O médico Daniel Neves Forte, 40 anos, formou-se na principal faculdade de medicina do País, a da Universidade de São Paulo. Foi em 2001. De lá para cá, o trabalho nas unidades de terapia intensiva mudou boa parte de sua visão do que é ser médico, do que é cuidar. Aprendeu que não significa estender a vida quando ela não mais se sustenta e entendeu que tratar apenas da doença não acalma o complexo sofrimento humano. Fica de fora o alívio de sintomas menosprezados como a náusea causada pelo remédio ou a dor provocada pela doença, ou de sentimentos que podem corroer a alma, como o medo, a ansiedade ou a perda esperança.

A experiência em lidar com os múltiplos aspectos que envolvem situações limite levou Daniel a se interessar por um ramo que ganha destaque na medicina, o de cuidados paliativos. Anos atrás compreendido como o atendimento a ser dado somente no final da vida, o conceito hoje envolve algo muito mais abrangente e, por que não, mais ambicioso: cuidar do sofrimento. Pode parecer óbvio, mas não é. Sua aplicação obriga a uma mudança de mentalidade entre médicos, pacientes e instituições de saúde, mas se trata de uma luta que a vale a pena. E é nela que Daniel está engajado. À frente da equipe de cuidados paliativos no Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, ele assume no próximo ano a presidência da Academia Nacional de Cuidados Paliativos.

ISTOÉ – No que consiste o conceito de cuidado paliativo?
Daniel Neves Forte – É o cuidado com o sofrimento. Nos últimos trezentos anos, a medicina foi se tornando cada vez mais científica. Para fazer ciência, é necessário um método que seja capaz de mensurar e testar o que está sendo estudado, para então generalizarmos um achado. Nesse caminho, a medicina focou no corpo humano, na sua biologia e doenças, reduzindo o ser humano a uma parte do que ele realmente é. Acabamos excluindo do nosso foco de atenção o sofrimento, que é algo essencialmente subjetivo e individual, não generalizável. Uma mesma doença pode gerar sofrimento diferente em diferentes pessoas. Mais ainda, toda redução de identidade é uma forma de violência. E assim, mesmo com a melhor das intenções, às vezes cometemos essa violência, olhando para a doença e não para o doente.

ISTOÉ – Qual o impacto dessa visão para o paciente?
Forte – Até o começo do século 20, quando alguém ficava doente ou estava morrendo era papel do médico diagnosticar que o paciente estava morrendo. E ele se retirava. A família, as sociedades religiosas, as enfermeiras assumiam. O médico saía de cena. Com a medicina se tornando mais cientifica e eficaz, os pacientes que antes morriam em casa foram para o hospital e, do hospital, para a UTI. O problema é que algumas vezes, na busca de tratar a doença, os médicos não enxergam o sofrimento. Tradicionalmente somos treinados a olhar os exames e corrigir os resultados. Podemos continuar focados na doença, com a melhor das intenções.

ISTOÉ – De que sofrimento o sr. está falando?
Forte – Por sofrimento compreende-se tudo o que ameaça a integridade da pessoa, não somente o que ameaça a integridade do seu corpo. Sofrimento não é algo objetivo, mensurável. Não se refere somente à biologia, mas principalmente à biografia. Focando demais no corpo e na doença, a medicina acaba excluindo do seu foco de atenção o medo, a esperança, a tristeza, as condições emocionais do paciente. Se ele começa a chorar, as pessoas travam. Os familiares, o médico, o enfermeiro. Rapidamente tenta-se interromper o choro. Ou às vezes até medicalizá-lo. Em muitas ocasiões nos esquecemos de que não há nada mais saudável do que chorar quando se está triste. Há muita dificuldade e falta de preparo para lidar com todos os sentimentos que acompanham uma doença.

ISTOÉ – E quanto ao sofrimento físico, como a dor?
Forte – Também não somos treinados para lidar com sintomas. Estudei dez anos na Universidade de São Paulo e não tive uma mísera aula sobre como tratar náusea. Náusea? não. O que interessa é tratar a doença. O paciente diz que não conseguiu dormir, está com falta de ar, tem dor. Mas não damos a devida atenção. Cuidar disso tudo se chama cuidado paliativo. Hoje, finalmente, as faculdades de medicina dão os primeiros passos para incorporar conhecimentos de cuidados paliativos na formação dos futuros médicos.

