Não existe um lugar no Brasil em que não haja a presença e a atuação de organizações criminosas. A afirmação é do Fórum Brasileiro da Segurança Pública, que mapeou a presença de 53 grupos no País em 2022. É este levantamento sobre a crise em que se transformou a Segurança Pública no Brasil que mostra o tamanho da mais antiga e segunda maior organização criminosa do País: o Comando Vermelho (CV).
A facção voltou a ganhar destaque no debate público nesta semana, após a polícia do Rio de Janeiro deflagar a operação mais letal da história do estado, com dezenas de mortes de integrantes do Comando Vermelho. A ação mirou os complexos do Alemão e da Penha e, segundo o secretário de Polícia Civil do Rio de Janeiro, Felipe Curi, 119 pessoas foram mortas durante o processo.
O número de óbitos, no entanto, difere do balanço da Defensoria Pública do estado do Rio de Janeiro, que afirma que ao menos 132 pessoas foram mortas. Ambas as contagens, que foram divulgadas nesta terça-feira, 29, um dia após a operação, ainda não foram finalizadas.
Batizada de Operação Contenção, a ação faz parte da iniciativa do governo estadual para combater o avanço do CV em regiões fluminenses. Ela foi resultado de mais de um ano de investigação, que teria identificado 94 integrantes do Comando Vermelho escondidos nos complexos de favelas do Alemão e da Penha. Pelo menos 2.500 agentes das forças de segurança do RJ saíram para cumprir quase 100 mandados de prisão. Ao chegar nos complexos, as equipes teriam sido recebidas a tiros e com barricadas. Segundo a polícia, criminosos teriam ainda lançado bombas com drones.
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Histórico do CV
A história da facção carioca é conhecida: nasceu no fim dos anos 1970 no antigo presídio da Ilha Grande. Foi criada por oito presos do Fundão, a Galeria da LSN (Lei de Segurança Nacional). Entre eles estava William da Silva Lima, o professor e autor do livro Quatrocentos Contra Um. No presídio, a facção travou uma guerra contra a Falange Jacaré pelo domínio da cadeia. O CV precisou de uma década para conquistar morros e dominar o tráfico de drogas, associando seu nome ao de assaltantes de banco, como José Carlos Gregório, o Gordo, e ao de traficantes, como José Carlos dos Reis Encina, o Escadinha.
Foi quando a facção deixou de ser conhecida como Falange Vermelha para passar a ter o nome atual: Comando Vermelho. Nos anos 1990 ela viu a ascensão de Luiz Fernando da Costa, o Fernandinho Beira-Mar que com seus aliados buscava drogas diretamente no Paraguai e na Colômbia para abastecer os negócios do grupo. A facção, porém, nunca obteve o monopólio do crime no Rio, sendo desafiada por rivais que disputavam territórios e influência, como o Terceiro Comando e a Amigos dos Amigos (ADA).
Na época, o CV chegou a atuar na Baixada Santista, em São Paulo, em um acordo com o Primeiro Comando da Capital (PCC), depois rompido em razão da disputa pelos pontos de venda de drogas. O conflito entre as facções na primeira década do século deixou mais de 20 mortos, entre eles Sandro Henrique da Silva Santos, o Gulu, apontado como um dos homens da cúpula do PCC favoráveis ao acerto com os cariocas do CV. Ronaldo Duarte Barsotti de Freitas, o Naldinho, outro aliado do CV na região, desapareceu em dezembro de 2008. Na década seguinte, a guerra entre as duas facções seria retomada em outros Estados.
De acordo com mapa traçado pelo Grupo de Estudos de Novos Ilegalismos, da Universidade Federal Fluminense (UFF), a facção domina 24,2% dos bairros do Rio, ficando atrás do poder das milícias, que controlam 25,5% dos bairros cariocas, enquanto o TCP detém o domínio de 8,1% e a ADA 1.9%. Em 2023, o grupo se uniu a dissidentes das milícias da zona oeste para expandir seu domínio por áreas como a comunidade Gardênia Azul, sob o comando do traficante Wilton Carlos Rabello Quintanilha, o Abelha, apontado como o principal líder da facção em liberdade.
