu o resultado que deu vitória a Maduro.

México e Colômbia criticam movimentação dos EUA

A presidente do México, Claudia Sheinbaum, criticou nesta terça-feira, 19, as manobras militares dos EUA em direção à Venezuela. Questionada sobre o tema, ela reforçou que a Constituição mexicana defende “a autodeterminação dos povos, a não intervenção e a resolução pacífica de controvérsias”.

O governo mexicano já havia rechaçado também a possibilidade de militares americanos entrarem em seu território com o objetivo declarado de combater o narcotráfico, após a ordem de Trump para o Pentágono sobre cartéis considerados terroristas.

“Os Estados Unidos não virão ao México com as Forças Armadas”, disse ela em 8 de agosto. “Nós cooperamos, colaboramos, mas não haverá invasão. Isso está descartado, absolutamente descartado.” Internamente, o governo mexicano já está dobrando a aposta na militarização para o combate ao narcotráfico.

O presidente colombiano, Gustavo Petro, também reagiu. “Os gringos estão enganados se pensam que invadir a Venezuela resolverá o seu problema, vão colocar o país na mesma situação da Síria, mas com o problema de arrastar a Colômbia para o mesmo caminho”, afirmou em uma reunião ministerial nesta terça-feira. “Disse a Trump, por meio de emissários, que isso seria o pior erro.”

O governo brasileiro, até o momento, não se manifestou oficialmente sobre o tema. Segundo o portal UOL, Brasília acompanha a movimentação da frota americana e avaliará como reagir diante de novos desdobramentos.