Enganam-se os que pensam que punk é apenas sinônimo de baderna ou música barulhenta. Aliás, o termo “punk”, em inglês, ganhou vários significados através dos tempos, mas em seu sentido original significa “desocupado” ou “delinquente” e aparece no dicionário de Oxford pela primeira vez no século 17. Quando foi para a música em meados dos anos 1970, a palavra ganhou a aura de liberdade e também de contestação e revolta contra a ordem vigente. Bandas internacionais como “Ramones” e “Sex Pistols” são tidas como as precursoras, mas mesmo entre os especialistas e aficionados não há consenso quando tudo realmente começou, já que há dezenas de subgêneros como o proto-punk, o punk-rock e o hardcore, para citar apenas alguns. “É difícil precisar, podemos pensar em lançamentos de discos, mas mesmo assim os mais antigos misturavam diversos estilos musicais”, explica Clemente Tadeu, um dos principais aficionados sobre o tema no Brasil.

“Comecei a ouvir rock aos 13 anos. Pintava os dentes de azul, usava roupa rasgada e meu pai era policial militar. Ele me expulsou de casa” João Gordo, cantor e ativista vegano (Crédito:Divulgação)

Foi Clemente quem fundou, ao lado de Douglas Viscaino, a primeira banda no País, a “Restos de Nada”, em 1978. “Os shows começaram bem antes, mas nada era organizado, era um monte de moleques querendo falar da realidade que estavam vivendo. Algo que as músicas gringas não nos diziam”, diz. A ditadura militar e a falta de informações claras vindas dos veículos de imprensa censurados à época foram o pontapé para as letras de música cheias de revolta em português. Até o cantor e compositor Chico Buarque, conhecido por suas composições de protesto, se manifestou: “Se o punk é o lixo, a miséria e a violência, então não precisamos importá-lo da Europa, pois já somos a vanguarda do punk em todo o mundo.” Essa situação persiste no Brasil, onde a miséria e a violência continuam sendo um grande impulso criativo. Além disso, a atitude punk de questionar o poder e viver com liberdade ganha atualidade com o ressurgimento de governos autoritários e de movimentos de direita, como o bolsonarismo, que estimulam novos discursos de protesto e atitudes radicais.

“Ser punk é ter originalidade. É não se importar com o que os outros pensam de você” Sandra Coutinho, baixista e compositora

Um momento emblemático do Punk no Brasil foi 1981, ano em que Clemente criou a banda “Inocentes” e surgiu o grupo mais conhecido até hoje, o “Ratos de Porão”, do qual o músico e ex-VJ da MTV João Gordo passaria a fazer parte em 1983, ao completar 19 anos. Em 1982 aconteceu outro marco: o festival “O Começo do Fim do mundo”, para firmar e unir as diversas facções e bandas punks da grande São Paulo. Realizado no SESC Pompeia, na capital paulista, contou com a presença de mais de 20 bandas, como “Cólera”, “Suburbanos” e “Lixomania”. Distante do som hippie e dos solos de guitarra, a música atraiu a juventude que flertava com o movimento anarquista ou queria apenas gritar as suas dores e angústias para quem quisesse — ou não — ouvir. “Garotos Podres”, “As Mercenárias” e “Os Replicantes”, de Porto Alegre, vieram no embalo do que acontecia no sudeste.

Imaginário popular

“Comecei a ouvir rock aos 13 anos. Pintava os dentes de azul, usava roupa rasgada e meu pai era policial militar, imagina como foi?”, conta João Gordo. “Quando repeti a sétima série, ele me mandou para o interior de São Paulo e quando voltei me expulsou de casa.” Ele lembra que o punk inglês e o americano eram até pop naqueles tempos. “Apareceu no ‘Fantástico’, as pessoas começaram a sacar o que era”, diz. As imagens de jovens vestidos com roupas rasgadas, coturnos, cabelo moicano e jaquetas de couro com itens metalizados entraram para o imaginário popular e foram incorporadas pela moda.

A ex-baixista da banda “As Mercenárias”, Sandra Coutinho, cresceu aprendendo música erudita e só foi ter contato com o punk quando começou a estudar Jornalismo e depois Teatro, na Universidade de São Paulo, a USP. “Eu mais protestava do que estudava, assim que entrei, fui presa”, diz. Nascida em 1959, ela se considera velha ao lado dos amigos Clemente e João Gordo. “Eles eram moleques, eu já tinha idade quando comecei nos anos 1980”, diz. Para Sandra, que passou boa parte da vida na Alemanha, ser punk é ser quem se é. “É não se importar com o que pensam de você”, diz. Segundo ela, o movimento muda conforme a sociedade, mas o que a desagrada é ver a apatia dos jovens de hoje diante das desigualdades do País. “As pessoas vão a protesto para postar foto nas redes sociais e para parecerem politicamente engajadas, mas não é algo verdadeiro”, afirma. O vestuário da época era considerado uma afronta. “Nós fazíamos as nossas próprias roupas. Eu usava a calça jeans rasgada porque era velha. Hoje você entra em qualquer loja e compra todos aqueles itens que eram vistos com repúdio por preços bem altos”, afirma. Uma jaqueta jeans estilizada com grafite e riscos de caneta da marca francesa Balmain custa R$ 21 mil no Brasil.

Diversidade racial

Apesar de o estilo ser marcado por pessoas brancas, no Brasil e nas periferias de São Paulo onde começou, havia uma diversidade bastante marcante. “Eu inventei o afro-punk e nem sabia”, brinca Clemente Tadeu, que é negro. As mulheres também estavam presentes. “Nós éramos pobres, não tínhamos dinheiro para nada e encontramos no punk uma forma de pensar que era diferente da que nos era imposta”, diz. Mesmo que ligado ao movimento Anarquista, ideologia política que propõe a ausência de qualquer forma de controle pelo poder executivo, os “punkeiros” do Brasil nem sempre eram politizados ou tinham a escolaridade necessária para defender um projeto de governo ou ausência dele.

Aos 56 anos, ao ser perguntado pela ISTOÉ se ainda é punk, João Gordo disse: “Porra, punk é o caralho. Eu sou mó tiozinho”. A banda “Ratos de Porão” foi a única da época a fazer sucesso na Europa e foi ainda acusada de mudar de estilo musical ou trair o movimento por tocar em lugares menos alternativos. “A minha mãe foi me ver tocar uma vez com uma amiga, com vestido de baile, como se fosse a uma festa. Acho que ali ela viu que eu tinha nascido para fazer aquilo”, relembra. Famoso por apresentar diversos programas na extinta MTV Brasil, João Gordo teve vários problemas de saúde e virou vegano há seis anos, dieta em que não há o consumo de alimentos de origem animal. Apesar das tatuagens e da postura desbocada, virou notícia em todo o País no ano passado ao montar ao lado da esposa, Vivi Torrico, o projeto “Solidariedade Vegan”. “A pandemia mexeu com a gente e até agora distribuímos mais de 80 mil marmitas. O pessoal em situação de rua adora coxinha de jaca”, diz. Inconformado com as atrocidades do presidente Jair Bolsonaro, ele afirma que, neste momento, não há nada mais punk do que ajudar os outros e ir contra o sistema.