MAU NEGÓCIO O arquiteto Nabil Bonduki diz que faltou discussão sobre o projeto: “Há algo de estranho no ar” (Crédito:Regis Filho/Valor )

O presidente Jair Bolsonaro quer muito ocupar o Campo de Marte, primeiro aeroporto paulistano, lugar cheio de simbologia e espólio da Revolução Constitucionalista, desapropriado pela União durante o Estado Novo, mas nunca inteiramente dominado. Conquistar a posse do imóvel é quase uma questão pessoal. Ele pretende cravar sua estaca militarista no coração de São Paulo, na Zona Norte, bem no lugar onde se estrangulou o movimento armado contra Getúlio Vargas em 1932. Ali, Bolsonaro implantará um dos grandes monumentos de seu governo, o projeto piloto de sua guerra cultural, um lugar dominado pelas Forças Armadas em que milhares de estudantes terão de bater continência, só andar de uniforme, cantar o hino todo dia, ter aula de Educação Moral e Cívica e se familiarizar com as responsabilidades da caserna. Se os planos de reeleição do presidente não derem com os burros na água, como é quase certo que acontecerá, estarão erguidos, até 2023, dois edifícios, um destinado ao ensino fundamental e outro ao ensino médio, numa área de 83 mil metros quadrados, onde funcionará o maior colégio bolsonarista do Brasil, além de um gigantesco complexo esportivo com campo oficial de futebol, arquibancada para 800 pessoas, pista de atletismo e piscinas, inclusive uma semi-olímpica. O presidente está obcecado pela ideia e trata de ampliar seu alcance numa negociação tortuosa, feita do dia para a noite com a Prefeitura para obter o total controle sobre o imóvel.

Dúvidas e lacunas

Com o beneplácito do prefeito paulistano, Ricardo Nunes, que propôs ao presidente a troca do Campo de Marte pela dívida da Prefeitura com a União, de R$ 25 bilhões, o negócio foi aprovado em primeiro turno, no final de novembro, na Câmara Municipal, em regime de urgência e por maioria esmagadora. Nada se discutiu e nenhuma restrição ou compromisso foi estabelecida para a permuta. Resta, porém, uma segunda votação prevista para a próxima quinta-feira, muito mais incerta e que pode nem acontecer diante das inúmeras dúvidas e lacunas que apareceram no projeto. O problema principal é que o imóvel, que tem um total de 2,1 milhões de metros quadrados, foi avaliado pela Procuradoria do Município em R$ 49 bilhões, quase o dobro do valor da dívida. “Eu mesmo votei a favor da proposta no primeiro turno, mas a Prefeitura não pode simplesmente abrir mão de R$ 24 bilhões”, afirma o vereador Senival Moura, vice-líder do PT na Câmara. “É uma renúncia muito grande e a matéria precisa ser discutida de forma mais ampla antes de ir novamente à votação”. Para o vereador Toninho Vespoli (PSOL), está faltando transparência sobre a situação, tanto da Prefeitura quanto do governo federal. “O projeto precisa passar por uma ampla discussão da sociedade e queriam aprová-lo em duas votações rapidamente, em dez dias”.

CONTROLE Área da Zona Norte de São Paulo foi ocupada pelas forças de Getúlio Vargas na Revolução de 1932 (Crédito:Divulgação)

Na terça-feira, 7, Ricardo Nunes esteve na Câmara e aproveitou para dar novos esclarecimentos para pressionar a sua aprovação. Segundo ele, a posse do imóvel ainda não está assegurada pela Prefeitura — em sua última decisão, o ministro do STF Celso de Mello reconheceu o direito do município à gleba, mas o ministro Kassio Nunes Marques pediu vista do processo. Diante da indefinição jurídica, o prefeito argumenta que o valor baixo do negócio é uma ficção. “Na boa, aqui entre nós, esse dinheiro não existe, o valor de R$ 49 bilhões foi a nossa Procuradoria que levantou, vendo os critérios técnicos, vendo o interesse da Prefeitura, mas a avaliação da AGU é de R$ 18 bilhões”, disse. “Não há essa história de que a Prefeitura vai perder, o que é real é que a dívida do município com a União custa R$ 250 milhões por mês. Se fizermos a troca, esse dinheiro será destinado para investimentos.” Nunes deveria lembrar também que mantido o pagamento das parcelas, a dívida seria quitada em 2028, sem que o município precise abrir mão de seu patrimônio. Além disso, o reforço de caixa da Prefeitura só terá efeitos em curto e médio prazos, na gestão de Nunes e na próxima, o que indica interesses eleitoreiros na transação.

