Por alguns dias, parecia que a Venezuela, após 25 anos de regime chavista, poderia estar entrando numa nova era, pois várias pesquisas apontavam que a oposição tinha chances de vencer o pleito presidencial deste domingo (28/07).
Durante a madrugada, no entanto, o Conselho Nacional Eleitoral (CNE), um órgão fortemente controlado pelo regime, declarou que Nicolás Maduro, no poder desde 2013, havia conquistado um terceiro mandato de seis anos. O anúncio do resultado foi imediatamente visto com ceticismo por boa parte da comunidade internacional e levantou acusações de fraude.
Divulgação de resultados duvidosa e acusações de fraude
Segundo o CNE, com 80% das urnas apuradas, Maduro havia conquistado 51,2% dos votos, enquanto Edmundo González, o principal candidato da oposição, havia recebido 44%. Um “resultado irreversível”, declarou a chefia do órgão.
Depois, o site do CNE saiu do ar, sem divulgação da contagem final. A oposição contestou, afirmando que uma contagem realizada a partir de atas de votação disponibilizadas aos fiscais de seu grupo político (cerca de 40% do total), sinalizaram que González caminhava para receber 70% dos votos.
A desconfiança em relação ao resultado anunciado pelo CNE também foi exacerbada pela ausência de divulgação de todas atas da eleição. A oposição diz que esses documentos podem eventualmente provar que Maduro não teve mais votos. Paralelamente, oposicionistas reclamaram que foram impedidos de acessar a maioria dos boletins de urna em locais de votação.
A oposição ainda denunciou que muitos centros de votação foram abertos com atraso, e que o processo foi marcado por lentidão injustificável, sugerindo que o regime queria desestimular os eleitores. Também houve denúncias de que centenas de fiscais ligados à oposição foram expulsos de seções.
“Vencemos e todos sabem disso. Queremos dizer a toda a Venezuela e ao mundo que a Venezuela tem um novo presidente eleito e é Edmundo González Urrutia”, afirmou a líder oposicionista María Corina Machado.
Como outros países reagiram?
O resultado oficial divulgado pelo Conselho Nacional Eleitoral (CNE), controlado pelos chavistas, só foi reconhecido por países aliados de Maduro, na maioria ditaduras ou regimes que também encenam eleições de fachada regularmente. Maduro recebeu felicitações da China, Rússia, Irã, Nicarágua, Cuba e Belarus. Já o Chile, Argentina, Estados Unidos, Espanha, Uruguai, Paraguai, Costa Rica foram críticos e sinalizaram suspeitas de fraudes no processo. A União Europeia pediu “total transparência”.
“O regime de Maduro deve entender que os resultados publicados são difíceis de acreditar. A comunidade internacional e sobretudo o povo venezuelano, incluindo os milhões de venezuelanos no exílio, exige total transparência das ações e do processo”, exigiu o presidente chileno, Gabriel Boric.
O Brasil, por sua vez, após horas de silêncio, evitou felicitar Maduro, esperando mais dados sobre a votação. Em nota, o Itamaraty disse aguardar “a publicação pelo Conselho Nacional Eleitoral de dados desagregados por mesa de votação, passo indispensável para a transparência, credibilidade e legitimidade do resultado do pleito”.
Eleição que não foi livre desde o início
O pleito de domingo havia sido negociado em 2023 entre a oposição e o regime, com mediação da Noruega e aval do Brasil. O acerto foi assinado na nação caribenha de Barbados e previa a realização em 2024 de eleições livres e justas, incluindo a libertação dos presos políticos. Em troca, a Venezuela poderia esperar o alívio de algumas das sanções impostas pelos EUA e a União Europeia.
Mas o regime logo começou a minar o acordo, barrando candidatos oposicionistas, prendendo dissidentes e lançando ameaças para intimidar o eleitorado. Tanto María Corina Machado, a líder da oposição, quanto Corina Yoris, sua primeira substituta, foram barradas pela Justiça Eleitoral e posteriormente pelo Supremo do país, ambos controlados pelo chavismo. De última hora, a oposição então se organizou em torno do diplomata aposentado Edmundo González, de 74 anos, um nome praticamente desconhecido, mas que acabou sendo aceito pelo regime.
A campanha também foi árdua para a oposição. Em comícios, policiais e membros de coletivos chavistas frequentemente bloquearam acessos para dificultar a participação ou intimidar oposicionistas.
