A economia brasileira está sendo afetada mais pelos conflitos internos do que pela crise do coronavírus, segundo o economista Marcos Mendes, pesquisador do Insper. Um dos responsáveis pela elaboração da PEC do Teto de Gastos e pelo Regime de Recuperação Fiscal dos Estados, ambos aprovados no governo Temer, Mendes sugere, na crise, a ampliação do Bolsa Família. Mas critica a expansão do Fundeb, em discussão no Congresso. Ele defende a manutenção do teto de gastos, que já começa a ser atacado por alguns economistas. “A pedra fundamental que vai permitir o crescimento é a estabilidade fiscal”, afirma. Autor de “Por que é difícil fazer reformas econômicas no Brasil” e “Por que o Brasil cresce pouco?”, Mendes diz que o País não tem condições de crescer acima de 1,5% de forma sustentada. Uma das principais razões é o sistema tributário, “que derruba a produtividade tremendamente”. Segundo ele, a prioridade para as reformas deveria ser a PEC emergencial. Sem ela, “haverá pressões enormes para aumentar despesas e o governo não vai ter força política para segurar”. Para ele, apesar da falta de articulação política do governo, a crise é uma oportunidade para se firmar uma agenda mínima de mudanças.

A crise do coronavírus e a guerra comercial do petróleo entre Rússia e Arábia Saudita, que agravaram a desaceleração da economia e podem levar a uma recessão mundial, vão afetar o Brasil? Podem atrapalhar a agenda de reformas e privatizações, que já não está deslanchando?
Temo que as dificuldades de governabilidade e os conflitos internos estejam pesando mais na incerteza e na insegurança do que esse choque externo. Claramente é um choque internacional negativo, que afeta o Brasil e todo mundo. Cada notícia nova pode gerar uma onda de incerteza e insegurança. Está ficando claro que uma crise econômica internacional forte está se formando, e isso pode aumentar as dificuldades de recuperação. A questão é como reagir a mais essa dificuldade. Acredito que esta seja uma oportunidade para que o Executivo e Legislativo voltem a conversar e definam uma pauta prioritária e factível de reformas a serem aprovadas esse ano. Além disso, essa retomada do diálogo deveria, também, produzir uma lista de projetos que não deveriam ser levados adiante em conjuntura tão difícil.

Quais iniciativas deveriam ser evitadas?
As propostas de expansão fiscal como a ampliação do Fundeb (fundo de financiamento da educação básica), a concessão de 13º salário para o Benefício de Prestação Continuada (BPC), a flexibilização dos critérios para concessão do BPC, o aumento de transferências para estados e municípios e a instituição de regras de reajustes reais para o salário mínimo. Esses projetos, se levados adiante, tornarão impraticável o cumprimento do teto de gastos e da meta de resultado primário, levando a um aumento da carga tributária e a uma maior incerteza quanto à solvência fiscal do País. O resultado será mais impostos e juros mais altos em um momento de economia débil e forte choque externo. Por outro lado, há espaço para proteger os mais pobres durante a crise. Uma possibilidade seria a extinção do abono salarial com o uso do dinheiro para ampliar o Bolsa Família. Isso aumentaria a cobertura aos mais vulneráveis sem gerar deterioração fiscal.

Houve muita decepção com a divulgação da alta de apenas 1,1% do PIB em 2019. O governo já diminuiu para 2,1% a meta de expansão em 2020 e o boletim Focus, compilado pelo Banco Central, aponta um índice em queda, inferior a 2%. O País não conseguirá retomar a rota de crescimento?
O potencial de crescimento no longo prazo está em torno de 1,5%. O Brasil pode até crescer 2% em um ano ou dois, seguidos, mas depois vai entrar numa trajetória que é bastante medíocre. Pode avançar no curto prazo, pois tivemos a recessão. Há espaço por conta de máquinas paradas, do pessoal desempregado, que pode ser rapidamente empregado. Mas isso não é um crescimento sustentável. Em algum momento vai bater nesse potencial de crescimento que não está acima de 1,5%.

Esse número contrasta com o discurso do ministro da Economia. Não é possível crescer mais?
Para maior expansão de longo prazo são necessários três elementos. Primeiro, o crescimento da disponibilidade de mão de obra em idade ativa. Esse benefício já perdemos, pois o bônus demográfico está se fechando e estamos com um número maior de pessoas idosas. Outra questão é a taxa de investimento. Precisaríamos de uma taxa equivalente a 20% do PIB, e a média dos últimos 20 anos ficou abaixo de 18%. Hoje, ela está por volta de 16%. A terceira e mais importante questão é a produtividade. Ela é muito baixa. Precisaríamos ampliá-la por volta de 1,2% ao ano para gerar um crescimento anual de 3%. Mas nosso histórico, a partir de 1990, é de 0,3%. Atualmente o índice de variação da produtividade está negativo. Temos que recuperar muito a eficiência da economia para poder crescer na faixa de 3% ou mais.