O arquiteto e urbanista Nabil Bonduki, professor da FAU-USP, fica especialmente intrigado com o interesse do governo federal no negócio e diz que há algo de estranho no ar, inclusive pela disposição dos vereadores em votar o tema sem um debate mais profundo. “Por que o governo federal abriria mão de uma receita de R$ 3 bilhões por ano num momento em que se empenha para adiar o pagamento de precatórios e reforçar seu caixa em um ano eleitoral?”, pergunta Bonduki. “Qual é o acordo sobre a destinação futura da área, principalmente dos trechos ocupados pela Aeronáutica, que deveriam ser devolvidos para o município?”. A resposta é a vontade de Bolsonaro de dar o destino que bem entender para o Campo de Marte, sem precisar dar qualquer satisfação sobre suas iniciativas e cantar de galo no terreiro de um de seus principais rivais políticos, o governador de São Paulo, João Doria. O que está cada vez mais evidente é que a posse e a intervenção na área a seu bel prazer fazem parte de um movimento estratégico de construção simbólica do regime. Para Bolsonaro, o melhor destino para o Campo de Marte é que ele vire uma espécie de grande local de trabalho e diversão militar. É um lugar onde ele quer imprimir sua marca e que vai servir para fomentar a militarização da sociedade.

O Campo de Marte é um aeroporto compartilhado que abriga instalações civis e da Força Aérea Brasileira (FAB). De sua área total, cerca de 1,13 milhão de metros quadrados estão sob a administração do Comando da Aeronáutica e incluem o Parque de Material da Aeronáutica (PAMA-SP), a Prefeitura de Aeronáutica de São Paulo (PASP), o Núcleo do Hospital da Força Aérea de São Paulo (NuHFASP), e a Subdiretoria de Abastecimento (SDAB). Outros 975 mil metros quadrados estão sob a administração da Infraero, incluindo o aeroporto, que segundo comunicado do Ministério da Infraestrutura será um dos 16 transferidos à iniciativa privada na sétima e última rodada de concessões aeroportuárias que será realizada pelo governo. Há também seis times de futebol de várzea na área. O Centro de Logística da Aeronáutica (CELOG) foi demolido em agosto do ano passado e está dando espaço ao novo colégio cívico-militar, que consumirá investimentos totais de R$ 130 milhões. A obra e a gestão da escola ficarão sob responsabilidade do Exército. A vontade de Bolsonaro é de inaugurá-la em 2023, com capacidade para mil alunos.

O Campo de Marte foi palco de combates, sofreu bombardeios aéreos e acabou “conquistado” por Vargas em 1932, na Revolução Constitucionalista. Em 1958, a Procuradoria do Município entrou com ação para reaver a posse do local e desde então corre um processo em que a Prefeitura tenta ser indenizada pelas décadas de uso indevido do terreno pela União. É aí que se chega nos R$ 49 bilhões. A troca com o governo pode até ser uma boa saída financeira para o município, mas a pressa em fechar o negócio é inexplicável e causa desconfiança. Há muito o que se discutir, inclusive como ficará a instalação de um parque público no terreno, proposta de longa data que não pode ser deixada de lado. Pelo projeto negociado entre Nunes e Bolsonaro, esse equipamento está previsto, desde que venha acompanhado de um Museu da Aeronáutica, mais uma atração do complexo militar que Bolsonaro está instalando em São Paulo. O grande problema do parque é que o presidente pode querer escolher o nome do coronel torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra para batizá-lo.