O que a eleição do socialista Mamdani em NY diz sobre o futuro dos EUA

Segundo especialistas, resultado indica mudança na preferência do eleitorado e racha interno no Partido Democrata

O que a eleição do socialista Mamdani em NY diz sobre o futuro dos EUA

Os votantes da cidade de Nova York, nos Estados Unidos, foram às urnas na terça-feira, 4 de novembro, para decidir quem será o novo prefeito da “capital global”. A vitória do socialista muçulmano Zohran Mamdani, do Partido Democrata, foi oficializada no mesmo dia da votação e já era prevista pelas pesquisas.

Desde que venceu nas prévias, Mamdani foi encarado como o favorito – ele é o primeiro indiano-americano e o primeiro muçulmano a comandar a cidade. Em reação ao resultado das primárias, o presidente Donald Trump chegou a alegar que não deixaria “um lunático comunista” destruir Nova York. A oposição do republicano se dá pelas bandeiras do novo prefeito, que defende medidas humanitárias e de justiça social.

A corrida, porém, ganhou atenção pelas implicações além do contexto local. Especialistas encaram a disputa como um “teste de narrativas” em dois níveis: primeiro, um termômetro para as eleições de meio de mandato, que definirá os políticos integrantes da Câmara e do Senado americano. Os eleitores NY – que inclui muitos trabalhadores do setor financeiro, segundo alega a imprensa americana – sempre foram decisivos na luta pelas cadeiras no Congresso, hoje majoritariamente Republicano. Uma sinalização mais progressista no âmbito da prefeitura pode indicar como será a preferência da população nova-iorquina nas próximas votações.

Em segundo momento, o resultado em Nova York desenha o futuro interno dos partidos, em especial o Democrata. Com enfática mudança de perfil nos últimos anos, as legendas têm notado uma perda de confiança eleitoral em figuras “moderadas” – simultaneamente à ascensão de personalidades extremas como resposta política. A eleição de um candidato “mais radical” para o parâmetro norte-americano pode delinear a estratégia do Partido Democrata nas próximas disputas, considerando que as concessões feitas aos conservadores não renderam sucesso eleitoral ao campo progressista.

Quem é Mamdani?

Zohran Mamdani se dirige a apoiadores, após a notícia de sua vitória nas primárias do Partido Democrata à Prefeitura de Nova York

Zohran Mamdani se dirige a apoiadores, após a notícia de sua vitória nas primárias do Partido Democrata à Prefeitura de Nova York

Atualmente com 34 anos, Zohran Kwame Mamdani nasceu em Campala, capital da Uganda. Tem pai indiano e mãe indo-americana, sendo seu nome do meio (Kwame) uma homenagem ao primeiro presidente de Gana. Democrata e membro dos Socialistas Democráticos da América, foi eleito pela primeira vez para a Assembleia do Estado de Nova York em 2020, sendo deputado estadual representante do Queens. Em 2024, anunciou candidatura à prefeitura da cidade de Nova York para a eleição de 2025.

Mamdani promete transporte público gratuito, congelamento de aluguéis, creches universais e supermercados subsidiados. Ele enfatiza questões como a proteção de comunidades LGBTQIAP+ e de imigrantes, especialmente com as fortes ofensivas de Trump contra esses grupos.

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Existe esquerda nos EUA?

Antes de adentrar as disputas ideológicas, o pesquisador de Harvard e professor de relações internacionais da UFF (Universidade Federal Fluminense) Vitelio Brustolin pondera a importância de delimitar conceitos que, quando exportados aos EUA, ganham outra conotação. Termos como “esquerda” e “direita”, se vistos com a lente brasileira, não serão representativos na política norte-americana.

Segundo explica o professor, há uma discussão dentro da academia brasileira de, no geral, questionar a existência da “esquerda” nos Estados Unidos. O que se institui é a análise dos partidos “mais à esquerda” em comparação com a média estadunidense.

No cenário político dos Estados Unidos, prevalece o bipartidarismo – um sistema dominado, há mais de um século, por apenas dois grandes partidos: o Democrata e o Republicano. Embora existam outras legendas, elas têm pouca expressão devido às regras eleitorais e ao modelo de votação majoritária. De modo simplificado, pessoas identificadas com alas mais progressistas são comumente associadas ao Partido Democrata, enquanto o Partido Republicano é reconhecido pelo eleitorado conservador.

Campo moderado sem credibilidade

O que a eleição do socialista Mamdani em NY diz sobre o futuro dos EUA

O presidente dos EUA, Donald Trump, durante comício em Juneau, Wisconsin, EUA 06/10/2024

O sucesso de políticos com posicionamentos mais claros e incisivos é um bom argumento, segundo Brustolin, para afirmar que o campo moderado perdeu o apelo que tinha. Figuras menos ideológicas, ao se mostrarem abertas à concessões, têm perdido a credibilidade do eleitorado ao invés de conquistá-lo.

