O ministro Edson Fachin, do STF, anulou todos os atos processuais contra Lula assinados por Sérgio Moro durante a Lava Jato. Concluiu que o ex-titular da 13a Vara Federal de Curitiba não era o juiz competente para conduzir a ação, porque o caso não estava direta e exclusivamente ligado à corrupção na Petrobras.  O argumento ainda deverá ser analisado pelo plenário da corte. Mas, no momento, nada mais pesa contra Lula. Ele pode se candidatar à presidência em 2022, sem medo de ser feliz.

Não vou palpitar sobre a sentença de Fachin, nem para defendê-la, nem para atacá-la. Por uma simples razão: em assuntos com relevância política, a jurisprudência do STF virou uma bagunça. O que valia ontem não vale hoje, e pode ser um pouco diferente amanhã.

Eu nunca achei que o literalismo absoluto deveria ser a regra de interpretação nos STF, nem jamais demonizei o tal “ativismo jurídico”. Acho que existe, sim, uma margem considerável de liberdade para que os ministros analisem seus casos com base em princípios, o que pode levar a inovações. Acho que eles devem suprir lacunas legislativas quando a falta de uma regra causar prejuízos à sociedade e o Congresso não se mexer. Mas a corte deveria fazer esses lances de forma discreta, prudente, circunspecta – quase como se não fizesse. Não é assim que vem acontecendo.

A lei não é parâmetro para nada, porque não existem limites para a “hermenêutica jurídica”. Em vez de ser uma técnica com regras claras, conforme se ensina nas faculdades, nas mãos de nossos ministros essa hermenêutica, ou interpretação, é uma arte regida… pelo quê? Pelas musas? Pelos interesses políticos? Vai saber. Assim é, se lhe parece.

Se a lei não existe, imagine então o respeito pelos precedentes do próprio tribunal, método de julgamento que tem muito mais a ver com a tradição jurídica anglo-saxã do que com a nossa, que tem raízes romanas. Cada um dos onze ministros se sente à vontade para recriar o mundo em cada sentença individual, dando uma pernacchia – como diriam os romanos – para o plenário. Mesmo o plenário vai mudando seu entendimento aos soluços: a prisão em segunda instância era autorizada; deixou de ser em 2009; voltou a ser em 2016; deixou de ser em 2019.

É patético.

Pior que não funciona sempre do mesmo jeito. Se fosse, poderíamos nos consolar com a ideia de que o método é não ter método. No entanto, em inúmeras questões mais áridas, julgadas longe dos olhos do público, há sim muita interpretação comedida e construção sólida de jurisprudência. É num punhado de assuntos que Dionísio, o deus da esbórnia, visita o tribunal. E o tribunal decide bêbado (metaforicamente, é claro).

No caso da Lava Jato, o tribunal passou mais de quatro anos validando as decisões que vinham de Coritiba. Inventar agora, como fez Fachin, que questões de competência, que são preliminares a qualquer julgamento de mérito, não haviam sido levadas em conta anteriormente é chamar de incompetente, ou louco, o colegiado.

Não seria uma artimanha? Não seria um jeito de impedir que outro tema espinhoso, a suspeição de Sergio Moro para julgar Lula, fosse analisada? Ou uma forma de levar a discussão do caso do ex-presidente para o plenário, tirando-a da Segunda Turma, onde a Lava Jato tem levado pancada atrás de pancada da trinca Gilmar Mendes, Leandro Lewandowski e Kassio Marques?

Nada disso faz muito sentido. O efeito de declarar Moro incompetente para julgar ações da Lava Jato que não tenham ligação exclusiva com a Petrobras vai ser amplíssimo. Atingirá uma pilha de outros casos. Não seria assim necessariamente, caso se discutisse a suspeição do juiz para julgar um único réu.

Será que Fachin desejava causar mesmo um abalo sísmico? Vai saber.

Ver a Lava Jato desmoronar por uma estúpida nulidade processual é terrível. A tarefa primordial do Supremo neste momento, a tarefa histórica, era conseguir separar a Operação Lava Jato do lavajatismo. Era impedir que toda a montanha de provas colhidas contra os corruptos da Era Petista virasse fumaça devido a chicanas jurídicas, como aconteceu com várias outras grandes investigações do passado, e ao mesmo tempo mostrar que nem tudo vale, mesmo quando se trata de perseguir criminosos de colarinho branco.

Uma corte mais circunspecta e prudente – uma corte melhor – talvez conseguisse.

PS: Neste momento, o que se apresenta para 2022 é uma escolha entre Lula e Bolsonaro. É como se todos estes anos de crise econômica e corrupção, de golpismo e tragédia na saúde, não tivessem servido para nada. O Brasil continua preso na mesma polarização. É o retorno do pior possível.