ISTOÉ – Inclui até mesmo a comunicação de más notícias?
Forte – Sim. Isso pode ser ensinado e treinado. Uma das estratégias começa com revisar o prontuário, conversar com a equipe. Depois, arrumar um lugar para conversar e reservar um espaço na agenda para estar mentalmente ali, realmente disponível. Em vez de começar dando informações, o médico deve apresentar o motivo da conversa e perguntar o que o paciente está sabendo. É uma forma de sentir o que o outro sabe a respeito de sua própria condição. E o convida a participar da conversa. ‘Podemos conversar sobre seus exames?’. E é preciso dar espaço para as pessoas manifestarem as emoções. Dessa forma, você valida os sentimentos e vai no ritmo do paciente. E reforça, sempre, que está ali para fazer o melhor por ele.

ISTOÉ – Em que momento saber quando é hora de parar de insistir nos tratamentos?
Forte – Precisamos ter em mente que morrer faz parte da vida, que não precisamos morrer com dor e que faz parte dos princípios mais básicos da medicina amenizar o sofrimento. Muitas vezes temos relatos de filhos, por exemplo, queixando-se de que o pai sofreu muito e acabou morrendo. Com conhecimento de cuidados paliativos, que inclui uma comunicação feita de forma honesta e empática, é possível chegar a um consenso entre o médico e o paciente ou, em alguns casos, com a família.

ISTOÉ – Um acordo visando o que?
Forte – O consenso importante a ser construído é: qual o objetivo do cuidado. Ele pode ser tentar prolongar a vida desde que não cause determinados sofrimentos ou, ainda, amenizá-lo e permitir a evolução da doença da forma mais natural e menos sofrida possível. Não é só a biologia que determina essa resposta. Ela inclui também a biografia do paciente e seus valores de vida.

ISTOÉ – Mas como funciona isso na cabeça dos médicos, treinados em primeiro lugar para salvar vidas?
Forte – É difícil. Veja o que aconteceu comigo. Sou médico de UTI. Em 2005, fiz um estágio na Bélgica e vi que lá eles cuidavam dos pacientes de um jeito sobre o qual eu nunca tinha ouvido falar aqui no Brasil. E comecei do jeito mais extremo e chocante, que é a retirada de suporte artificial de vida, quando se retira o aparelho que está prolongando de forma penosa o processo de morte do doente em fase terminal.

ISTOÉ – O que houve?
Forte – Eu acompanhava uma visita aos pacientes comandada pelo chefe do serviço, professor Jean Louis Vincent. Paramos em frente a um leito onde estava uma senhora idosa com demência avançada e enorme hemorragia cerebral. Ela estava em coma, num quadro terminal e irreversível. No dia anterior, ela tinha passado mal na instituição onde morava, havia sido entubada e levada ao hospital. Na visita médica, o chefe perguntou a nós, no grupo, se todos concordávamos que se tratava de uma situação irreversível e que o aparelho só adiava a hora em que aquela senhora iria morrer, sem trazer nenhum conforto ou benefício para ela. Sim, todos concordavam. Ele perguntou sobre a família. Ela não tinha ninguém. E o professor disse, então, que fosse garantido o controle dos sintomas dela e que se retirasse o tubo que fazia a respiração artificial. A equipe concordou, com a maior naturalidade. Todos seguiram adiante para avaliar os próximos casos. Eu travei. Não consegui acompanhar o resto da visita. Como assim? Tirar o tubo? Aquilo não fazia sentido para mim. Passada a visita, fui até a sala do médico chefe e perguntei se eu havia entendido corretamente a sua ordem. Ele a confirmou. E me disse: ‘Ela não nasceu com o tubo. Não precisa morrer com o tubo.’ Aí as coisas finalmente começaram a se encaixar na minha cabeça. Precisei ver um caso extremo para aprender que nem a regra básica fazíamos por aqui.