A panela de pressão que se tornou a violência escolar explodiu, em um massacre na creche Cantinho Bom Pastor, em Blumenau, no Vale do Itajaí, em Santa Catarina. Na quarta-feira (5), quatro crianças foram mortas e cinco ficaram feridas. Segundo a polícia, Luiz Henrique Lima, de 25 anos, pulou o muro da creche e atacou as crianças com uma machadinha. As vítimas foram atingidas na cabeça: Bernardo Cunha Machado, de cinco anos, Bernardo Pabst da Cunha, quatro, Larissa Maia Toldo, sete, e Enzo Marchesin Barbosa, quatro. O autor se entregou e foi encaminhado à Polícia Civil. Ele tem passagem por porte de drogas e lesão corporal. “Só sobrou a mochila do meu filho”, disse o pai de uma das crianças, que não se identificou, a caminho do Instituto Médico Legal. “Agradeço a Deus todos os momentos que vivi com o meu filho. A partir de hoje a memória dele vai ser honrada no meu coração”, afirmou o jornalista Bruno Bride, pai de Bernardo Cunha. Ao irem para a creche pela manhã, os dois deram pulos “imitando um coelhinho” por causa da Páscoa.

Discurso de ódio nas redes inflama violência nas escolas
SOCORRO Viatura do IML retira corpos das crianças vítimas da chacina promovida pelo motoboy Luiz Henrique de Lima (abaixo), de 25 anos, que invadiu a creche armado com uma machadinha (Crédito: Denner Ovidio)
Discurso de ódio nas redes inflama violência nas escolas
Divulgação

O desespero de funcionários que se trancaram com bebês para salvar vidas, pais que buscaram seus filhos feridos e educadores atônitos diante da monstruosidade repercutiu nos telejornais internacionais, e mobilizou autoridades. “Não há dor maior que a de uma família que perde seus filhos ou netos, ainda mais em um ato de violência contra crianças inocentes e indefesas”, declarou o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). “Para qualquer ser humano que tenha o sentimento cristão, uma tragédia como essa é inaceitável, um comportamento, um ato absurdo de ódio e covardia como esse.” Um relatório com diagnóstico desse tipo de violência nas escolas e possíveis soluções foi elaborado na transição do governo Lula em dezembro de 2022. De acordo com o documento, no Brasil – desde a primeira década dos anos 2000 – foram 16 ataques em escolas, dos quais quatro aconteceram no segundo semestre do ano passado.

Em São Paulo

Os assassinatos brutais em Blumenau eclodiram uma semana depois do caso da unidade Estadual Thomazia Montoro, em São Paulo. O agressor tinha perfil violento nas redes sociais com menções a chacinas motivadas por bullying. A mãe do garoto de apenas 13 anos admitiu que sabia do conteúdo que o filho propagava na web e entre colegas. Munido de uma faca, o menino matou a professora Elisabete Tenreiro, de 71 anos, e chocou o Brasil. Antes do ato, ele já havia sido encaminhado para exame no Centro de Atenção Psicossocial Infantil (Capsi), de Taboão da Serra. Uma professora que sobreviveu ao atentado se referiu ao aluno como vítima do sistema.

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CHOQUE Testemunhas do brutal assassinato de crianças, de quatro a sete anos, traumatizou a cidade de Blumenau (Crédito:Denner Ovidio)

O que o brasileiro lamentava a respeito dos ataques a escolas nos Estados Unidos agora faz parte da nossa história. A exteriorização do ódio disseminado na sociedade – em setores que vão das redes sociais ao discurso radicalista de Jair Bolsonaro – é uma realidade do brasileiro. A herança de manifestações sobre o armamento da população, a Ciência à achincalhada, os nordestinos ridicularizados, a zombaria contra mulheres, entre outros retrocessos da gestão anterior reverberam no coletivo. A comunidade instrumentalizou o ódio pela politica. Lamentavelmente, nem crianças e adolescentes escapam de serem contaminados. A juventude atual já carece de atenção por estar com a saúde mental abalada com a pandemia de Covid-19. Soma-se a isso a exposição a grupos de ódio na internet, que ganham cada vez mais espaço no universo das redes sociais. O risco de cooptação alarma.

