O que é ficção e realidade na minissérie sobre Maria Bonita

O que é ficção e realidade na minissérie sobre Maria Bonita

"Ísis"Maria e o Cangaço" é inspirada em biografia da primeira mulher integrante de um grupo de cangaceiros. Movimento da virada do século 19 para o 20 ainda desperta fascínio e curiosidade.O avião estava prestes a decolar quando Tânia Alves sentiu um cutucão no braço. Ela olhou para o lado e viu a mão de uma mulher segurando um pedaço de papel. "Ah, é pedido de autógrafo!", pensou, abrindo um sorriso. Não era. Era um bilhete carinhoso: "Muito prazer! Sua filha". Virou-se e viu, numa poltrona atrás da sua, Expedita Ferreira Nunes, hoje com 92 anos, filha do casal Lampião e Maria Bonita.

"Nos abraçamos aos prantos feito duas loucas", recorda a atriz que interpretou Maria Gomes de Oliveira (1910-1938), a mulher de Virgulino Ferreira da Silva (1898-1938), na minissérie Lampião e Maria Bonita, escrita por Aguinaldo Silva e Doc Comparato e exibida pela TV Globo entre os dias 26 de abril e 5 de maio de 1982. "Eu acordava todos os dias às 4h para maquiar o corpo todo. Maria Bonita era mais morena do que eu. Sou meio branquela", admite a atriz que, diferentemente da personagem, não nasceu na Bahia, mas no Rio de Janeiro. "Todo mundo acha que eu sou nordestina", solta uma risada.

Quarenta e três anos depois de Tânia Alves interpretar a protagonista da primeira minissérie da TV brasileira, Ísis Valverde é convidada para dar vida à primeira mulher a fazer parte de um bando de cangaceiros. "Bando, não; grupo de cangaceiros", corrige o cineasta Sérgio Machado, diretor e roteirista de Maria e o Cangaço, minissérie que estreou dia 4 deste mês no Disney Plus. "Lampião não gostava que chamassem seu grupo de bando."

A ideia de transformar a biografia Maria Bonita: Sexo, Violência e Mulheres no Cangaço, de Adriana Negreiros, numa minissérie foi do ator Wagner Moura. Foi ele quem chamou Sérgio Machado para participar do projeto.

Para desenvolver a história, o diretor convidou os roteiristas Sandra Delgado, Armando Praça e Letícia Simões. "Quando você adapta uma obra literária ou biográfica, tem plena liberdade para adicionar elementos da ficção. O que não pode é obrigar este ou aquele personagem a fazer algo que ele não faria", explica Machado, que dirigiu a minissérie ao lado de Thalita Rubio e Adrian Teijido.

"Fio da peste"

Decidido a ser o mais fiel possível à história de Maria Bonita e Lampião, Sérgio Machado recrutou 52 atores nordestinos – apenas quatro, incluindo Ísis Valverde, mineira de Aiuruoca, a 423 quilômetros de Belo Horizonte, e Júlio Andrade, gaúcho de Porto Alegre, não são de lá.

Gravou as cenas em locações como Cabaceiras (PB), mais conhecida como a "Roliúde Nordestina", e Piranhas (AL), município onde foram expostas as cabeças degoladas dos cangaceiros. "Em suas andanças pelo Nordeste, Lampião percorreu sete estados", afirma o pesquisador Jairo Luiz Oliveira. "As únicas exceções são Maranhão e Piauí."

E contou com a consultoria de dois especialistas: o historiador Frederico Pernambucano de Mello, de 77 anos, e o pesquisador Jairo Luiz Oliveira, de 55. Além de ministrar um workshop para o elenco, onde ensinou os atores, entre outras habilidades, a montar a cavalo, Jairo leu os capítulos da minissérie e propôs ajustes no texto. "Nos combates entre cangaceiros e volantes [nome dado às tropas de policiais e civis que perseguiam os cangaceiros pelo Nordeste brasileiro], havia xingamento de ambos os lados. Sugeri alguns como ‘fio da peste' e ‘corno sem vergonha'", diz.

Heróis ou vilões?

Não é a primeira vez que Jairo presta consultoria para produções do gênero. Em seu currículo constam pelo menos mais duas: o filme Entre Irmãs (2017), de Breno Silveira (1964-2022), e a novela Guerreiros do Sol, de Rogério Gomes. Prevista para estrear este ano, a novela do Globoplay foi adaptada do livro Guerreiros do Sol: Violência e Banditismo no Nordeste do Brasil, de Frederico Pernambucano de Mello, e narra o romance fictício entre Rosa (Isadora Cruz) e Josué (Tomás Aquino). Frederico Pernambucano de Mello é autor de Estrelas de Couro: A Estética do Cangaço, Benjamin Abrahão: Entre Anjos e Cangaceiros e Apagando o Lampião: Vida e Morte do Rei do Cangaço.