Em março, Maduro também classificou de “terrorista” o partido de María Corina, o Vem Venezuela (VV). Na sequência, sete membros do VV foram presos. Maduro também lançou várias ameaças, chegando a prever que a Venezuela seria palco de um “banho de sangue”, caso o chavismo saísse derrotado.
O governo também dificultou ao máximo o voto por parte da gigantesca diáspora venezuelana. Apenas 1% dos 7,7 milhões de venezuelanos que vivem fora do país foram habilitados a votar.
A poucos dias da eleição, o regime também barrou a presença de observadores internacionais, incluindo uma delegação formada por ex-presidentes latino-americanos, um grupo de parlamentes e eurodeputados espanhóis e dois senadores chilenos.
O que pode acontecer?
O histórico do regime não era favorável a um cenário de aceitação de uma eventual derrota oficial. Nos anos 2000, a oposição venceu eleições municipais em diversas cidades venezuelanas, incluindo Caracas. O regime respondeu passando decretos para criar novos distritos, com o objetivo de engolir as municipalidades esvaziar o poder dos prefeitos oposicionistas.
No final de 2016 e 2017, após a oposição conquistar maioria na Assembleia Nacional, o regime aproveitou os últimos dias da legislatura anterior governista para nomear 13 novos juízes chavistas para o Tribunal Supremo de Justiça TSJ), a mais alta corte do país. Em 2017, o objetivo da estratégia ficou claro, quando o TSJ acabaria por cassar os poderes da Assembleia Nacional. Paralelamente, o regime criou uma nova Assembleia Constitucional paralela, para esvaziar ainda mais o poder dos oposicionistas.
Agora, analistas apontam para os riscos de Maduro continuar se agarrando ao poder em meio a mais um cenário de suspeita de fraude.
“Depois da ousadia do regime de Nicolás Maduro [em apostar na] fraude, é importante lembrar o que pode acontecer: prisões, repressão em massa e muito pior. Uma possibilidade é uma “nicaraguanização” do país”, avaliou Ryan Berg, diretor do Programa do think tank CSIS. A alusão é ao regime de Daniel Ortega, cuja repressão a uma onda de protestos em 2018 resultou na morte de mais de 300 cidadãos e intensificou o êxodo do país: estima-se que 10% da população da Nicarágua tenha fugido nos últimos seis anos.
Por enquanto, a oposição ainda não convocou grandes manifestações, mas alguns protestos foram registrados na segunda-feira. O país já foi palco de ondas de protestos em 2013, 2014, 2017 e 2019, que tiveram como gatilho tanto a ruína econômica que aflige a Venezuela quanto acusações de manipulação de resultados eleitorais. Em todos os casos, o regime reagiu com violência, e a repressão deixou dezenas de mortes.
“Isso não termina aqui. Maduro precisa convencer a elite governante de que pode manter as coisas sob controle, mas tanto ele quanto os militares sabem que ele não pode governar um país em chamas”, avaliou o analista Geoff Ramsey, do think tank americano Atlantic Council, na rede X.
Outros analistas apontam que a reação da comunidade internacional, qualquer que seja o cenário (comprovação de resultados ou confirmação de fraude explícita) também deve ter papel para uma solução política.
No sábado, os EUA haviam advertido que pretendiam “calibrar” suas sanções contra o regime venezuelano a depender de como a eleição ocorresse. Washington também havia dito a Maduro que, se ele declarasse vitória sem uma prova convincente, “colocaria em questão” se a comunidade internacional deveria aceitar o resultado. Em 2023, os EUA haviam aliviado parte das sanções, no contexto do acordo para a realização de eleições. Caso o regime chavista insista numa possível fraude, é certo que novas sanções serão reimpostas pelo governo Joe Biden.
Dentro da Venezuela, historicamente a oposição não tem quase nenhum espaço de manobra para contestar legalmente uma eleição no aparato de Justiça, e mecanismo externos são morosos quando envolvem a Venezuela.
Em 2013, após acusar irregularidades na eleição daquele ano, o candidato oficialmente derrotado á Presidência Henrique Capriles, recorreu ao TSJ, já aparelhado pelo regime, para impugnar o pleito. O pedido foi rejeitado. Capriles então acionou a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, ligada à Organização dos Estados Americanos (OEA). Foram precisos nove anos para que a corte atestasse a violação do direito de Capriles de participar “em igualdade de condições”.