A corda no pescoço do ex-presidente Lula estica a cada derrota sofrida nas instâncias judiciais, pelas quais sua banca de advogados transita desprovida de qualquer pudor em busca de um improvável salvo-conduto a fim de evitar a cada vez mais iminente prisão. O último revés foi (de novo) acachapante: por cinco votos a zero, os ministros da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) negaram-lhe, na terça-feira 6, um habeas corpus preventivo. Não por acaso, conforme antecipou ISTOÉ em sua última edição, de duas semanas para cá, a tropa de Lula investe pesado nas manobras indecorosas travadas na arena do Supremo Tribunal Federal (STF). Pressionada a rever a prisão após condenação em segunda instância, a presidente da Corte, Cármen Lúcia, segue inexpugnável, como se transformasse o seu gabinete – o mais importante da República hoje – numa ilha de resistência moral. Qualquer que seja o desenlace, no entanto, o PT já sabe de antemão que Lula encontra-se inapelavelmente impedido pela lei da Ficha Limpa de ser candidato à Presidência da República. Por isso, convencido da nova realidade, o partido passou a discutir a sério, nos últimos dias, a sobrevivência da legenda, pela primeira vez, sem Lula como protagonista. E o resultado, até agora, não é nada alvissareiro para a sigla, que nasceu sob a bandeira da ética e hoje leva nas cinco pontas de sua estrela rubra a marca indelével da corrupção. O que se vê é um PT fragmentado, ressentido da perda de conexão com as massas, e que assiste quase que de maneira impassível à debandada de aliados. Ou seja, o PT – a menos de oito meses da primeira eleição presidencial depois de 13 anos no poder – é hoje um partido à espera de um milagre político capaz de impedir a previsível derrocada nas urnas, das quais fatalmente sairá muito, mas muito menor do que entrou.

Com Lula praticamente fora da linha de frente, o PT se transformou num saco de gatos. Sem eira nem beira, com suas correntes falando idiomas diferentes. Enquanto um grupo defende lançar o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad, outros flertam com Ciro Gomes (PDT) – detalhe: mesmo depois de Lula desautorizar publicamente em entrevista os dois movimentos políticos, o que mostra que ele também não é mais unanimidade. Claro, existem ainda os petistas que não aceitam outra indicação senão a do próprio ex-metalúrgico. Minoritários, embora estridentes, tocam as raias do absurdo ao pregar a anulação do voto se Lula não for candidato, como num ridículo e ao mesmo tempo inócuo protesto – sabe-se lá contra exatamente o quê. Enquanto ninguém se entende sobre qual rumo tomar, por ora, o certo mesmo é que o ex-ministro Jaques Wagner, de uma vez por todas arrastado para a lama da Lava Jato, é carta fora do baralho.

A miopia de Gleisi 

A falta de unidade interna produz outro efeito colateral potencialmente grave, do ponto de vista eleitoral. Faz com que a legenda presidida pela senadora Gleisi Hoffmann (PR) corra o risco de definhar pela indefinição. Percebendo a roubada na qual podem entrar, caso sigam a reboque do PT, aliados históricos tratam de criar suas próprias alternativas. É o caso do PCdoB, do PSOL e do PDT, que já encaminham as candidaturas próprias. Alianças com o PT, por enquanto, nem pensar. No PDT, o candidato Ciro Gomes já demonstra irritação com a falta de jogo de cintura do partido. “É mais fácil um boi voar que o PT apoiar alguém”, disse ele. “Há um centro estratégico de intriga tentando produzir um fosso entre nós e o PT. Infelizmente, uma parte da própria burocracia do PT faz parte desse jogo”.