Teria sido Abelha o responsável por ordenar o julgamento e a morte de quatro milicianos que se aliaram ao CV e assassinaram, por engano, três médicos em um quiosque na Barra da Tijuca, no Rio. Um dos médicos – Perseu Ribeiro Almeida – foi confundido com o miliciano Taillon de Alcântara Pereira Barboza, preso recentemente pela Polícia Federal.
Expansão nos últimos anos
Nos últimos anos, os lugares onde o CV mais cresceu foram a Baixada Fluminense e o Leste Metropolitano. Já as milícias tiveram as maiores perdas na Baixada e na zona oeste da cidade do Rio de Janeiro.
“Com a morte de Ecko [Wellington da Silva Braga, uma das principais lideranças das milícias até sua morte, em 2021], a gente tem uma instabilidade nesse grupo. E outros grupos, sejam de outros milicianos, seja do Comando Vermelho, se aproveitam para avançar sob essas áreas”, explica o pesquisador do Geni/UFF Daniel Hirata.
Outras duas facções criminosas, Terceiro Comando Puro (TCP) e Amigos dos Amigos (ADA), também tiveram recuos, de 13% e 16,7%, respectivamente, de 2022 para 2023.
A pesquisa do Geni/UFF também avaliou a evolução do controle territorial armado ilegal ao longo dos últimos 15 anos no Grande Rio. Segundo o estudo, 8,8% da área construída na região metropolitana eram controlados por algum grupo criminoso em 2008. Em 2023, o percentual mais do que duplicou, passando a ser de 18,2%.
Nesse período mais longo de comparação, que envolve os últimos 15 anos, a milícia foi o grupo armado que mais cresceu no Grande Rio, triplicando sua área de controle entre 2008 e 2023.
Atuação fora do RJ
É na região Norte e no Centro-Oeste do País, onde disputa o domínio do tráfico local e das rotas usadas para se trazer da Colômbia, da Bolívia e do Peru, que o CV teve maior sucesso fora do Rio. A facção conseguiu se tornar hegemônica em Mato Grosso e está presente em todos os Estados do Norte. No Acre, por exemplo, ela domina o Vale do Juruá e Cruzeiro do Sul, próximo da fronteira com o Peru e com a Bolívia. A região é rota de passagem para a cocaína peruana.
No Amazonas, a facção teria promovido em junho de 2021 ataques a delegacias, bancos e ônibus como represália em razão da morte de um de seus integrantes, que estaria sendo extorquido por policiais corruptos. É justamente no Estado em que atua o traficante Clemilson dos Santos Farias, o Tio Patinhas, cuja mulher, Luciane Barbosa Farias, de 37, foi recebida duas vezes neste ano por auxiliares do ministro da Justiça, Flávio Dino, em Brasília, conforme revelou o Estadão.
A facção teria promovido ainda ataques a agentes das forças de segurança no Pará. Em 23 de março deste ano, policiais do Rio mataram Leonardo Costa Araújo, conhecido como Léo 41, de 37 anos, apontado como o chefe do tráfico de drogas no Pará. Ele estava escondido com outros bandidos do estado no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, na região metropolitana do Rio.
A presença de Léo 41 na cidade revela uma tática cada vez mais comum do CV: usar o Rio como refúgio para bandidos de outros estados. Em janeiro, policiais cariocas detiveram em São Conrado, na zona sul, o traficante Messias Tales de Souza Izidio, o Talibã, um dos chefes do tráfico no Ceará. Bandidos da Bahia, Rio Grande do Norte e Mato Grosso também foram localizados no Rio. A estratégia atual da facção passaria pela expansão de seus negócios pelo País, mantendo a disputa de quase uma década pelo mercado da droga.
“Enquanto não houver política pública voltada para desarticulação efetiva das redes econômicas que sustentam os grupos armados e para proteção de funcionários públicos que prestam serviços essenciais em todos os bairros do Grande Rio, conviveremos com essa oscilação onde um ano a milícia cresce mais e no outro CV lidera”, afirma a diretora de Dados e Transparência do Fogo Cruzado, Maria Isabel Couto.
*Com informações do Estadão Conteúdo e Agência Brasil