O discurso sobre o estado da União, em que o presidente apresenta ao Congresso um balanço do seu governo e do que ainda pretende fazer, é um rito político tão arraigado nos Estados Unidos que ganhou até uma daquelas siglas que a maioria dos americanos conhece sem precisar consultar o Google: SOTU (de State of the Union). O roteiro é previsível. O presidente costuma ser recebido na Câmara dos Representantes em janeiro e raramente há surpresas no que é dito. O democrata Barack Obama, por exemplo, usava a ocasião para defender seu plano de expansão da cobertura de saúde para os cidadãos. Antes dele, o republicano George W. Bush costumava dar ênfase às suas ações para deixar o país mais seguro contra o terrorismo. Cada presidente, portanto, usa o SOTU para hastear as bandeiras pelas quais são conhecidos e ficarão para a história. A de Donald Trump é um muro.

O 45o presidente americano fez na terça-feira 5 o seu segundo discurso sobre o estado da União. O que ele tem a apresentar até agora dificilmente pode ser considerado mérito seu: a economia americana está crescendo e novos empregos estão sendo criados em ritmo acelerado, mas isso se deve principalmente a fatores conjunturais e, em algum grau, a medidas adotadas por Barack Obama. Prova disso é que a tendência de queda na taxa de desemprego americana começou em 2010, o segundo ano do primeiro mandato de Obama. Isso não significa que Trump não possa — como de fato fez em seu discurso ao Congresso — tentar colher os louros por esse êxito. Isso era esperado. A economia de fato vai bem, e isso faz parte do estado da União.

Também era esperado que ele fizesse um chamado à conciliação entre os partidos. Obama e Bush também fizeram isso, por uma questão de ordem prática: o sistema político americano é claramente dividido entre os partidos Democrata e Republicano e, para governar, um presidente precisa trazer para o seu lado ao menos uma parte dos legisladores da legenda contrária. Mas a polarização partidária sob Trump é maior e o chamado à união, saindo da sua boca, soa contraditório porque ele é principal agente desse fenômeno.

RAPOSA David Malpass: crítico do Banco Mundial à frente do Banco Mundial

Caro e inútil

Isso ficou claro durante o mais longo shutdown (paralisação parcial das atividades do governo por falta de orçamento) da história do país, que durou 35 dias e se encerrou no final de janeiro. Durante esse período, 800 mil funcionários federais ficaram sem pagamento. Entre outras consequências, a presidente da Câmara dos Representantes, a democrata Nancy Pelosi, usou a paralisação como desculpa para impedir Trump de fazer seu discurso no primeiro mês do ano, como de costume. O impasse na aprovação do orçamento ocorreu porque Trump insistia em incluir na proposta 5,7 bilhões de dólares para a construção de um muro ao longo da fronteira com o México que, segundo ele, servirá para impedir a entrada de imigrantes clandestinos nos Estados Unidos. Se até 15 de fevereiro ele não chegar a um acordo com os democratas a respeito do orçamento, haverá mais um shutdown. Os deputados de oposição dizem que o muro é caro e inútil, pois não impedirá a entrada de ilegais. Trump partiu para o ataque contra os democratas, aferrando-se ao projeto como se fosse a panaceia para a maioria dos problemas americanos. Os imigrantes ilegais roubam empregos, disse Trump. Mas como, se minutos antes ele mesmo realçou que o país vive o pleno emprego?

“O Congresso tem dez dias para aprovar a lei que vai financiar o governo, proteger a nação e deixar segura a fronteira sul” Donald Trump, presidente dos EUA

As contradições continuaram. Ele comemorou, por exemplo, a participação cada vez maior das mulheres no mercado de trabalho e na política. Justo ele, que durante a campanha presidencial disse que agarrava as mulheres pelas partes íntimas e que, já no cargo máximo do país, usou o Twitter para compará-las a cavalos e cachorros. Trump também convidou um sobrevivente do holocausto para assistir ao seu discurso e contou sua história para criticar o antissemitismo. Justo ele, que em seu primeiro ano de governo chamou de “gente do bem” os supremacistas brancos que participaram de uma manifestação racista e antisemita em Charlottesville, na Virginia.

Ao fim e ao cabo, um discurso sobre o estado da União contraditório expressa com perfeição seu autor, um presidente que usa a contradição para governar. Ele fez mais um desses lances na quarta-feira 6, quando nomeou David Malpass, subsecretário para assuntos internacionais do Tesouro americano, para chefiar o Banco Mundial. Detalhe: Malpass é um crítico mordaz do Banco Mundial. A instituição tem como sócios 188 países, mas Malpass diz que quer mudar as prioridades do banco para, entre outras coisas, “defender os interesse americanos”. Na lógica de Trump, faz todo sentido.

O ESTADO DA UNIÃO SEGUNDO TRUMP

Coreia do Norte
> Gabou-se de estar impedindo uma guerra nuclear e anunciou um novo encontro com o ditador Kim Jong-un em 27 e 28 de fevereiro, no Vietnã

Unidade
> Chamou os congressistas diversas vezes à união, pedindo o fim de ‘partidarismos’ – apesar de ter feito duros ataques aos democratas horas antes, no Twitter

Venezuela
> Reiterou o apoio a Juan Guaidó, autodeclarado presidente da Venezuela

Mulheres
> Enalteceu o avanço da participação das mulheres no mercado de trabalho (elas ocuparam 58% dos empregos criados em 2018) e o aumento da bancada feminina no Congresso

Muro na fronteira
> Conclamou os parlamentares a aprovar orçamento para a construção de muro na fronteira com o México e exagerou ao enumerar os problemas causados pela imigração ilegal

Economia
> Exaltou a criação de empregos, falando em 5,3 milhões o número oficial de empregos gerados (o correto é 4,9 milhões), e disse que a guerra comercial com a China está sendo benéfica para os EUA