Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) até 2006 e presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) entre 1994 e 1996, Carlos Velloso acompanha com apreensão a discussão aberta pelo presidente Jair Bolsonaro sobre a lisura do voto eletrônico, que o próprio jurista ajudou a instituir no Brasil na década de 1990. Defensor do modelo atual, Velloso critica o mandatário pela defesa intransigente do que ele classifica de uma volta aos tempos do cabresto eleitoral. “O voto impresso é, na verdade, um complicador, que nos faz voltar ao sistema das cédulas de papel e ao tempo das fraudes eleitorais”, afirmou o ex-ministro, um dos signatários do manifesto assinado por todos os ex-presidentes do TSE em defesa da urna eletrônica. “O processo eleitoral brasileiro é impermeável à fraude”. Em entrevista à ISTOÉ, Velloso condenou os recentes ataques o presidente às instituições, afirmando, no entanto, não acreditar que a democracia corra riscos de retrocesso. “As forças vivas da Nação repelem os ataques às instituições”, disse o ex-presidente do STF. Ele disparou também contra a recondução de Augusto Aras à Procuradoria-Geral da República, que não levou em consideração a lista tríplice apresentada pelo Ministério Público Federal.

A democracia brasileira corre riscos em razão da escalada autoritária de Bolsonaro?
Penso que a democracia brasileira não corre risco. É que as instituições do País estão em pleno funcionamento. O Congresso tem um núcleo duro de democratas e o Supremo Tribunal Federal tem agido de forma altaneira, independente, intimorata, infenso a ameaças. Uma boa parte do povo compreende que a democracia é o melhor dos regimes políticos. Intelectuais, juristas, a mídia séria, empresários do melhor nível dão apoio à democracia, especialmente ao sistema eleitoral. As forças vivas da Nação repelem os ataques às instituições. Em 1964, as Forças Armadas agiram com apoio da imprensa, do empresariado e até da Igreja – não podemos esquecer das Marchas com Deus pela Liberdade. Hoje, milhares vão para a rua em favor da democracia, das eleições livres e em apoio às instituições. O sistema eleitoral brasileiro é dos melhores do mundo civilizado e o Brasil, felizmente, não é uma república bananeira, como acentuou, aliás, o vice-presidente Hamilton Mourão.

Por que Bolsonaro insiste na defesa do voto impresso?
As urnas eletrônicas têm sido utilizadas há 25 anos no Brasil, sem qualquer evidência ou indício sério de fraude. O presidente da Câmara dos Deputados, em pronunciamento recente, chamou a atenção, inclusive, para esse fato. O voto impresso é, na verdade, um complicador, que nos faz voltar ao sistema das cédulas de papel. E, assim, ao tempo das fraudes eleitorais. Como tem ressaltado o presidente do Tribunal Superior Eleitoral, ministro Luís Roberto Barroso, já pensou como seria contar manualmente 150 milhões de papeizinhos? Transportar, do Oiapoque ao Chuí, 150 milhões de papeizinhos? E mandar fazer algo assim, diante de 25 anos de excelente funcionamento das urnas eletrônicas, sem a existência de qualquer indício de fraude?

O senhor acredita que Bolsonaro aceitará a derrota da PEC do voto impresso?
O vice-presidente Hamilton Mourão já esclareceu essa questão. Teremos eleições. O Congresso decidiu assim e acabou a questão. Ponto final.

O que o levou a assinar o manifesto em defesa das urnas eletrônicas?
Assinei o manifesto simplesmente por uma questão de justiça. É que o processo eleitoral brasileiro é impermeável à fraude. As urnas eletrônicas têm diversos dispositivos que asseguram a sua segurança e a possibilidade delas serem auditadas antes, durante e também depois da realização das eleições. Isso vem sendo demonstrado, didaticamente e com patriotismo, pelo presidente do Tribunal Superior Eleitoral e pelos órgãos técnicos do próprio tribunal. Em 1995, reunimos o que havia de melhor neste país: juristas, cientistas políticos, inclusive representantes das Forças Armadas, que, convidados a colaborar com a criação das urnas eletrônicas, nos mandaram técnicos da melhor qualidade do Instituto Tecnológico da Aeronáutica e dos serviços de informática da Marinha e do Exército. Homens de boa vontade, patriotas, que trabalharam pelo Brasil. E temos aí a urna eletrônica, produto da criatividade dos brasileiros.

Como o senhor classifica a decisão do ministro Fux de ter cancelado a reunião que faria com os líderes dos três poderes, dentre eles o presidente Bolsonaro?
Bom, sou mineiro e tenho espírito pacificador. Penso que, nesses conflitos, o maior prejudicado é o Brasil. O ministro Fux tem razão em reagir às ameaças ao tribunal e aos seus membros. Mas os presidentes da Câmara (Arthur Lira) e do Senado (Rodrigo Pacheco), por exemplo, poderiam e deveriam intervir para pacificar o confronto, em homenagem à harmonia que deve existir entre os poderes constituídos. Vale enfatizar: os poderes são independentes e harmônicos.