Especialistas estimulam o olhar cuidadoso ao redor da saúde mental infantojuvenil. A mesma atenção ao psicossocial é necessária ao analisarmos a exposição à política de ódio. Principalmente, quando o assunto é a web, que pode elevar o risco de cooptação dos jovens. “O adolescente é uma população que não tem um parâmetro identitário. É presa fácil para grupos extremistas, principalmente, da internet. Esse é um período extremamente solitário, em que ele se sente sozinho e perdido na transição da infância para a fase adulta. Muitas vezes, vê refúgio na internet”, considera Maria Angélica Rios, psiquiatra especialista em infância e adolescência da Rede Mater Dei de Saúde de Belo Horizonte. A profissional ressalta que é preciso se atentar ao universo do jovem, o que a pesquisadora Danila Di Pietro também elenca. “O discurso de ódio, sim, está na internet, mas não apenas lá. Também está pulsante em outros lugares, inclusive em jantares familiares e igrejas”, aponta. Contudo, como a faixa etária em pauta passa mais tempo online, fica em contato com esse estímulo com frequência.

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PERDAS Parentes das crianças mortas em Santa Catarina choram a perda de seus familiares (Crédito:Denner Ovidio)

A ligação com o discurso de ódio que contagia crianças e adolescentes em seu universo online, lamentavelmente, existe. “A banalização de valores como respeito, diversidade, participação, e o enaltecimento da violência e do enriquecimento material, por exemplo, inverte uma escala de valores essencial para que tenhamos uma convivência ética na sociedade”, analisa Danila Di Pietro, doutoranda na Faculdade de Educação da Unicamp. Se formos recordar os últimos quatro anos políticos, isso era semeado por quem deveria fazer exatamente o contrário. “A legitimação do chefe do poder executivo do País, ao validar tamanha violência, permite que o cidadão comum cometa atrocidades”, completa a pesquisadora.

Os números e fatos da violência nas escolas e da disseminação do discurso de ódio não negam a alarmante realidade. Desde 2021, o Ministério da Justiça e Segurança Pública disparou 134 alertas de atentados em colégios. A Safernet, organização de defesa dos direitos humanos em ambiente virtual, recebeu 10,4 mil denúncias de apologia a crimes contra a vida em 2022. Ameaças a institutos foram registradas no Twitter, TikTok, Instagram, Facebook e Telegram. Em 2021, um levantamento do Fundo das Nações Unidas para a Infância apontou que 56% dos adultos afirmaram verem seus adolescentes com um ou mais sintomas relacionados à saúde mental.

Um ponto muito discutido é que a juventude está cada vez mais exposta ao extremismo na internet, sobretudo na deep web – sites, conteúdos, plataformas não estão disponíveis a qualquer um. A atual geração convive – e se contamina – com incentivos à misoginia, segregação racial e religiosa, por exemplo, difundidos nesse espaço, em jogos de videogame e, impossível não associar, na retórica de ódio disseminada com o bolsonarismo. “A internet acaba sendo extensão da vida real para os estudantes. Mas muitas vezes pode não ser adequada. Atrás de perfis falsos, há formas de discriminação entre povos, população LGBTQIA+ e distinção racial, por exemplo. Tudo isso interfere na vida social deles”, analisa Bruna Castelo Branco, socióloga e doutoranda em Comunicação pela Universidade Federal do Ceará. “Mais grave ainda quando se tem uma pessoa na posição de liderança, como era o caso de Jair Bolsonaro, com manifestações preconceituosas e xenófobas. O adolescente em processo de formação individual escuta e assimila. O que pode ocorrer disso ser reproduzido em seus ambientes sociais”. Em rápida pesquisa na web, é possível encontrar postagens que celebram assassinos que atacaram instituições. Por isso, o pedido de regulação das redes para remoção de todo esse tipo de conteúdo é debatido com veemência em Brasília. “Infelizmente, foram anos extremamente obscurantistas, onde, é fato, houve enaltecimento de valores violentos. Isso deixou sequelas”, comenta Danila. “O extremismo se faz sem diálogo, sem valores essenciais para a convivência. Quanto mais a violência for propagada em larga escala, mais estará presente em sua versão extrema”.

