Os militares brasileiros, é bom que se reconheça, tiveram o mérito de abraçar na década de 1970 o desenvolvimento da cadeia produtiva do etanol. Apesar de acidentado, o projeto visionário levou à criação do combustível verde e à formação de uma indústria energética nacional, eficiente e revolucionária. Diversas inovações se seguiram, como a criação do combustível flex pelas montadoras, a mecanização total (os boias-frias já não existem no Estado de São Paulo) e a utilização do bagaço de cana para produzir energia — ele já se tornou uma fonte importante na matriz brasileira. O pioneirismo veio na esteira de condições únicas: o Brasil se beneficia de três safras anuais (algo impossível no clima temperado) e pode intercalar na entressafra a produção de etanol de cana com a de milho, que tem alto potencial. Tamanha vantagem competitiva, que seria aproveitada em outras nações para um salto de desenvolvimento e prosperidade, já foi perdida na prática e está se transformando em mais um exemplo da vocação extrativista, uma mentalidade que condena a economia à dependência eterna. É o que se viu agora, mais uma vez, em estado bruto. Demonstrando uma miopia estratégica escandalosa, o mandatário premiou seu colega americano transferindo aos EUA, na prática, a primazia sobre o combustível verde. Aprovou e renovou no último dia 11 a isenção tarifária para uma cota de 187,5 milhões de litros do etanol importado dos EUA, país que já tomou do Brasil a dianteira na produção do combustível. Em agosto, a cota que o Brasil mantinha para todos os países fora do Mercosul perdeu a validade. Trump chegou a ameaçar o Brasil de “retaliação” caso a taxação fosse retomada. A renovação por 90 dias foi então negociada diretamente com os EUA e não contempla outros países.

“Tem que haver reciprocidade. O presidente tem a caneta na mão e o poder de facilitar a relação com os EUA, que está desbalanceada” Renato Cunha, Presidente Executivo da Novabio (Crédito:Divulgação)

Antidiplomacia

O gesto confirma a antidiplomacia do Itamaraty bolsonarista. Ao invés de mirar o interesse econômico e comercial do país, por meio de uma política de Estado, prioriza favores pessoais e afinidades ideológicas do governante de plantão — exatamente o erro cometido nos anos petistas. Agora, Bolsonaro agiu pressionado por Trump, que está em apuros nas eleições americanas e queria dar uma boa notícia aos produtores locais do “corn belt” — competidores dos brasileiros, diga-se de passagem. Eles já se beneficiam de subsídios vultosos do governo americano. Com a isenção tarifária, seu produto chega mais barato aos brasileiros do que o combustível nacional. Mesmo assim, o presidente brasileiro escolheu favorecer o colega, punindo os empreendedores brasileiros.

“A abertura de 90 dias para o etanol americano isento de tarifa é um grave sacrifício para a indústria nacional, que sofre com a queda de demanda em virtude da pandemia”, protestou a União da Indústria da Cana-de-Açúcar (Unica). “O Brasil não precisa do etanol americano”, disse Renato Augusto Pontes Cunha, presidente-executivo da Associação de Produtores de Açúcar, Etanol e Bioenergia (Novabio). “Tem que haver reciprocidade na relação e uma agenda que nos favoreça. O presidente tem a caneta na mão e poderia facilitar essas relações, que hoje estão bem desbalanceadas”, afirmou. De fato, não há justificativa econômica para a decisão do governo brasileiro. A importação camarada não se enquadra em uma política de estoques regulatórios, que é de fato necessária para o combustível, ou visando beneficiar o consumidor brasileiro. Por conta da pandemia e da diminuição do consumo de combustível, as reservas nacionais estão confortáveis. Sendo assim, não há necessidade de compra. A promessa de obter concessões de Trump para a exportação do açúcar brasileiro (tarifado em 100%), como acenou o Itamaraty para ceder aos americanos, pode não se concretizar. Não seria a primeira vez que o Brasil toma uma rasteira de Trump. Até agora o presidente americano não traduziu em benefícios comerciais o apoio incondicional que recebe do mandatário brasileiro por mera afinidade ideológica.

Negociação temerária

A falta de racionalidade nas negociações também afeta outras áreas. Recentemente Trump aprovou uma redução na importação de aço do Brasil, alegando desaquecimento do mercado local. A decisão representa queda de 350 mil toneladas para 60 mil toneladas no quarto trimestre. A mudança, naturalmente, afeta as empresas brasileiras e a balança comercial. Para especialistas, os exemplos do aço e do etanol evidenciam os problemas de uma aliança desequilibrada e não pragmática. “Nós sempre cedemos para eles. É preciso haver contrapartida, precisamos nos impor. Nossas relações são desiguais há anos. Está na hora de uma agenda que nos favoreça”, afirma Cunha, da Novabio.

A Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) também condenou o acordo do etanol e afirma que é preciso zelar pela indústria brasileira. A entidade estima que a agricultura gere mais de 750 mil empregos diretos e mais de 1,5 milhão indiretos, impactando ativamente a economia. Em nota, o Itamaraty se posicionou de forma protocolar. “Os dois países discutirão maneiras de garantir um acesso justo ao mercado, paralelo a qualquer aumento no consumo de etanol, bem como as indústrias de ambos países se beneficiem das mudanças regulatórias futuras em produtos de biocombustíveis.” Resta saber como serão as conversas sobre o tema daqui 90 dias, visto que as eleições americanas estão se aproximando.

PARCERIA DESIGUAL
EUA pouco favorecem os produtos do Brasil em acordos comerciais

187,5 milhões
Número de litros de etanol isentos de imposto que os EUA podem vender ao Brasil nos próximos 90 dias

150 mil toneladas
Essa é a quantidade de açúcar brasileiro importado pelos EUA

39 milhões
Montante, em toneladas, do açúcar produzido por ano no Brasil