Negro, alto e com acesso à elite, babalorixá Custódio Joaquim de Almeida será tema do enredo da Portela em 2026. Rio Grande do Sul é hoje estado com maior percentual de adeptos de religiões afro-brasileiras no país.Os três maiores jornais de Porto Alegre deixaram de lado anos de rivalidade ao publicarem, em maio de 1935, obituários que pareciam saídos da pena do mesmo redator.
"Morreu nesta capital, com 104 anos, um príncipe africano", informou o Diário de Notícias. "Custódio Joaquim de Almeida, o 'Príncipe' de São João da Ajudá, na África, que desde 1901 vivia em Porto Alegre, à rua Lopo Gonçalves n. 498, vem de falecer, com a idade de 104 anos de idade", noticiou o Correio do Povo. "Todos choram a morte do Príncipe de Ajudá. O 'príncipe' morreu", lamentou A Federação.
Apesar do título nobre, o morto não cumpria os critérios de respeitabilidade vigentes à época. Negro retinto de estatura elevada (teria até dois metros de altura, segundo a tradição oral), tinha passagem pela polícia e ganhara a vida como artesão e tratador de cavalos.
Além disso, era babalorixá (pai-de-santo) nas comunidades locais de batuque, como é chamada a mais antiga vertente das religiões afro-brasileiras no Rio Grande do Sul.
Recebido pela elite local
Para os porto-alegrenses bem-nascidos, mais do que exótico, Custódio era marginal e até perigoso. Ainda assim, abriu caminho até o panteão dos homens célebres locais.
Custódio chegou a ser próximo dos altos círculos da sociedade rio-grandense de seu tempo. Pelo menos um contemporâneo afirma ter visto o todo-poderoso presidente do estado (equivalente ao cargo de governador à época) Antônio Augusto Borges de Medeiros visitar sua casa na Cidade Baixa.
A Custódio é atribuído o assentamento de ocutás (objetos religiosos) em vários pontos de Porto Alegre. O mais famoso é o chamado Bará do Mercado, no coração do Mercado Público. Haveria outros, inclusive no Palácio Piratini, sede do governo gaúcho.
Esse percurso incomum levou a escola de samba carioca Portela a escolhê-lo como tema de seu enredo para o Carnaval de 2026, intitulado O Mistério do Príncipe do Bará – A oração do negrinho e a ressurreição de sua coroa sob o céu aberto do Rio Grande.
Biografia sob disputa
Há décadas, antropólogos, historiadores, teólogos, jornalistas e religiosos buscam vestígios de sua vida. O resultado é um painel multifacetado e, muitas vezes, contraditório.
Um dos obituários de 1935 sustenta que Custódio chegou à capital gaúcha em 1901. Mas essa versão é contestada pelo historiador Rodrigo de Azevedo Weimer, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Ele descobriu que, em uma briga de bar no centro da cidade entre um negro e um branco que resultara em processo criminal em 1885, um dos protagonistas, identificado pela polícia como Custódio Joaquim de Almeida, era o "príncipe".
"Ele foi xingado por um branco que frequentava a bodega e defendeu-se usando um chicote para fustigar o agressor", explica Weimer. "Era tratador de cavalos, e o chicote servia-lhe como instrumento de trabalho."
Outra polêmica envolve o suposto pertencimento à realeza. Segundo uma versão corrente, Custódio teria nascido Osuanlele Okzi Erupê em uma linhagem real do antigo Reino do Benin (1180-1897), na atual Nigéria.
Esse reino não deve ser confundido com a atual República do Benin, que corresponde ao Reino do Daomé (1600-1904). Porém, é neste último que fica a cidade de Ajudá, onde o próprio Custódio afirmava ter nascido.
Ajudá é berço de um grupo de africanos escravizados que conseguiram obter alforria no Brasil e retornaram à África. Conhecidos como agudás, esses ex-cativos desfrutavam de status especial pelo conhecimento da língua portuguesa. Alguns envolveram-se no tráfico atlântico de escravos.
