Depois de quase três dias em lugar incerto, Vladimir Putin reapareceu na segunda à noite para tentar conter os danos causados pela rebelião liderada pelo oligarca Yevgeny Prigozhin no último sábado. Apesar do nervosismo evidente, o presidente tentou aparentar normalidade, elogiou os militares que teriam evitado um “banho de sangue” e prometeu anistia e integração às forças armadas dos mercenários liderados por Prigozhin que marcharam rumo a Moscou, desafiando o Kremlin.

Apesar da desajeitada contenção de danos, a manifestação de Putin é o retrato de uma mudança histórica. Putin enfrentou o maior questionamento à sua autoridade desde que assumiu o poder na Rússia na virada dos anos 2000, após o colapso do governo Boris Iéltsin nos anos 1990. Até recentemente era um dos homens mais poderosos do mundo, aspirando rivalizar com o poderio ascendente da China e se manter eternamente na direção do seu país, por meio de uma ditadura feroz com verniz democrático e regras que garantiam sua recondução praticamente irrestrita e sem contestações.

Putin herdou de Iéltsin o sistema de oligarcas, a cleptocracia de bilionários que prestam lealdade ao presidente após receberem nacos importantes do antigo Estado soviético, de áreas como petróleo, finanças e comunicações. Eles se beneficiam financeiramente e sustentam politicamente o chefe de Estado, representando o topo da elite russa, ao lado de militares e forças de segurança. Putin reciclou os nomes que sustentam o regime desde o fim do comunismo e colocou a seu redor figuras de confiança, muitos egressos dos antigos escalões inferiores da KGB (como ele mesmo).

Manter a fidelidade desse grupo é um elemento-chave para a sustentação do poder. Depois da invasão da Ucrânia, no início de 2022, vários oligarcas morreram de forma misteriosa. Há a suspeita de que Putin tenha eliminado possíveis críticos, como faz abertamente com opositores ao seu regime (o envenenamento de Navalny, mais famoso adversário político, é um dos casos mais conhecidos e bem documentados). Prigozhin era um dos mais próximos de Putin e fazia o “serviço sujo” para o presidente. É dele a “fábrica de trolls” que foi montada para interferir nas eleições americanas de 2016, que teria ajudado Donald Trump a se eleger.

Prigozhin criou o grupo paramilitar Wagner para executar clandestinamente os interesses de Putin no exterior. O nome do grupo já explica tudo. Inspira-se no compositor Richard Wagner, o preferido de Hitler. É um grupo especializado em atrocidades, torturas e crimes de guerra. Para atuar na Ucrânia, Prigozhin recrutou condenados nas prisões russas, sob o beneplácito de Putin. O próprio presidente, agora irritado, declarou que o Wagner ganhou para atuar na Ucrânia mais de US$ 1 bilhão do governo russo. O Wagner também foi irrigado com o dinheiro de contratos para fornecer comida para o Exército russo (especialidade original de Prigozhin, o que rendeu outros US$ 900 milhões) e para abastecer escolas públicas. Na África, os mercenários do Wagner ficam como os espólios de guerra, assim como fizeram na Síria.

Putin percebeu o risco que o poder excessivo de Prigozhin na campanha ucraniana representava e resolveu tirar o apoio e os recursos que destinava ao pupilo. Daí a revolta de Prigozhin, que se voltou contra o mentor. A trégua na marcha a Moscou dos seus soldados e o exílio dele na Belarus não encerram a história. Apenas mostram que o regime de oligarcas está implodindo.

Desde os primeiros dias da invasão na Ucrânia é sabido que essa é uma guerra perdida para Putin, impossível de ser ganhada militarmente, como aconteceu na antiga invasão do Afeganistão. Putin queria ampliar seu poder interno e sua influência no exterior ao invadir o vizinho, num imperialismo nostálgico e que lembrava o expansionismo fascista que desembocou na Segunda Guerra. Ao contrário do que pretendia, isolou economicamente seu país, fez renascer a OTAN e recolocou os EUA no papel de garantidor do equilíbrio internacional. Ao invés de restabelecer a glória soviética, Putin pode entrar na história como o responsável por desmantelar um Estado anacrônico que emergiu após o fim da Guerra Fria: um regime que sonhou herdar o poderio comunista repetindo suas piores práticas.