Líder do PT até fevereiro deste ano, delegado de polícia e professor de Direito Penal, o senador Fabiano Contarato (PT-ES) alerta que a extrema direita fomentou um ambiente de retrocesso tão perigoso que pode radicalizar a opinião pública brasileira ainda mais, colocando em pauta leis mais duras, como prisão perpétua e até pena de morte, sonho de consumo da tríade que ficou conhecida como “bancada BBB” (boi, bala e bíblia). “Com a configuração que a gente tem hoje na segurança pública, se vacilar, aprova”, observou o senador, que se disse indignado com o projeto de lei em discussão na Câmara equiparando o aborto a um homicídio simples, com pena de até 20 anos. “O PL 1904 é um retrocesso cruel e desumano que viola a dignidade humana. É mais uma brutal investida de violência institucional contra os direitos das mulheres. Esse é um assunto de saúde pública. O Estado deve garantir a saúde e acolher essas vítimas”, diz ele. Embora frise que confia no poder de articulação do presidente Lula, Contarato afirma que a tarefa dos governistas tem sido a de “mitigar danos” diante do trator da direita para endurecer as leis penais que, segundo ele, “punem com mão de ferro pobres, pretos e pardos”.

O cenário desfavorável ao governo no Congresso já estava desenhado no primeiro turno de 2022. Não há como evitar tantas derrotas?
Nós tivemos um primeiro turno das eleições, em 2022, em que o bolsonarismo saiu vitorioso tanto na Câmara como no Senado e isso mudou a configuração no Congresso. No segundo turno, vencemos a eleição no executivo com uma grande coalizão. Isso tem um ônus político muito grave, que é o que está acontecendo aqui. A gente tem que entender que essa articulação política deve contornar a pauta e por vezes mitigar danos. Com essa polarização política e ideológica só quem perde é a população. Poderíamos estar avançando para regulamentar a reforma tributária, mercado de carbono, tributação do verde, geração de emprego e renda, alavancando a economia, fortalecendo a saúde pública, mas não, a gente está debatendo castração química.

Agora o tema é o PL do aborto. Qual a avaliação da decisão da Câmara?
O PL 1904 é um retrocesso cruel e desumano que viola a dignidade humana, pois, além de alterar as hipóteses de abortamento legal previstas na legislação, estabelece uma pena para a vítima de estupro que comete aborto maior do que para o estuprador. A proposta representa mais uma brutal investida de violência institucional contra os direitos das mulheres. Esse é um assunto de saúde pública. O Estado deve garantir a saúde e acolher essas vítimas. Defenderei o princípio da dignidade humana e lutarei contra qualquer retrocesso nos direitos das mulheres vítimas de estupro.

“O PL do aborto é um retrocesso cruel e desumano”, diz senador Fabiano Contarato
(Lula Marques/ Agência Brasil)

“O Moro quer incluir extração compulsória de material genético em todos os crimes tentados, consumados e até investigados. Não tem razoabilidade e nem como fazer.”

O que fazer diante da força descomunal da direita?
O presidente Lula é um brilhante estadista. PT já demonstrou que sabe governar e acredito muito no poder de articulação do Lula, que já chamou os líderes para que isso passe a fazer parte de uma rotina de debate entre os líderes dos partidos da base aliada. Acho que esse pode ser o caminho. Vamos mitigar os danos e avançar nas pautas que interessam. Acho que a articulação do governo vai se adequando. É o que nós temos e precisamos ser realistas. Não gostaria de estar aqui debatendo castração química, furto de cabo de energia. Por que a extrema direita não adere a um projeto meu que tipifica como crime hediondo crimes contra a ordem tributária, sistema financeiro, sonegação fiscal, corrupção ativa, passiva, peculato? Estamos legislando com a mão de ferro contra os pobres.

Gasta-se energia demais com discussões sobre costumes. O que não está funcionando na articulação política governista?
Esse é o resultado de um governo de coalizão. É o que temos. Na Comissão de Segurança Pública, da qual sou membro, a bancada conservadora aumentou a pena do crime de estelionato, sem violência ou grave ameaça, que era de um a cinco anos, para 19 anos de cadeia. Com muita dificuldade consegui reduzir para 12.

É a mesma lógica que a direita seguiu na PEC das Drogas, não?
Passamos aqui uma PEC segundo a qual portar substância entorpecente é crime. Fui delegado e sei que isso não resolve o problema da criminalidade e não define quem é usuário e quem é traficante. O definidor será o bolsão da pobreza, a cor da pele, o local onde aquela pessoa vai estar sendo abordada com uma bucha de maconha. Mas a direita vende isso de forma muito sedutora para a população. Fico estarrecido quando vejo a população aderindo “ao meu direito de portar arma”. O que nós temos que saber é que quem morre de disparo de arma de fogo é a população preta e pobre.

Os ataques da extrema direita têm a finalidade de tentar impedir a prisão de Bolsonaro?
Espero que assegurando o contraditório e a ampla defesa legal, as pessoas que cometem qualquer crime sejam responsabilizadas porque ninguém está acima da lei, nem ex-presidente da República.

