Nada poderia ter sido mais simbólico da falência social e cultural na qual o Brasil está imerso do que as chamas que consumiram o Museu Nacional, no Rio de Janeiro, na noite do domingo 2. Em seis horas, parte da história da humanidade ali abrigada foi reduzida a cinzas. Maior museu de história natural e antropológica da América Latina, a instituição possuía mais de 20 milhões de itens. Entre outras preciosidades, estavam lá a maior coleção de múmias e artefatos egípcios da América Latina, 700 peças greco-romanas do período da Antiguidade Clássica e coleções riquíssimas de entomologia, botânica e paleontologia. Assistir às labaredas consumindo o museu foi como se, de repente, cristalizasse a sensação nacional de um País sem memória mergulhado em cinzas. A comoção que situações assim normalmente despertam, pontuada por solidariedade e lamento, cresceu misturada à indignação e vergonha de uma nação que deixa sua identidade ser destruída e gradativamente dá as costas à civilização. Foi possível descer ainda mais na escala da degradação nacional.

PALÁCIO Todos os ambientes foram atingidos. Sobraram apenas as paredes. Abaixo, o prédio antes do incêndio (Crédito:Custódio Coimbra)

A instituição dividia com o Museu do Ipiranga, em São Paulo, a responsabilidade por preservar os retratos do nascimento do Brasil. Instalado na Quinta da Boa Vista, no palácio onde morou a família imperial entre os anos de 1816 e 1821, o museu guardava escritos da Imperatriz Teresa Cristina (1822-1889), cadernos de anotações da Imperatriz Leopoldina (1797-1826), diários da Princesa Isabel e documentos de José Bonifácio de Andrada e Silva, personagem decisivo no processo de independência do País. Dentro de uma caixa transparente, estava o crânio de Luzia, nome dado ao esqueleto de 12 mil anos encontrado em 1970 em Minas Gerais e apresentado à comunidade científica em 1998. Mais antigo do continente, era peça fundamental para reconstituir a trajetória da ocupação da região pelo ser humano. Até a quinta-feira 6, não se sabia se Luzia havia resistido ao fogo. Uma das poucas peças que resistiram à catástrofe foi o meteorito Bendegó.

Fábio Motta

Memória incendiada

As reações foram imediatas. Entre as 19 horas do domingo e as 13 horas da segunda-feira, o assunto rendeu 1,6 milhão de tuítes. Foi um alcance semelhante ao registrado pela rede social durante fatos marcantes do ano, como a morte da vereadora Marielle Franco, em março, da prisão do ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva, em abril, e a greve dos caminhoneiros, em maio. “O incêndio nos deixa de luto. A perda atinge não apenas o Brasil, mas toda a humanidade”, disse Felipe Chaimovich, curador do Museu de Arte Moderna de São Paulo. “Quem sabe a efeméride dos 200 anos do nascimento do Museu Nacional, e de sua morte, faça com que os governos, os parlamentos, a Justiça e a sociedade entendam que não há como ter um país desenvolvido sem memória”, declarou Eduardo Saron, diretor do Itaú Cultural e vice-presidente da Fundação Bienal de São Paulo. “O mundo perdeu, de ontem para hoje, um pedaço significativo da única coisa que justifica o canhestro reinado humano sobre a Terra: a cultura que produzimos”, escreveu Rafael Cardoso, escritor e historiador de arte.

A comunidade mais próxima da instituição mobilizou-se instantaneamente. Primeiro, para tentar salvar o que fosse possível. Depois, para protestar contra o descaso que resultou na tragédia. Assim que a notícia do fogo se espalhou, funcionários e pesquisadores correram ao local. O acervo era também matéria-prima para pesquisas importantes em diversas áreas da ciência. Há seis cursos de pós-graduação: antropologia social, arqueologia, zoologia, botânica, linguística e línguas indígenas e geociências. Trabalham na instituição 89 docentes, e 500 estudantes conduzem trabalhos de mestrado e doutorado. Pesquisador do Departamento de Vertebrados, o professor Paulo Buckup enfrentou as chamas para salvar moluscos. “Tinha um técnico da área que sabia como localizar no escuro o material mais importante. Conseguimos pegá-lo”, diz.

