Em 1965, o jesuíta argentino Jorge Mario Bergoglio ensinava Literatura e Psicologia no Colégio Imaculada, em Santa Fé, quando quatro estudantes bateram à sua porta. Eles mostraram a capa de um disco dos Beatles, “uma banda de rock que eu ainda não conhecia”, conta o então professor. O vinil era, provavelmente, A Hard Day’s Night, pois ele lembra de ter feito uma piada sobre os cabelos compridos do grupo. Bergoglio ficou empolgado com a animação dos roqueiros a quem lecionava. Arrumou local para ensaiarem, equipamento de som e até um tradutor para passar as letras para o espanhol. Essa é uma das passagens que o Papa Francisco conta em seu livro de memórias, Vida — A Minha História Através da História, com previsão de lançamento no Brasil para a primeira quinzena de abril.

A narrativa escolhida acompanha a abordagem menos formal que caracteriza seu período como 266º pontífice, desde março de 2013, quando sucedeu ao abdicatário Joseph Ratzinger, o Bento XVI, falecido no último dia de 2022.

Mesmo nos episódios mais violentos do século XX, o primeiro pontífice não-europeu em mais de 1.200 anos trata de pontuar com lembranças que tornam o período mais leve. É uma das características do seu papado, pontuado pelo elogio à humildade, defesa de causas populares como a questão climática, críticas às guerras e ao capitalismo, abertura a temas LGBTQIA+ e elogio ao diálogo inter-religioso.

Vida: livro foi escrito a partir de conversas com o vaticanista Fabio Ragona (Crédito:Divulgação )

A obra é construída em três camadas cronológicas:
a primeira pontua fatos históricos desde o nascimento de Bergoglio, em 1936;
na segunda, ele oferece sua visão como testemunha do acontecimento relatado e o que fazia à ocasião;
a terceira traz abordagem religiosa sobre o mesmo.

O livro foi escrito a partir de conversas com o jornalista Fabio Ragona.

Jorge Mario com a mãe, a filha de genoveses Regina Gogna, e o pai, o piemontês Mario Bergoglio (Crédito:Divulgação )

Começa antes mesmo do nascimento do biografado, quando o navio em que era para estar seu pai, o italiano Mario Bergoglio, naufragou na costa brasileira antes de alcançar o destino final, Buenos Aires, em 1927. Ele chegou à Argentina dois anos depois, onde teve cinco filhos, sendo Jorge Mario o primogênito.

Suas primeiras lembranças são das críticas em casa ao nazismo, já que viveu a infância durante a Segunda Guerra Mundial. “O racismo é uma doença, um vírus. A frase que mais ouvia era: ‘Hitler é um monstro’”, cita ele.

De lá, mistura o final do conflito com sua paixão futebolística pela equipe do San Lorenzo, com citação da ida da família inteira ao estádio para acompanhar partida do time — no mesmo dia em que o Japão assinava a rendição e encerrava formalmente a guerra.

Fã de futebol: Papa quis saber de Maradona como foi gol histórico (Crédito:Divulgação )

Esporte e namoro

Sobre futebol, dedica um capítulo ao craque Diego Maradona, batizando-o com bom humor de “A Mão de Deus”, em referência ao gol que o camisa 10 marcou na Copa de 1986 contra a Inglaterra, com um tapa. Ao final da partida, cercado por repórteres, deu sua explicação sobre o lance: “Eu o marquei um pouco com minha cabeça e um pouco com a mão de Deus”.

Papa Francisco diz que ao final de um encontro com o craque, após falarem principalmente sobre paz, não aguentou e perguntou: “Qual é a mão do crime?”.

No setor confessionário, Bergoglio conta sobre uma namorada que teve, “uma menina muito doce que trabalhava no mundo do cinema e que depois casou-se e teve filhos”, mas não revela se foi a única.

Narra também o período depressivo que passou, a que se refere como “escuridão”, e opina sobre a queda do Muro de Berlim, 11 de Setembro, recessão econômica de seu país natal e a renúncia de Bento XVI, que o levou à cadeira papal.

A última, sem muito entusiasmo, pois diz nunca ter almejado o posto. E finaliza com pedido por orações, ao seu modo: ”Por favor, não se esqueça de rezar por mim. A favor, não contra!”.

