Está circulando bastante nas redes sociais um artigo escrito por João Moreira Salles para a edição de julho da revista Piauí, da qual ele é dono. O artigo se chama A morte e a morte – Jair Bolsonaro entre o gozo e o tédio, e seu tema são as pulsões que comandam o presidente e seus apoiadores.

Salles tem coisas interessantes a dizer sobre o culto da violência e da negatividade que está no coração do bolsonarismo. Acho especialmente útil sua análise de como, uma vez instalados no governo, os prepostos de Bolsonaro se dedicam com afinco a demolir o que está de pé e lhes parece contaminado pelo “esquerdismo” ou pelo “globalismo”.

Esse propósito está bem resumido numa frase dita por Bolsonaro em Washington, que Salles reproduz: “O Brasil não é um terreno aberto onde nós pretendemos construir coisas para o nosso povo. Nós temos é que desconstruir muita coisa, desfazer muita coisa. Depois, podemos começar a fazer.”

Mas então vem o último parágrafo do texto e percebemos que Salles não pretende fazer apenas um diagnóstico freudiano do atual governo (foi Freud quem deu relevo à “pulsão de morte” como forma de explicar o comportamento humano). Salles decide explicar por que Bolsonaro chegou ao poder:

“Em 1964, o poder foi tomado à força. Em 2018, 57,7 milhões de brasileiros sufragaram a versão piorada de um regime odioso. Outros 11 milhões anularam ou votaram em branco. No fim das contas, talvez fosse inevitável chegarmos a isso. Bolsonaro não é diferente do país que o elegeu. Não todo o Brasil, nem mesmo a maioria do Brasil (uma esperança), mas um pedaço significativo do Brasil é como Bolsonaro. Violento, racista, misógino, homofóbico, inculto, indiferente. Perverso.”

Pronto: é atávico. Uma coisa que vem da terra. Bolsonaro foi eleito porque o brasileiro é igual a ele.

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Deixemos de lado o fato de que esse raciocínio deve agradar ao presidente, que adora pensar que encarna o verdadeiro Brasil.

Das duas, uma: ou uma explicação como essa é preguiçosa, ou é picareta. Como o autor escreveu bastante até chegar a esse último parágrafo, fiquemos com a picaretagem.

Qualquer explicação séria da eleição de Bolsonaro precisa passar pelo desgaste dos partidos brasileiros na história recente, e especialmente do PT. Mas esse é um assunto que  Salles evita abordar. Para ele, não há conjuntura política, apenas uma escolha entre o bem e o mal nas eleições de 2018. Quem não escolheu o PT ficou do lado do mal, mesmo se votou em branco.

Esse é o argumento que o PT esgrimiu e continua a esgrimir, agora com vista às eleições de 2022. O PT que nos últimos meses se recusou a participar de movimentos em favor da democracia deseja apenas uma coisa: que o próximo pleito repita o anterior. A esperança é que o resultado se inverta.

Para isso, é preciso impedir que surjam alternativas viáveis tanto ao bolsonarismo quanto ao lulo-petismo. Há muita energia política e intelectual voltada a esse propósito atualmente.  Pintar como cúmplices do mal os 11 milhões de eleitores que votaram em branco ou anularam seus votos em 2018 e aqueles que hoje desejam escapar à polarização ruim que tomou conta do Brasil faz parte dessa estratégia. É uma tentativa de coação moral.

Não é só Bolsonaro. O desejo lulo-petista de que o pesadelo eleitoral de 2018 se repita daqui a dois anos também é uma forma de pulsão de morte. Freud explica?

 


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