A Câmara quer restringir a delação premiada apenas a acusado em liberdade. O que acha?
Sobre a eventual revisão no instituto da colaboração premiada, serei sempre favorável ao aperfeiçoamento da legislação criminal para permitir a redução da impunidade e da criminalidade no país e contra qualquer projeto que viole as garantias e os direitos fundamentais que estão estabelecidos na Constituição. Em princípio, entendo que o fato de o réu estar preso, por si só, não representa causa de anulação da delação. Quando o projeto chegar ao Senado, vou analisar o tema com a devida profundidade.

Como o sr. avalia a PEC das Praias, sob relatoria do senador Flávio Bolsonaro?
No mérito, a PEC transfere os terrenos de Marinha, uma conquista que vem do Império, que tem a ver com proteção ambiental, soberania nacional, construção de portos públicos e privados, exploração de gás e petróleo, para um posseiro, um particular, que está nos estados e municípios. Quando a União abre mão de uma propriedade, que é um direito sagrado, o proprietário de um terreno, que era da Marinha, vai impedir o acesso. Ninguém chega numa praia nadando ou voando, tem que ter o acesso por terra. Por que a direita não apresenta uma PEC para isentar de laudêmio ou taxa de compensação para as pessoas que estão ali? O discurso vem no sentido de facilitar para a população, mas tem como fundamental fortalecer a especulação imobiliária. A própria Marinha já se manifestou contrária.

Como superar o conflito gerado pelos conservadores contra o STF?
O discurso é bonito quando se fala na harmonização e independência dos poderes. Quando STF exerce as funções contra-majoritárias, de representatividade e de guardião da Constituição, a gente mede forças aqui. Foi ele fazer demarcação de terras indígenas e o que aprovamos aqui? O marco temporal. Foi falar sobre tráfico de entorpecentes para uso próprio, e nós corremos para por isso na Constituição. Nesse momento, acho que a serenidade e a sobriedade na articulação política dos líderes que compõem a base desse governo de coalizão seria o melhor caminho pra gente seguir em frente.

Até onde essa onda de retrocesso pode levar o país?
Com a configuração que a gente tem hoje na segurança pública, se vacilar, aprova prisão perpétua e pena de morte. Já aprovou castração química! Veja a que ponto nós chegamos! É o Estado declarando sua ineficiência, avocando o direito de penalizar e rompendo a laicidade entre Estado e Igreja. É como voltar ao Código de Manu, que instituía as famigeradas ordálias, onde uma pessoa era colocada no meio líquido para ver quanto tempo sobreviveria. Sobreviveu? Ah, então é intervenção divina e a pessoa está livre e inocente. Até que o Papa Inocêncio III em 1215 falou: a igreja não tem nada a ver com isso, vamos separar Estado. Agora nós estamos aqui, em pleno século 21, aprovando castração química e não debatendo obrigações constitucionais do Estado. A direita vende discurso fácil.

“O PL do aborto é um retrocesso cruel e desumano”, diz senador Fabiano Contarato
(Mateus Bonomi)

“Espero que, assegurada a ampla defesa, quem de qualquer forma concorreu para um crime seja responsabilizado. Ninguém está acima da lei, nem ex-presidente da República.”

O sr. votou pelo fim da saidinha de presos, que era uma pauta da direita. Não está sendo contraditório?
Votei com total convicção e consciência tranquilas. Fui conselheiro da vara das execuções penais, fui delegado de polícia, professor de Direito Penal. Dou um exemplo: homicídio doloso de forma intencional, simples, a pena é de seis a 20 anos. A tendência no moderno processo penal é condenar a uma pena mínima. Vamos supor que o autor seja condenado a nove anos. Com um sexto da pena ele já sai para o regime aberto. A cada três dias que ele trabalha, ganha um como remissão de pena pelo trabalho. No final do ano, indulto e comutação de pena. Um terço da pena, livramento condicional, e ele ainda vai ter 35 dias de saídas temporárias? Não é razoável.

O sr. acha que são benefícios demais?
Claro. São muitos benefícios instituídos pela lei de execução penal e pelo código penal. Essa pessoa que foi condenada a nove anos não vai ficar preso nem dois anos. Isso não é apenas sensação, é a certeza da impunidade. Lutei com minha consciência tranquila e o governo sabia disso. Fui chamado anteriormente para falar sobre a matéria e sugeri que não fosse vetada. Mesmo que ainda fosse líder do governo votaria tranquilamente pela derrubada do veto. Não tem como explicar para uma mãe que o cara que matou o filho dela foi condenado a nove anos, mas vai ficar preso só dois. Isso passa para a população a insegurança e aí ela quer que bandido bom seja bandido morto, quer armar a população, quer pena de morte, castração química, prisão perpétua.

O Congresso não está endurecendo demais as leis?
Vou dar um exemplo nessa linha. O senador Sergio Moro pegou um projeto da senadora Leila (Leila do Vôlei) para autorizar a extração invasiva compulsória de material genérico para traçar perfil genético em todos os crimes. Na Comissão de Segurança Pública perguntei a ele: senador, o senhor sabe quantos crimes tem no país? No Código Penal e na legislação penal extravagante são mais de dois mil tipos penais. A regra no Brasil é a identificação civil. Excepcionalmente, a identificação criminal. Agora ele está querendo incluir em todos os crimes tentados e consumados. Não tem razoabilidade e estou perplexo: qual é o Estado que vai ter peritos para fazer a coleta desse material em todos os condenados por uma ameaça, furto, injúria, calúnia, difamação? Não tem como fazer. Assim não dá!