Como de regra em todo desastre nacional, nenhuma autoridade tomou para si a responsabilidade do que aconteceu. É verdade que tragédias assim não acontecem por erros de apenas uma pessoa ou organização. Mas também é certo que cada um tem sua parcela de culpa e seria no mínimo honroso assumir isso. O que se viu, porém, foi uma troca patética de acusações mútuas entre os envolvidos. O museu é uma instituição da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que recebe verbas do governo federal. Segundo o Portal da Transparência do Governo Federal, a cada ano importâncias específicas são destinadas ao museu, mas a universidade aplicaria na instituição menos do que é enviado. “A UFRJ destina recursos insuficientes ao museu”, afirmou o ministro da Cultura Sérgio Sá Leitão. “Em uma reunião com o reitor da universidade, Roberto Leher, solicitei projetos para o museu e eles não apresentaram nenhum”, disse. Leher respondeu: “O Brasil precisa avaliar para onde estamos caminhando. Não existe nenhuma linha de financiamento dos ministérios da Educação e Cultura para prédios históricos tombados pelo patrimônio histórico”. O diretor do museu, Alexander Kellner, também responsabiliza o Executivo. “Todos os governos não fizeram nada pelo museu”, disse . “Em vários momentos não fui recebido por ninguém. Foi uma humilhação.”

COMOÇÃO Estudantes e funcionários cercam o museu e protestam contra o descaso (Crédito:Carl de Souza)

O fato é que tanto o governo federal como a reitoria repassam, ano a ano, cada vez menos recursos ao museu. Em 2014, Brasília contingenciou R$ 1,3 milhão e o que chegou efetivamente à Quinta da Boa Vista foram R$ 572 mil. Em 2015, foram enviados R$ 805 mil e usados R$ 134 mil. Em 2016, dos R$ 606 mil repassados, chegaram aos cofres do museu R$ 446 mil. Em 2017, o Executivo federal destinou R$ 547 mil e a UFRJ deu ao museu R$ 420 mil. Neste ano, o governo enviou R$ 204 mil. Chegaram à instituição R$ 33 mil. Uma comparação rápida de gastos mostra quanto vale a história e a cultura na régua do Estado brasileiro, independentemente da instância. Neste ano, a Mesa Diretora e as lideranças da Câmara dos Deputados pretendem gastar R$ 563 mil somente com a lavagem de veículos oficiais. Um escárnio.

COMBATE Os bombeiros enfrentaram dificuldades para conter as chamas. Faltou água nos hidrantes (Crédito:Divulgação)

Há dois anos os representantes do museu trabalhavam em outra frente de obtenção de recursos. Eles tratavam com o BNDES a liberação de uma verba de R$ 21,7 milhões. As negociações demoraram tanto que o contrato foi assinado somente em junho, mas o dinheiro, efetivamente, não chegou antes de domingo. Parte dos recursos seria usada para fazer reparos na estrutura do prédio, visivelmente danificada. Tanto que, há dois meses, um arquiteto que não quis se identificar denunciou ao Ministério Público Federal que um incêndio era iminente por causa da precariedade de instalações elétricas, com fios desencapados, e a presença em locais inadequados de materiais inflamáveis. Contribuía para aumentar o risco a estrutura do prédio, toda em madeira, e coberturas de plástico em partes do telhado.