De olho na candidatura ao Planalto, Haddad teme ser a principal vítima da incerteza no PT. O maior receio do ex-prefeito é o de ser lançado na disputa tarde demais

A diatribe de Ciro atinge em cheio o próprio Lula e ricocheteia em Gleisi Hoffmann. Na entrevista ao jornal Folha de S. Paulo na segunda-feira 5, Lula chegou a dizer que “ou Ciro vai para a direita ou não pode brigar com o PT”. Uma demonstração inequívoca de que Lula ainda crê que o PT ainda detém a hegemonia no campo da esquerda, algo que a atual realidade não recomenda. Um tipo de miopia que também acomete Gleisi Hoffmann. Há algumas semanas, ela criticou duramente a realização de uma reunião do ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad, nome mais cotado para ser o plano B do partido, com Ciro Gomes. Politicamente, é algo impensável impedir que Haddad, ou qualquer outro, converse com possíveis aliados. Mas essa é a toada da histriônica e aparvalhada Gleisi. Por conta de seus posicionamentos radicalóides, um grupo do partido ligado a Haddad e ao PT do Rio Grande do Sul passou a articular fortemente, nos últimos dias, a saída de Gleisi do comando do PT. O movimento ganha força. “Sua agressividade espanta o eleitorado e atrapalha a coesão interna”, afirmou um petista do diretório gaúcho.

Insatisfeito com o radicalismo, um grupo do partido ligado a Haddad e ao PT-RS passou a articular a saída de Gleisi do comando da legenda

Haddad é ruim de voto

De olho na candidatura, Haddad teme ser a principal vítima da incerteza estratégica no PT. Para ele, a legenda experimenta o pior cenário: sabe que Lula não estará como opção na cédula, mas, mesmo assim, não define qual será sua alternativa nem em que momento a colocará à prova. O maior receio do ex-prefeito de São Paulo é o de ser lançado na disputa tarde demais, o que o deixaria sem condições de se viabilizar. Ainda mais se nem todo mundo no PT aderir à sua candidatura com entusiasmo, hoje uma forte possibilidade. Para muitos petistas graduados, Fernando Haddad não é orgânico. O que isso significa? Seu perfil mais técnico criaria dificuldades para a fluência de um diálogo franco no partido. O deputado federal Vicente Cândido (SP) é um dos petistas refratários ao nome de Haddad. “Ele não tem vida orgânica. Há um receio de que (Lula) esteja cometendo o mesmo erro que fez lançando Dilma Rousseff”, compara o deputado. Outro defeito de Haddad, apontado por fontes ouvidas por ISTOÉ, seria a sua proximidade com FHC, o que faz com que ele seja considerado um “petista com bico de tucano”. Além disso, Haddad é ruim de voto. Perdeu a reeleição para prefeito em 2016 para um novato na polítca, João Doria, ainda no primeiro turno. Contra a turma do nariz torcido a Haddad, na segunda-feira 5, intelectuais ligados ao PT e à esquerda manifestaram apoio ao “lançamento já” da candidatura do ex-prefeito de São Paulo numa ampla frente de centro-esquerda.

Entre esses intelectuais, estão nomes como a filósofa Djamila Ribeiro, o sociólogo Jessé Souza, a psicanalista Maria Rita Kehl e a historiadora Heloísa Starling. Caso o nome de Haddad não emplaque, a opção pode voltar a ser Ciro Gomes (PDT). O problema reside no estilo destemperado do pré-candidato do PDT. Nos últimos tempos, a relação de Ciro com o PT de Lula tem sido marcada por altos e baixos. Ao sabor das pesquisas de opinião, ora Ciro aproxima-se de Lula e do PT, ora afasta-se e alveja o partido.

A negação ao nome de Haddad e a possibilidade da migração para a candidatura de Ciro Gomes refletem bem a barafunda e desorganização que se instalou no PT após a deflagração da crise de identidade vivida pela legenda diante da constatação de que terá de marchar sem Lula – crise esta que tem o ex-presidente como seu principal responsável. Sua ascendência incontestável no partido desde a fundação impediu o surgimento de alternativas capazes de substituí-lo. A grande verdade é que Lula sempre desestimulou o surgimento de outros aspirantes à Presidência. Talvez pela absoluta falta de opções. Ou, mais provavelmente, por acreditar na sua onipotência. O problema é que, como dizia Tancredo, a esperteza quando é demais engole o dono. O mesmo se aplica à presunção.

