“Confinamento” e “arquitetura hostil” são alguns dos termos usados para descrever o muro com cerca de 40 metros de extensão e 2,5 metros de altura construído pela Prefeitura de São Paulo na Cracolândia, no Centro de São Paulo. A ação da administração municipal foi duramente criticada, tanto que a Defensoria Pública do Estado de São Paulo recomendou a retirada do muro e gradil, e o ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Alexandre de Moraes deu 24 horas para que o prefeito Ricardo Nunes (MDB) preste esclarecimentos.
Os usuários de substâncias psicoativas ficam aglomerados atrás do muro, em uma área composta pela Rua dos Protestantes e a Rua dos Gusmões, na região da Santa Ifigênia, cercada com gradis.
Questionada pelo site IstoÉ, a Prefeitura de São Paulo informou que o muro tem por objetivo garantir a segurança, o acesso e atendimento às pessoas que ocupavam o terreno público. A administração municipal ainda ressaltou que antes havia no local tapumes que quebravam com frequência, oferecendo risco de ferimento aos frequentadores. “Não há confinamento”, acrescentou.
Ação resolve o problema da Cracolândia?
A questão da Cracolândia é um problema que se arrasta há décadas na cidade de São Paulo. Administrações municipais, como a Gilberto Kassab, João Dória, Bruno Covas e Ricardo Nunes, procuraram resolver o caso por meio de ações voltadas à Segurança Pública, usando forças de repressão que fizeram com que os usuários se espalhassem por outras regiões centrais.
A construção do muro foi a última atitude adotada pela Prefeitura de São Paulo. No entanto, para a doutoranda em antropologia social pela USP (Universidade de São Paulo) e pesquisadora do território da Cracolândia, Amanda Gabriela Amparo, isso não resolve o problema, pois fez com que houvesse uma redução de usuários no chamado fluxo, que se espalharam para outras regiões, dificultando “o acesso a essas pessoas e criação de vínculo com os trabalhadores da rede de saúde e assistência social”.
“A meu ver, a real intenção da prefeitura para a construção do muro era tornar o local hostil ao ponto que os usuários parassem de frequentá-lo, o que de fato aconteceu”, acrescentou.
A coordenadora de projetos do Instituto Sou da Paz, Cristina Neme, concordou com a argumentação da pesquisadora e ressaltou que a questão exige a adoção de uma política pública articulada entre a saúde, assistência social e segurança pública.
“Me parece que a prefeitura quis adotar uma medida imediatista com a construção do muro, porém isso não traz benefícios a médio e longo prazo. É necessário o investimento e fortalecimento de políticas públicas que têm caráter mais intersetorial”, afirmou.
Na concepção de Amanda, uma das soluções é pensar na necessidade das pessoas que encontram-se na Cracolândia. “A maioria daquela população está em situação de rua e vulnerável em diversos sentidos. Então é preciso garantir serviços de assistência que realmente consigam acessar essas pessoas, além de oferecer moradia, saúde, trabalho e condições dignas para os usuários”, explicou.
Como ocorreu a construção do muro?
O contrato para a construção do muro foi fechado em 15 de abril de 2024. A empresa Kagimasua Construções Ltda venceu a licitação pública por oferecer o menor valor. Diversas empresas participaram do pregão com lances acima de R$ 100 mil, mas somente a Kagimasua teve a proposta negociada. Segundo dados divulgados pela Subprefeitura da Sé, o valor total ficou e R$ 95.999,98.
A obra teve início no dia 2 de maio de 2024 e foi concluída no final de junho do mesmo ano.
Ofício da Defensoria Pública
No entanto, o caso só ganhou repercussão nesta semana, fazendo com que chegasse à Justiça de São Paulo. Na quarta-feira, 15, a Defensoria Pública enviou um ofício à Prefeitura de São Paulo recomendando a retirada dos gradis e demais barreiras físicas colocadas no local.
No documento, ao qual o site IstoÉ teve acesso, a Defensoria afirmou que as instalações “impedem a livre circulação de pessoas em vias e espaços públicos sem qualquer justificativa legal, já que eles limitam de diferentes formas o uso do espaço público, a livre circulação das pessoas, o acesso à água potável e a banheiros”.
Além disso, destacou que as instalações representam uma “arquitetura hostil”, com “finalidade espúria de afastar a população em situação de rua”.
De acordo com o órgão, atitudes como essa já foram adotadas em outras oportunidades e “não há qualquer comprovação de sua eficiência para atingir os objetivos declarados (pela Prefeitura) de melhor atender os usuários”.
No ofício, a Defensoria ainda solicitou cópia do procedimento utilizado para a colocação de gradis e a construção do muro, no intuito de “verificar sua legalidade e motivação, assim como sejam respondidas formalmente algumas indagações”.
Indagada pelo site IstoÉ, a prefeitura informou que a Secretaria Executiva de Projetos Estratégicos é a responsável por analisar o ofício, que “será respondido após essa avaliação”.
STF cobra explicações
Após ser acionado por parlamentares do PSOL, o ministro do STF Alexandre de Moraes deu na quinta-feira, 16, prazo de 24 horas para que o prefeito Ricardo Nunes explique a construção do muro.
Segundo os parlamentares, a construção isola e exclui socialmente as pessoas que vivem na Cracolândia, violando assim os direitos fundamentais da Constituição, que são: igualdade, liberdade e acesso a direitos essenciais.