Embora não tenha obrigação oficial de custear o museu, o setor privado também poderia ter contribuído mais. Há oito anos o Museu Nacional busca verbas para melhorias por meio da Lei Rouanet, que permite às empresas deduzir impostos desde que o valor seja usado para apoiar projetos culturais já aprovados pelo Ministério da Cultura. Entre 2008 e 2018, o museu teve seis projetos aceitos. Somados, totalizavam E$ 17,6 milhões. Só conseguiu captar, de verdade, R$ 1 milhão, segundo a agência Lupa, usado no único projeto que despertou o interesse da iniciativa privada: a exposição do acervo de mineralogia, um dos mais ricos da América Latina. Em compensação, empreendimentos de claro caráter mais popular obtiveram muito mais apoio. Entre eles, o Cirque Du Soleil, que captou R$ 9,4 milhões, e “Shrek, o Musical”, de 2011, que arrecadou de patrocinadores a soma de R$ 6 milhões para sua montagem.

CIÊNCIA O meteorito Bendegó, peça importante do acervo, resistiu ao fogo (Crédito:Wilton Junior )

Situação Precária

A ausência de cuidado com a memória nacional não é prerrogativa de governos, partidos ou períodos específicos. É algo histórico, que corrói a identidade do País há séculos. Para ficar só nos exemplos mais recentes, antes do grande desastre do domingo, temos o incêndio que destruiu o Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, em 2015, e o que danificou partes importantes do Memorial da América Latina, também na capital paulista, em 2013. “Existem instituições que enfrentam dificuldades e têm situações bastante precárias”, afirma Marcelo Mattos Araújo, presidente do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram). “O Museu da República, por exemplo, está com problemas graves na estrutura. Dois terraços tiveram de ser escorados porque apresentam risco de queda.” Uma das poucas instituições que escapou de uma tragédia foi o Museu do Ipiranga, em São Paulo. Sob controle da Universidade de São Paulo (USP), está fechado desde 2013, depois de análises apontarem risco iminente de desabamento do forro. Sua reabertura está prevista para acontecer em 2022, no bicentenário da Independência do Brasil.

CULPA O ministro da Cultura, Sérgio Sá Leitão, acusa Roberto Leher, reitor da UFRJ, e Alexander Kellner, diretor do museu (à dir.), de inoperantes. Ambos revidaram (Crédito:Renato Costa)

Museus, a exemplo de qualquer outro equipamento cultural, são instrumentos de educação, produção de conhecimento, contemplação e diversão. E, ao contrário do que muitos imaginam, atraem públicos diferentes, principalmente quando seus responsáveis são capazes de torná-los próximos à população. “O povo frequenta museus. É só ser chamado”, diz a historiadora Flávia Miguel de Souza, professora da Universidade Estácio de Sá. A comoção da tragédia do Museu Nacional deixou isso claro. Tocou, inclusive, as crianças brasileiras. Em São Paulo, crianças de quatro anos da Escola Baby Village encontraram uma solução para lidar com a tragédia: montar um museu a seu modo, com os dinossauros da caixinha de brinquedos. “Eles contaram que iriam cuidar do museu para que nunca mais pegue fogo”, contou a professora Carolina Mattos.

Marcelo Camargo/Agência Brasil

Infelizmente é tarde. Agora é agir para preservar o que ainda nos resta. Na noite de domingo, dia 2, o Brasil manteve-se, por horas, magnetizado diante das cenas mais estarrecedoras da nossa história recente. Mas somente dias depois descobriríamos o tamanho do estrago: a negligência, a incompetência administrativa e a corrupção incineraram 20 milhões de entes vivos. Não se perderam apenas 200 anos de história. Aniquilou-se conteúdos primordiais da existência do País. Uma nação pode até existir sem território, mas nunca sem memória. Poema de Carlos Drummond de Andrade reflete o sentimento dos brasileiros cujos corações arderam em brasa enquanto as labaredas do Museu Nacional o consumiam impiedosamente: “O enterrado vivo”. Como na chegada dos primeiros portugueses aqui, o País foi novamente saqueado. Restou um corpo desprovido de alma.


Colaborou André Vargas