“Há muitas análises apontando que a ala mais moderada dos democratas têm obtido resultados eleitorais insatisfatórios e é vista como pouco transformadora.”

O professor diz que, dentro do contexto norte-americano, existe uma frase recorrente que ironiza o fenômeno dos democratas moderados: “Already embracing Republican policies and affect, yet still losing” (Já adotando a postura e as políticas republicanas, mas ainda assim perdendo).

A extrema-direita americana, em especial, conseguiu se consolidar nos últimos anos de forma coesa, institucional e ainda mais radical, emplacando vitórias presidenciais e parlamentares. Esse movimento gera, para muitos analistas, uma resposta igualmente “extrema” – a “corda esticou” para os dois lados, a ser exemplificado pela eleição de Mamdani, um socialista, para o comando de uma das cidades com maior relevância do país americano. Brustolin indica que a mudança de perfil dos democratas e republicanos, porém, foi visivelmente assimétrica.

“Há evidências empíricas de que, pelo menos nas últimas duas décadas- com aceleração em episódios recentes -, a ala mais à direita do Partido Republicano, o movimento MAGA, experimentou uma consolidação mais nítida, com comportamentos mais coesos e, em alguns casos, mais radicais do que a esquerda institucional”.

A radicalização, segundo o professor, se dá por diferentes motivos: fatores socioeconômicos, como a desigualdade crescente, bolhas informacionais nas redes sociais e na mídia partidária. O fenômeno é reforçado por lideranças nacionais polarizadoras, fragmentação institucional, tribalização dos meios de comunicação, judicialização e disputas por regras eleitorais. Esses elementos atuam em conjunto e se autoalimentam, ampliando divisões políticas e sociais no país.

“Também existe uma estratégia de mobilização do eleitorado base. Quando os moderados têm dificuldade em convencer os swing voters – aqueles que podem votar de um lado ou de outro dependendo da eleição -, uma tática pode ser energizar a base com mensagens mais fortes e ideológicas, para compensar com alta taxa de participação. Ou seja, trata-se de usar a radicalização como mecanismo de mobilização”, ressalta Brustolin.

Racha Interno

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Andrew Cuomo, fotografado em 10 de maio de 2021, em Nova York – POOL/AFP/Arquivos

A eleição de Mamdani não mostrou apenas uma “radicalização” na preferência do eleitorado norte-americano, mas também trouxe à tona cisões internas do Partido Democrata. Veículos americanos como o “The Washington Post” e “The New York Times” explicam que a asa mais moderada dos democratas teme que o muçulmano possa ser usado pela oposição como “bicho-papão comunista” a fim de assustar os votantes.

Esse racha se materializa no adversário de Mamdani na corrida eleitoral pela prefeitura de Nova York: Andrew Cuomo, também do Partido Democrata. No dia da votação, inclusive, o presidente Donald Trump declarou apoio a Cuomo e pediu para seus apoiadores não votarem no candidato do Partido Republicano – uma vez que o democrata moderado era o candidato mais competitivo contra Mamdani. O mandatário também voltou a chamar o novo prefeito de “comunista”.

 

A corrida eleitoral entre Mamdani e Cuomo, ambos do Partido Democrata, revela um conflito interno pela direção futura da legenda, polarizando-a entre posturas moderada/centrista e progressista/radical. Mais do que uma competição local, a disputa é vista como um confronto sobre o futuro do partido no período pós-Biden, reconhecido justamente pela moderação.

Vitelio Brustolin explica que Mamdani, alinhado a figuras como a congressista Alexandria Ocasio-Cortez e o senador de Vermont Bernie Sanders, defende um partido mais combativo, com foco em redistribuição de renda, taxação de grandes fortunas, transporte gratuito, moradia pública e ativismo climático. Já Cuomo, ex-governador de Nova York, representa a ala centrista, defendendo moderação, pragmatismo, segurança pública e estabilidade fiscal, apostando na negociação e na experiência como trunfos eleitorais.

“A polarização não é só bipartidária, mas também dentro de cada partido. O mundo está cada vez mais dividido”.

Moderação como tática de sobrevivência

Apesar da disputa em NY refletir que o centro político perdeu hegemonia simbólica e as concessões têm sido vistas por parte do eleitorado como estagnação, Vitelio alerta que “nem toda mudança de perfil por parte dos candidatos significa o abandono completo da moderação”. Estrategistas e analistas sublinham que, apesar de movimentos em direção a extremos, muitos candidatos progressistas continuam a buscar compromissos e eleitores moderados ou independentes.

O esforço para equilibrar uma plataforma ideologicamente definida com a necessidade de atrair o centro é evidente. O próprio Mamdani estabeleceu contatos com lideranças empresariais especificamente para “acalmar medos” relacionados à sua campanha política.

“Moderado também é um termo amplo e muda de acordo com a ideologia local, quando contexto estadual, municipal, portanto, é difícil fazer generalizações nacionais”, finaliza.