Medidas oficiais

Os ataques recentes levam todos à reflexão. O Ministério da Educação começa a pensar em diretrizes, como a possibilidade de criar um grupo para tratar especificamente disso. Por hora, unidades de todo o País têm se organizado para prevenir que casos estourem. Há programas para mapear problemas psicossociais, ação efetiva de psicólogos e psiquiatras.

A Secretaria da Educação do Estado de São Paulo tem o Conviva – para aprimorar a convivência na comunidade escolar, com iniciativas voltadas a alunos, educadores e servidores em prol da promoção da cultura da paz, valorização da vida e mediação de conflitos. A preocupação com a saúde mental resultou em ampliação e modificação. “Está em fase de contratação uma nova empresa, com mais de 150 mil horas de atendimento psicológico de alunos e professores da rede estadual”, informa a Seduc, em nota.Discurso de ódio nas redes inflama violência nas escolas

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PREVENÇÃO Unidades de ensino têm encontros com a PM para discutir segurança e ação de psicólogos e psiquiatras: coibição da violência (Crédito: Ana Carolina Fernandes)

Botão de Pânico

Em Suzano, na Grande São Paulo, as escolas da rede municipal possuem o botão do pânico. O dispositivo surgiu após dois ex-alunos matarem oito pessoas em um colégio estadual no ano de 2019. “A sociedade cobrou do poder público questões imediatas de infraestrutura e segurança”, diz Leandro Bassini, secretário de Educação de Suzano. O município tem hoje o programa Prevenir a Violência Escolar, atuação intersetorial entre os órgãos públicos para identificar, no próprio núcleo escolar, alunos em vulnerabilidade. “O que nos interessa é o processo: o que leva alguém a uma circunstância de violência, sentir raiva da sociedade ou de ter um pensamento de vingança?”, explica. Seguindo esse formato, se há alguma suspeita, profissionais capacitados no posto de articuladores comunitários iniciam acompanhamento familiar e atendimento específico a cada necessidade. Por isso, o botão do pânico não é o ponto mais importante para coibir ataques. “Ele serve como emergência. Mas Suzano quer evitar chegar a essa situação”, afirma Bassini. Desde sua implantação, o dispositivo foi acionado algumas vezes, mas apenas no contexto de “suspeita”.Discurso de ódio nas redes inflama violência nas escolas

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EXPERIÊNCIA Loretana Paolieri Pancera, presidente do CPP, cobra programas voltados à saúde mental (Crédito:Gabriel Reis)

No Rio de Janeiro, o Sindicato dos Estabelecimentos de Educação Básica do Município do Rio de Janeiro lista que as prevenções vão além da ronda escolar – demanda solicitada pelos pais. “Tornou-se rotina na agenda de gestores de escolas públicas e particulares a participação em reuniões periódicas com o 2º Batalhão de Polícia Militar para troca de informações e acompanhamento dos índices de segurança pública”, diz a associação, em informe. Na rede particular, o colégio Mopi tem uma disciplina de Qualidade de Vida. “O objetivo é observar o socioemocional dos estudantes. Trabalhar desejos, o espaço individual e social, sem dúvida, ajuda a minimizar questões de violência”, detalha Adriana Ferreira, orientadora educacional e psicopedagoga da instituição.