Jorge Rafael Videla: general agentino governou o país com mão de ferro, entre 1976 e 1981 (Crédito:Divulgação )

“As acusações contra mim (de conivência com a junta militar durante a ditadura na Argentina) continuaram até pouco tempo atrás. Era a vingança de algum causador de confusão que sabia muito bem quanto eu me opunha àquelas atrocidades. (…) Posteriormente, algumas pessoas me confiaram que o governo argentino da época tinha tentado de todas as maneiras colocar a corda no meu pescoço, mas não encontraram nenhuma prova, pois eu estava limpo. Rezei muito a Deus naqueles anos de regime, sobretudo para poder dar a paz a quem vivia na pele as violências e humilhações. A ditadura é diabólica, vi com meus olhos. Vivi momentos de grande desconforto, com medo de que algo pudesse ocorrer a meus irmãos mais jovens. Foi um genocídio geracional.”

‘ELE ABORDOU TEMAS INÉDITOS’

Coautor do livro, Fabio Ragona conversou com ISTOÉ sobre o que mais lhe surpreendeu durante as conversas com o Papa

Como vaticanista, e não como e escritor, o senhor pode falar quem é o Papa Francisco, em comparação com outros pontífices que foram temas de seus estudos?
Acho que ele é um papa que criou uma ruptura total com o passado, de vários pontos de vista. Não conheci João Paulo II e Bento XVI, mas posso dizer que o Papa Francisco iniciou um processo sem precedentes no Vaticano e na própria Igreja.
Vamos pensar: Bergoglio rompeu todos os padrões, fazendo gestos únicos, como ajoelhar-se e beijar os pés das duas delegações do Sudão do Sul que estavam negociando a paz, ou ir pessoalmente ao embaixador russo na Santa Sé para pedir o fim dos bombardeios da Rússia na Ucrânia. Essa ruptura também diz respeito à comunicação: nunca antes um papa havia dado tantas entrevistas e se preocupado com redes sociais.

Como foi decidido que a autobiografia do Papa seria um livro descontraído, nascido de conversas e sem o rigor formal que exigiria uma história papal?
A ideia foi minha e propus a ele que reconstituísse sua vida, contando os eventos históricos que viveu e transmitindo mensagens importantes sobre questões atuais. O Papa então me ligou e disse o que achava que poderia ser feito. Falando sobre o papel dos idosos na vida dos jovens, ele me disse que poderia reabrir o livro de memórias de sua vida para se dirigir a eles e testemunhar o que viu com seus próprios olhos.

(Eduardo Di Baia/Ap Photo)

Ao contar sua própria história, o Papa aborda temas inesperados para um pontífice. Fala sobre a ditadura, futebol, depressão e até mesmo namoradas. O que mais o surpreendeu, entre os tópicos que ele escolheu?
O que mais me impressionou foi o relato dele sobre os anos da ditadura de (Jorge Rafael) Videla, porque conta pela primeira vez, sem filtros, o que aconteceu naqueles anos. Uma pessoa me disse que ele nunca tinha ido tão longe ao lembrar desse período de sua vida. Desta vez ele decidiu abrir seu coração. Eu o achei muito triste quando contou quantos jovens desapareceram no ar, jogados dos “voos da morte”. Disse que se tratava de um genocídio geracional e acho que é realmente assim. E depois fiquei surpreso com a precisão de seu relato sobre o conclave: ele reconstruiu, passo a passo, aquela tarde que mudou sua vida.

Poderia compartilhar sua história pessoal favorita das reuniões para este livro?
No livro, incluímos tudo o que conversamos, sem excluir nada. Fiquei muito impressionado com sua generosidade e humildade. Apesar de ser um homem tão importante, se preocupava se eu tinha comido ou precisava de alguma coisa. Gostei muito de suas histórias sobre os momentos em família, quando jogavam cartas ou iam juntos ao estádio de futebol. E também os dias com as crianças, quando ele já havia se tornado padre. Ele as reunia para realizar o catecismo e depois as fazia cantar canções italianas populares, como ‘O Sole mio’ ou ‘Dove sta Zazza’.