Quais são os principais fatores que levam a essa baixa eficiência? Ainda estamos lidando com os itens do custo Brasil, discutidos há muito tempo?
Há uma agenda grande de reformas para melhorar a produtividade. Em primeiro lugar, a transformação do sistema tributário, que derruba a produtividade tremendamente. Ele estimula as empresas a fazerem investimentos em locais inoportunos e em setores inadequados, por causa dos benefícios fiscais. A nossa economia é muito fechada.

Quais são as consequências?
Não conseguimos importar equipamentos mais produtivos. Há um sistema de proteção para máquinas brasileiras de menor qualidade. Temos uma grande quantidade de empresas estatais com baixa produtividade. É o caso da Eletrobras, que precisa ser privatizada para gerar energia com um custo mais acessível. Há o problema da educação, que faz nossos trabalhadores serem muito pouco produtivos. Há um sistema de incentivo a pequenas empresas que permite a sobrevivência de companhias pouco produtivas no mercado. Há lacunas muito grandes de infraestrutura. Executar essa agenda ampla é fundamental para o País crescer.

O sr. acabou de lançar um livro sobre a dificuldade em se realizar reformas no Brasil. Como vê os percalços da Reforma Tributária?
Ela me preocupa porque não existe uma coincidência de agendas do Executivo e do Congresso. O governo não mandou até agora o seu projeto. Ora fala que vai enviar um projeto só para os impostos federais, ora diz que vai apoiar o projeto da Câmara. Ou então fala que vai propor uma CPMF, e isso cria uma instabilidade muito grande. Se houvesse uma concertação entre o Executivo e o Legislativo seria mais fácil avançar na aprovação.

A PEC emergencial, que limita o pagamento com servidores em caso de aperto fiscal, deveria ser prioritária?
Tenho total convicção disso. A pedra fundamental que vai permitir o crescimento é a estabilidade fiscal. Já avançamos muito, mas ainda há muita coisa a ser feita. Hoje, as contas do governo federal, dos estados e municípios ainda estão estruturalmente desequilibradas e não garantem uma estabilidade da dívida pública no longo prazo. Só viabilizando o controle da despesa é que a gente vai permitir que a dívida pública cresça mais devagar, que se mantenham os juros mais baixos. Isso só se faz com o controle do crescimento das chamadas despesas obrigatórias, que é o foco da PEC de ajuste fiscal emergencial. Mas, como diz o nome, é emergencial. Vamos ganhar dois ou três anos de ajuste fiscal, para ao longo desse período continuarmos reformando os programas públicos. Por exemplo: com uma reforma administrativa, uma reforma das políticas sociais, de modo que a despesa pública seja sustentável no tempo.

O governo vai cumprir o teto de gastos esse ano?
A PEC emergencial é justamente para viabilizar o cumprimento do teto. É uma peça essencial para a gente continuar num ciclo positivo que se iniciou a partir da adoção desse instrumento. Com ele, o crescimento da despesa caiu e a pressão do governo sobre a poupança da sociedade diminuiu. Isso permitiu reduzir a taxa de juros, melhorou a trajetória da dívida pública. Mas ele não é sustentável por si só. De 2016 para cá, estamos cumprindo o teto apesar de terem crescido acima da inflação as despesas obrigatórias — com Previdência, programas sociais, folha de pagamentos etc. Isso provoca a necessidade de comprimir outros gastos, mas estamos chegando a um limite.

Quais setores são mais afetados?
É o caso do investimento público, que está quase zerado. A máquina pública está com dificuldades em suas despesas de manutenção. Você tem que controlar a expansão das despesas obrigatórias, fazer elas crescerem mais devagar. Senão haverá pressões enormes para aumentar os gastos em todas as áreas e o governo. Não vai ter força política para segurar isso. Aí vamos entrar em uma dinâmica bastante negativa. A taxa de juros vai voltar a subir, o déficit público voltará a subir, a insegurança em relação à capacidade de o governo pagar a dívida vai voltar a crescer, e a gente retornará para um quadro fiscal parecido ao de 2014 e 2015.

A crise do Orçamento impositivo tem a ver com o governo não estar conseguindo manter uma articulação mínima no Congresso?
Não existe uma crise do Orçamento impositivo. Esse instrumento cria uma restrição para o governo na gestão cotidiana dos recursos, mas ele não é um problema em si, porque existe uma válvula. Na hora, se for necessário contingenciar o Orçamento para cumprir as metas fiscais, em especial a de resultado primário, isso pode ser feito. A crise agora é algo que vai além do orçamento impositivo.