A que o senhor atribui esse clima hostil entre Bolsonaro e o Supremo?
É que o STF vem agindo com observância de sua competência constitucional, em plena pandemia, quando decidiu pela competência concorrente dos Estados, Distrito Federal e Municípios para contenção do coronavírus. A competência dos governadores e prefeitos, concorrentes com a União Federal, está claramente posta na Constituição, seja na competência comum, seja na competência legislativa concorrente entre a União, Estados e Distrito Federal. Vale esclarecer também que o pacto federativo prevê, como condição de sua existência, a fim de manter as competências dos entes federados, a existência de um tribunal capaz de defender as suas funções constitucionais. E tem sido exatamente isto o que vem acontecendo com as decisões da Corte.

Qual é sua opinião sobre a inclusão de Bolsonaro nos inquéritos do TSE e do STF?
O Corregedor-Geral de Justiça, diante da alegação de fraude no sistema eletrônico de voto, determinou a abertura de inquérito administrativo, com a aprovação do tribunal, a fim de que sejam apresentadas provas de ocorrência das alegadas fraudes nas eleições de 2018 e para apuração de fatos que possam configurar abuso de poder econômico e político, uso indevido dos meios de comunicação social, corrupção, fraude, condutas vedadas a agentes públicos e propaganda antecipada em relação aos ataques contra o sistema eletrônico e à legitimidade das eleições de 2022. Tudo dependerá, ao final desses inquéritos, da ação do Ministério Público Federal, ou do ajuizamento de ações próprias por partidos políticos e entidades que tiverem interesse jurídico no caso, porque o juiz não age de ofício.

Bolsonaro desrespeita a independência dos Poderes?
Deveria respeitar. A Constituição Federal paira acima dos governantes. No Estado de Direito vale a vontade da lei, não vale a vontade dos homens. Na Declaração de Direitos do Estado da Virgínia, essa sentença foi enunciada pela primeira vez, antes mesmo da Declaração de Independência. E é o que consta da nossa Constituição. E a Constituição Federal, segundo Charles Evans Hughes, da Suprema Corte dos Estados Unidos, é o que a Suprema Corte do país diz que é.

O que achou da recondução de Aras à Procuradoria-Geral da República, mais uma vez ignorando a lista tríplice apresentada pelo MPF?
Essa é uma questão a ser resolvida pelos agentes do Ministério Público Federal. O que posso dizer é que as listas tríplices são democráticas e precisam ser observadas. De uma feita, conversando com um governador de um Estado, ele me dizia das listas. E eu afirmei a ele, então, que a escolha do procurador-geral é da maior importância. Por isso, essa escolha deveria recair sobre um candidato que seja líder da classe. Se escolher simplesmente um chefe, o governante vai ter problemas. Começar a escolha do PGR pela lista tríplice é, além de democrática, mais inteligente, porque os integrantes da lista têm o assentimento da classe. Com a lista, é mais fácil perceber quem tem mais condições de liderança. E, sim, tem havido forte reação na classe dos membros do Ministério Público Federal quanto à atuação de Aras. Não posso dizer o que há por trás de uma atuação que não tem sido rígida ou enérgica do Procurador-Geral da República. Não conheço sua forma de atuar, já que ele não chegou a trabalhar como procurador junto ao Supremo enquanto eu estava no exercício do cargo de juiz daquela Corte.

O Senado aprovou o projeto que revoga a Lei de Segurança Nacional. O que isso representa?
O Senado fez o que já devia ter sido feito. A Lei de Segurança Nacional, do modo como foi feita, nada mais é do que um entulho autoritário. O Congresso cumpriu sua missão, que era aprovar uma lei de segurança nacional condizente com o Estado Democrático de Direito.

E o que pensa sobre a indicação de André Mendonça para a próxima vaga no Supremo?
O que tem prejudicado a indicação de André Mendonça foram os inquéritos que ele mandou instaurar contra jornalistas, com base na Lei de Segurança Nacional, que, aliás, era um entulho que felizmente foi substituído pelo Congresso. Também influencia negativamente o fato de parecer que André Mendonça foi indicado simplesmente porque é “terrivelmente evangélico.” Ora o Estado brasileiro é laico. A Constituição é de todos: deístas, agnósticos e ateístas. Os requisitos exigidos pela Constituição para o cargo são a reputação ilibada e o alto saber jurídico. Penso que, sob esse aspecto, Mendonça estaria capacitado, tanto que alguns ministros do Supremo têm manifestado apoio ao seu nome publicamente.

Como o senhor acredita que o presidente Jair Bolsonaro será lembrado no futuro?
Se o presidente continuar nesse diapasão, não será bem lembrado.