É preciso que pais redobrem o compromisso da parentalidade. A professora Loretana Paolieri Pancera, presidente do Centro do Professorado Paulista, passou 41 anos em sala de aula. Aos 97 anos e à frente da entidade, lamenta que o inimaginável esteja acontecendo. “Quando a violência atinge a escola e o aluno, ficamos magoados e com medo. Há casos de professores que estão com temor”, conta. A profissional endossa o pedido de políticas públicas de enfrentamento, e defende a regulação das redes. “Essa tecnologia não prejudica. Pelo contrário, a rede social é ótima para divulgar coisas boas que a escola pode proporcionar. É o caminho mais rápido e curto de chegar até o lar”, opina. Com a experiência de uma vida no setor, Loretana finaliza que não se deve rotular a geração atual exposta a manifestações de ódio: “Crianças não são racistas, os adultos que as tornam racistas. E elas não são más, imitam. E o exemplo vem de casa”.

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CUIDADOS Rede municipal de Suzano (SP) tem o projeto “Prevenir a Violência Escolar”: botão do pânico integra defesa (Crédito:Luana Bergamini/Prefeitura de Suzano.)

Casos no Brasil

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MASSACRE Em 7 de abril de 2011, em Realengo (RJ), Wellington Menezes de Oliveira matou a tiros 12 alunos e deixou 22 feridos (Crédito:Divulgação)

O caso da escola municipal Tasso da Silveira, no bairro de Realengo (RJ), é conhecido como o massacre mais chocante entre esse tipo ato no Brasil. Deixou 12 mortos: dez meninas e dois garotos, além de 22 feridos. Em 7 de abril de 2011, estudantes com idades entre 13 e 15 anos estavam assistindo a mais uma aula de português, quando um ex-aluno, Wellington Menezes de Oliveira entrou na escola portando na mochila dois revólveres, invadiu uma sala da 8ª série e começou a atirar. Segundo os sobreviventes, ele mirava na cabeça das meninas e no corpo dos meninos. O atirador foi atingido com um tiro de fuzil na barriga por um policial. Caído no chão, atirou na própria cabeça.

O massacre na Escola Estadual Professor Raul Brasil, em Suzano (SP), deixou dez mortos entre alunos e funcionários, alvejados por dois ex-alunos. Um deles matou o comparsa e em seguida cometeu suicídio. Em Janaúba (MG), em 2017, 13 pessoas morreram, entre crianças de 4 a 6 anos e funcionários, e 40 ficaram feridas,após o segurança incendiar um centro de educação infantil. (Ana Mosquera)

Pesadelo americano

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TRAGÉDIA Em 20 de abril de 1999, em Columbine (EUA), Eric Harris (à esq.) e Dylan Klebold mataram 12 alunos e um professor (Crédito:Divulgação)

Entre as tragédias mais chocantes em instituições educacionais dos Estados Unidos está o chamado Massacre de Columbine, que aconteceu em Littleton, no Colorado. Em 1999, dois jovens norte-americanos, um de 17 e outro de 18 anos, mataram 12 colegas e um professor com armas que trouxeram de casa. O fato deu origem ao premiado documentário Tiros em Columbine, dirigido por Michael Moore e lançado em 2002. Cinco anos mais tarde, em 2007, um estudante sul-coreano foi o autor de um novo atentado que mancharia de sangue a história do país, na Universidade Estadual da Virgínia, na cidade de Blacksburg. Na ocasião, Cho Seung-Hui (23) trancafiou alunos e funcionários, e passou de sala em sala proferindo tiros com duas pistolas: 32 pessoas foram mortas e o jovem deu cabo da própria vida ao final do sangrento episódio. No último dia 27, um ataque em uma escola de ensino fundamental, em Nashville, no Estado do Tennessee, resultou em seis óbitos: uma mulher de 28 anos
matou três crianças e três adultos. (Mirela Luiz)