Jairo também é guia turístico em Angicos (SE), a 174 quilômetros de Aracaju. Foi lá que, no dia 28 de julho de 1938, Lampião, Maria Bonita e nove cangaceiros perderam a vida numa emboscada. "As perguntas que mais ouço são: ‘Lampião era bandido ou herói?' e ‘Maria Bonita era tão má quanto Lampião?' ", comenta o turismólogo. "Nessas horas, respondo que Lampião tinha defeitos e virtudes, e que Maria Bonita era forte, mas não era violenta."

Pelos cálculos do diretor, 90% das cenas de Maria e o Cangaço são baseadas em histórias reais. Duas, admite, são pura invencionice: a cena do eclipse durante uma batalha, logo no primeiro episódio, e a visita de Lampião a uma ex-cantora de ópera, no quarto episódio.

"Não aconteceram, mas poderiam ter acontecido", despista. A cena do eclipse, inclusive, foi inspirada num "causo" que ele ouviu em 1998 quando era assistente de direção de Walter Salles no filme Central do Brasil. "As pessoas não acreditavam que aquilo [eclipse] pudesse acontecer", relata.

Outra "liberdade artística e poética" tomada por Sérgio Machado na minissérie é mostrar Maria Bonita pegando em armas. Quem afirma é a própria autora do livro, Adriana Negreiros. "Não era uma Joana D'Arc da caatinga", pondera a jornalista. "Tinha espírito aventureiro, mas não era a heroína que todos pensam. No cangaço, pegar em armas era prerrogativa masculina. Mas, imagino que, se precisasse, Maria era brava o bastante para combater. "

Na minissérie adaptada do livro de Adriana Negreiros, a história do cangaço é contada através da perspectiva feminina. "Há um fascínio histórico em construir narrativas que tornam as mulheres excepcionais apenas quando vinculadas a grandes homens. Em nossa abordagem, revelamos uma Maria protagonista de sua história. Uma mulher que não só participou do cangaço, mas que o transformou. Maria Bonita foi revolucionária. Não por ser perfeita, mas por ser humana. Era livre num mundo que a queria domesticada", exalta a roteirista Letícia Simões.

Uma rajada de balas

O livro de Adriana Negreiros não foi o único a ser publicado em 2018, por ocasião do aniversário de 80 anos da morte de Lampião e Maria Bonita – ou seria de Maria Bonita e Lampião? Houve outros, como Lampião e Maria Bonita: Uma História de Amor e Balas, do jornalista Wagner G. Barreira.

"Maria Bonita foi um produto de seu meio. Não era heroína, nem feminista. O que não se pode tirar dela é a potência de abandonar um casamento infeliz e buscar o amor, ainda que o objeto de sua paixão tenha sido o bandoleiro mais famoso de seu tempo", define Barreira.

Em suas pesquisas, Barreira investigou a influência do cangaço nos segmentos culturais brasileiros: da literatura de Graciliano Ramos (1892-1953) às pinturas de Cândido Portinari (1903-1962), da música de Luiz Gonzaga (1912-1989) à moda de Zuzu Angel (1921-1976). Isso, sem falar no cinema. De O Cangaceiro (1953) a Bacurau (2019), passando por Mazzaropi (O Lamparina, de 1964), pornochanchada (A Ilha das Cangaceiras Virgens, de 1976), Os Trapalhões (O Cangaceiro Trapalhão, de 1983) e retomada pós-Collor (O Baile Perfumado, de 1996).

"Lampião era um fora da lei que se apaixona por uma mulher casada. No entanto, esses personagens históricos projetaram uma sombra muito maior", analisa Barreira. "Lampião sobreviveu, sem paradeiro, pelo menos de 1922 a 1938. Quando morreu, deixou um rastro de violência e a fama de valente. Isso criou uma mitologia. Os mitos gregos também nasceram de histórias contadas e recontadas muito antes da escrita."

Se depender da roteirista Letícia Wierzchowski e do diretor Jayme Monjardim, o mito de Maria Bonita não vai desaparecer tão cedo. A dupla está preparando um longa-metragem sobre a rainha do cangaço, ainda sem título definitivo ou previsão de estreia.

O cineasta já se encontrou até com a filha do casal, Expedita Ferreira Nunes, que aprovou o projeto. "Não fez qualquer exigência", afirma Wierzchowski. "Apenas pediu que não disséssemos inverdades sobre a família dela, nem que a tratássemos com muita dureza."

No roteiro, a escritora gaúcha enfatiza o lado materno da personagem. As cangaceiras não podiam criar os filhos. Se chorassem, denunciariam o paradeiro do grupo. Eram obrigadas a entregá-los para adoção. No caso de Expedita, que tinha cinco anos quando os pais foram mortos, ela foi criada por um casal que tinha treze filhos.

"Os filmes de cangaço são o faroeste do cinema nacional", compara o roteirista Doc Comparato, um dos autores da minissérie Lampião e Maria Bonita, no catálogo do canal de streaming Globoplay.

"São uma espécie de Bonnie & Clyde do sertão nordestino", arremata o diretor Sérgio Machado, fazendo alusão ao casal de assaltantes de banco dos Estados Unidos que foram mortos pela polícia em uma emboscada no dia 23 de maio de 1934. "Jovens e indomáveis, Lampião e Maria Bonita são dois personagens absolutamente fascinantes e extraordinários."