"Os agudás faziam o papel de intermediários entre portugueses e africanos em Ajudá. Eram muito procurados por sua capacidade de organização", afirma o historiador Jovani Scherer, co-autor, com Weimer, do livro No refluxo dos retornados: Custódio Joaquim de Almeida, o príncipe africano de Porto Alegre.
Quando se trata de supostos vínculos de Custódio com a realeza, a pesquisadora da diáspora africana Lisa Earl Castillo, doutora em letras pela Universidade Federal da Bahia, recomenda cautela. Os antigos reinos africanos, explica, eram diminutos e tinham várias linhagens reais. Os reis tinham dezenas de esposas, cada uma com vários filhos.
"Um número grande de pessoas podia reivindicar realeza, com razão ou não", diz Castillo. "No caso de Custódio, não há documentos que esclareçam por que usava o título de príncipe."
Para o babalorixá Hendrix Silveira, historiador e doutorando em teologia, em uma sociedade escravocrata, Custódio pode ter usado a identidade de príncipe como estratégia de sobrevivência. "Com esse título, ele ganha um status não apenas entre os pretos, mas também entre os brancos", reflete.
Religiões de matriz africana em alta no Rio Grande do Sul
Em 1935, os jornais chamaram Custódio de líder da "seita africana". Hoje, ele é visto por seus irmãos de crença como um pioneiro.
"O 'príncipe' fortaleceu muito a nação jêje (um dos ramos do batuque) no Rio Grande do Sul. Ele cuidava das pessoas", afirma Baba Diba de Iemanjá, que preside o Conselho Estadual de Povos de Terreiro e é uma das principais vozes do campo das religiões afro-brasileiras no estado.
A semente que Custódio ajudou a cultivar resultou em uma supersafra. Segundo o Censo de 2022, o Rio Grande do Sul é o estado com o maior percentual de adeptos de religiões de matriz africana no país, com 3,2%, ante uma média nacional de 1,05%. No censo anterior, de 2010, o estado já ocupava a primeira posição, com 1,48%.
Em Rio Grande, onde os adeptos de religiões afro-brasileiras somam 9,28%, ou o equivalente a mais de 15 mil pessoas, é realizada anualmente no dia 2 de fevereiro a festa em louvor a Iemanjá. Neste ano, a manifestação reuniu 150 mil pessoas.
E nem só de afrodescendentes são feitos o batuque e seus congêneres. Em meados da década de 1990, Baba Diba foi convidado a participar de um encontro afrorreligioso em Três Passos, no noroeste do estado, região de expressiva colonização europeia.
Foi recebido em um terreiro de umbanda pelo casal de pais-de-santo do local. "Ele era sarará, não era bem branco. E ela era branca", rememora. A mãe-de-santo disse-lhe: "Olha, Baba, aqui somos 20 terreiros, e não há negros".
Depois do seminário, o pai-de-santo foi convidado para uma mesa de caboclo (rito de umbanda). "Vi manifestações religiosas legítimas de pessoas loiras, de olhos verdes e azuis", afirma o religioso. "A única diferença era que eles ficavam muito vermelhos na hora de incorporar."
De acordo com Baba Diba, esses traços aparentemente paradoxais fazem parte da formação do estado. "O batuque está 'empretecendo' os gaúchos brancos. Há muita gente se convertendo e pautando sua vida a partir do perfil civilizatório africano", reflete.
Em seu terreiro, na zona leste da capital gaúcha, Baba Diba exibe com orgulho uma imponente palmeira-de-dendê. Espécie nativa da África Ocidental e reverenciada pelas religiões de matriz africana, a planta dificilmente sobrevive a temperaturas inferiores a 19°C – neste inverno, essa tem sido a marca máxima registrada pelos termômetros em Porto Alegre.