Como o sr. explica a crise?
O Congresso pegou um pedaço do Orçamento, as despesas de manutenção dos vários ministérios, que seriam normalmente controladas pelo Tesouro e executadas pelas próprias pastas, e passou a chamá-las de emendas de relator. E criou uma regra dizendo que essas emendas serão liberadas pelo relator do Orçamento. O que está gerando essa crise é que se transferiu para o Legislativo o poder de executar parte dos recursos. Isso vai além de Orçamento impositivo. E aí é que está uma discussão, a de que o grau de engessamento fica muito maior.

O governo não consegue impor uma agenda para o Congresso?
Com a baixa capacidade de articulação do governo fica difícil segurar propostas que entrem em conflito com a agenda de ajuste fiscal. Como o governo renunciou à possibilidade de fazer um governo de coalizão, de ter uma articulação da Casa Civil cotidianamente negociando dentro do Congresso e conversando com as suas lideranças, ele abriu um vácuo de poder e esse vácuo de poder está sendo ocupado pelo Parlamento. E uma característica típica do nosso Parlamento é que ele tem um grau de pulverização muito grande. Há 30 partidos, além de várias bancadas temáticas. Isso é gerado pelo sistema eleitoral que nós temos e esses vários interesses específicos de setores como a bancada do agronegócio, a bancada dos tenentes da PM, a bancada da educação etc. Cada um vai querer direcionar o gasto público e o Orçamento para os seus interesses.

Quais serão as consequências práticas dessa falta de articulação?
Cada grupo vai fazer propostas de vincular recursos, de aumentar despesas, e sem uma coordenação do Executivo estabelecendo ordem, elegendo prioridades e limitando essas demandas. A chance de termos as chamadas contrarreformas é muito grande. Isso não tem acontecido até agora porque temos lideranças no Congresso, como o presidente Rodrigo Maia, que, usando o regimento do Congresso, têm conseguido de certa forma barrar essas agendas que vão contra a necessidade de reforma fiscal, de abertura da economia e de aumento da produtividade. Mas se houver uma mudança nas lideranças no Congresso e a ascensão de outros líderes que não prezem tanto essa agenda, temos um risco muito grande de várias contrarreformas serem aprovadas.


Isso poderia ocorrer já no próximo ano?
Sim, inclusive a partir do ano que vem.

As privatizações estão muito lentas?
Estão paradas. Estou chamando de privatização a parte central, que significa o governo vender a sua participação majoritária em empresas relevantes como a Eletrobras. Isso não está acontecendo. Estão sendo feitas ações marginais. Venda da carteira de ações do BNDES, de carteiras minoritárias em mão do governo e venda patrimonial. Mas não há transferência de controle público de empresas relevantes para a iniciativa privada com a sua adequada regulação. Isso não está acontecendo. Como também não está acontecendo a agenda de abertura da economia, que é essencial para aumentar a produtividade.

O sr. está otimista?
De 2016 para cá a gente já acumulou uma quantidade grande de reformas, tanto na área de crédito como na área fiscal, a reforma trabalhista… Diria que até 2015 o Brasil era um barco navegando em velocidade acelerada na direção errada. A gente conseguiu parar esse barco, mudar o rumo para a direção certa, e agora tem que fazer o esforço não trivial de fazer esse barco navegar na direção correta através de uma quantidade grande de reformas, que vão exigir muita mobilização da sociedade. A gente tem uma série de dificuldades políticas para fazer esse barco navegar em velocidade razoável na direção certa.

Quais mudanças positivas ocorreram?
Tem algumas acontecendo. Uma delas é que já se acumulou uma quantidade grande de reformas. A outra é que na próxima eleição do Congresso já vai valer a emenda constitucional que veda a coligação em eleição proporcional. Isso significa que vamos ter um Congresso menos pulverizado, uma quantidade menor de partidos. Portanto, aumentam as chances de termos um governo de coalizão com menos legendas e maior harmonia entre o Executivo e o Legislativo. Estamos vendo também iniciativas regionais. Embora ainda exista uma crise fiscal nos estados muito grande por ser resolvida, com muitas unidades não tomando as medidas adequadas para fazer o ajuste, temos boas surpresas. No Rio Grande do Sul, Goiás, Alagoas e Ceará, e no próprio Paraná, que já vem de uma trajetória boa, os estados estão fazendo um esforço exemplar de ajuste e reformas. Eles podem mudar um pouco a figura geral de crise dos estados. É um lado positivo nesse momento. Por mais devagar que as reformas estejam andando, pelo menos há alguma coisa caminhando na direção positiva, certa.


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