“Haddad não tem vida orgânica. Há um receio de que (Lula) esteja cometendo o mesmo erro que fez lançando Dilma Rousseff”
Deputado do PT, Vicente Cândido

Com esse tipo de postura, Lula impediu uma transição lenta e gradual e criou no partido uma lulodependência. Ao longo da história do PT, nomes que ensaiaram o voo solo foram fulminados ou marginalizados: casos de Luiza Erundina, Heloísa Helena e Cristovam Buarque, que acabaram deixando o partido. “A liderança carismática, geralmente, provoca um grave problema de continuidade”, avalia o professor da Fundação Escola de Sociologia e Política (FESPSP) Aldo Fornazieri. Para o estudioso, toda transição requer uma mudança planejada sem significar, no entanto, rompimento. É com o que Lula parece não se preocupar.

A crise petista, como não poderia deixar de ser, apresenta facetas hipócritas. Ao mesmo tempo em que não se resolve quanto à alternativa a Lula, exigindo das opções “densidade orgânica”, nos estados o partido não parece ter pruridos ao celebrar alianças que julga necessárias para a sobrevivência. Enquanto a militância finge nutrir ódio pelo MDB do presidente Michel Temer, nos estados os emedebistas têm sido parceiros preferenciais do PT. Em pelo menos sete capitais do País, “golpistas e golpeados” já fizeram juras de amor, restando pouco para o casamento de papel passado. Em Minas, PT e MDB deverão repetir a aliança que elegeu o petista Fernando Pimentel na tentativa de reeleição. Em reação a isso, deixou o MDB o deputado Rodrigo Pacheco, para ser o candidato a governador pelo DEM. No Ceará, o presidente do Senado, Eunício Oliveira (PMDB-CE), organiza rodas de conversas com o governador Camilo Santana (PT) para estarem juntos na mesma chapa em 2018. Em Alagoas, o senador Renan Calheiros (MDB), que presidiu o Senado durante o processo de impeachment de Dilma, negocia para repetir em 2018 a aliança de 2014 com o PT. No Piauí e na Paraíba o modelo de parceria também deve seguir o mesmo, ignorando as complicações decorrentes do desgastante processo de impeachment.

“A liderança carismática, geralmente, provoca um grave problema de continuidade” Professor Aldo Fornazieri

À beira do cadafalso

É indiscutível, como já ocorreu anteriormente com José Dirceu, que mesmo preso, mesmo alijado do processo eleitoral, Lula continuará a ser uma voz ressonante dentro do partido. Neste caso, como já é possível notar, pior para a legenda, que perde protagonismo na mesma velocidade e proporção da débâcle do seu maior líder. Um senador petista, ouvido por ISTOÉ, desabafa em tom de lamentação: “Diante do racha, vão levar a candidatura dele até os 45 minutos do segundo tempo. Só haverá um plano B na hora em que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) impugnar a candidatura”, disse. Iludido pelas pesquisas que o colocam como líder de intenção de votos, mesmo sem poder disputar as eleições, Lula criou um mundo particular à parte. Virou um entusiasta à beira do cadafalso. É como diz o filósofo britânico David Hume: o entusiasmo é a corrupção da verdadeira religião. Gera “voos da fantasia”. “O entusiasta ignora a razão e se entrega nos braços do orgulho e da ignorância”.

Por incrível que pareça, Lula ainda ousa acreditar que sua prisão pode gerar a tão esperada comoção nas ruas. Mas até isso o PT perdeu. Não há mais conexão com o público de outrora. As massas arrastadas pelo partido não representam mais, como se diz hoje na gíria, as massas “raiz”. Pouquíssimos são os que conservam algum traço ideológico. A maioria é composta por gatos-pingados a soldo. Em geral, bem aquinhoados com recursos sindicais. Não raro, dinheiro público. No delírio petista, quem sabe, surja um cadáver sobre o qual falou – ou para o qual torceu – a senadora e presidente da sigla, Gleisi Hoffmann. O mais provável, porém, é que o cadáver venha a ser o próprio PT.

Mais uma derrota: 5 a 0

José Cruz/Agência Brasil

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