Na virada de 1947 para 1948 nasceu no Brasil uma mulher que se esmerou em validar o tão decantado lema “ano novo, vida nova”. Era dia 31 de dezembro e veio à luz Rita Lee. Sim, com certeza você a conheceu, ainda que não pessoalmente, pelo menos de nome e de mídia. Ela quis construir um novo País.

A seu modo, Rita tentou dar ao Brasil, sem os tradicionais fingimentos de Pindorama, a decência da democracia social, racial e de gênero. A seu modo, Rita tentou mostrar que as individualidades devem ser respeitadas. A seu modo, Rita tentou fazer que as brasileiras e os brasileiros ganhassem florestas saudáveis, bonitas e preservadas. A seu modo, que todos bailassem. E tivessem o que comer.

O que era esse “a seu modo”? Nada além que o exercício da sinceridade na exposição dos pensamentos — nunca se calar, dizer sempre o que se pensa, desde que o pensado e o dito guardem convicção. É tolo quem considera que Rita Lee levava a vida na brincadeira. A moleca Rita Lee era séria demais no desacato, na irreverência, no vanguardismo, na celebração da carne, do amor, do sexo. Foi aplaudida e querida, mas infelizmente poucos a seguiram naquilo que possuía de melhor: a coragem de dizer o que sentia.

Para se ter uma idéia, Rita teve música censurada porque os sisudos (coitados) homens das tesouradas (coitados) consideraram que havia dupla intenção quando ela cantava: “me aqueça/ me vira de ponta cabeça/ me faz de gato e sapato/ me deixa de quatro no ato/ me enche de amor”. Qual dupla intenção? Só pode achar que ela se portava com dupla intenção quem é dublê de intenção. A mensagem clara, na sinceridade de Rita, era somente uma: cantar o prazer do sexo feito com saúde e amor. Claro que os sisudos (coitados) homens das tesouradas (coitados) sabiam muito bem que o objetivo era apenas homenagear o transar, mas como morriam de vergonha de serem julgados moralistas inventaram a balela do duplo sentido. Isso é exemplo da mentira, hipocrisia e falta de coragem de afirmar a verdade, para citar três características que permearam e ainda permeiam
a sociedade brasileira e contra as quais Rita sem medo sempre se lançou.

Absurdo. No Brasil, lança-perfume não pode. Mas lança-gás de pimenta na cara de preto pobre pode

A Rita Lee do dia 31 de dezembro saiu de cena. Viveu sete décadas e meia, mas pouco viu o País melhorar. Nós também. O falso moralismo segue galopando, o meio ambiente segue à mercê de motosserras, o princípio da liberdade individual segue aprisionado, seguem milhões de estômagos no monocórdico e funéreo coral da fome. Rita ensinou que deve existir uma única intenção — a da celebração da vida com alegria e humor. Há no Brasil um absurdo: lança-perfume não pode. Lança-gás de pimenta na cara de preto pobre pode.