Dados dão conta de que nos últimos doze meses houve 7.365 tiroteios e 53 pessoas morreram de balas perdidas na região metropolitana. Também recentemente, o governador Wilson Witzel foi afastado pela Justiça em primeira instância, afastamento por seis meses confirmado pelo STJ — que, pela primeira vez, puniu um governador sem prendê-lo. Ele entrou assim na fila indiana dos cinco antecessores, só que que esses cumprem pena em liberdade ou estão atrás das grades: Moreira Franco, Garotinho, sua esposa Rosinha, o campeão Sérgio Cabral e Pezão. O motivo é comum: corrupção, associação ao crime e lavagem de dinheiro. Em seu lugar assumiu o vice, Cláudio Castro, igualmente investigado e pessoa próxima a Jair Bolsonaro — é certo que Castro tentará no Judiciário aliviar a barra suja dos filhos do presidente Carlos e Flávio. Como se disse, a chapa é quente! Mas o que têm a ver os morros com tais políticos?

OVO E SERPENTE Em uma política demagógica, Leonel Brizola esqueceu o ensinamento do marginal Lúcio Flávio Villar Branco: “polícia é polícia, bandido é bandido”

O sambista paulista Adoniran Barbosa é dono de uma frase exemplar: “tragédia de pobre quando não dá em morte, dá em samba”. Adoniran tem relação com o Rio de Janeiro? Pouca gente sabe, mas o sucesso que o imortalizou, “Trem das onze”, venceu o concurso do carnaval carioca de 1965. Só que no Rio existem samba e morte ao mesmo tempo. Iniciemos a jornada, então, por uma música de autoria de Luis Antonio e Oldemar Magalhães, sucesso absoluto na voz da “divina” Elizeth Cardoso:

Vai, barracão
Pendurado no morro
E pedindo socorro
À cidade a seus pés.

O samba tomou conta do Rio de Janeiro em 1953, em plenos “anos dourados”. Aos moradores urbanos, aos políticos, às elites, a todos eles a população pobre e trabalhadora das favelas recorria. Claro que o pedido de socorro berrava em vão, o que se dava de esmola era a glamourização da miséria. As coisas giram. Hoje, é o estado que pede auxílio diante de uma violência que vitima cada vez mais inocentes, diante de um serviço público falido, diante de um tecido social esfarrapado. E tal pleito vem em uma situação de impasse porque já não se tem a quem pedir: ao morro não dá, no morro “tá tudo dominado”, seja pelos traficantes, seja pelos milicianos. Querer ajuda da classe política, isso também é impossível: com exceções, tal classe vai compondo uma galeria de corruptos. Os eventos se misturam: corrupção política, tráfico, milícia, são fatores que se entrelaçam na degradação ética, moral e social do Rio de Janeiro. Quando e como as coisas começaram?

Em 1983 o engenheiro Leonel Brizola era o governador do Rio de Janeiro e seu vice, o antropólogo Darcy Ribeiro, conceituado em todo o mundo. Darcy tinha a visão romântica da esquerda, achava que a solução era transformar favelas em comunidades — desde então, até a expressão “favelado” foi se tornando, cada vez mais, politicamente incorreta. Já Brizola, em uma política demagógica, fez acordo com os bandidos, desprezando os trabalhadores: a polícia não subiria morros para reprimir o tráfico de drogas. Pronto, a alma estava vendida ao diabo. Já não era mais o tempo dos malandros que colocavam gilete ou navalha entre os dedos dos pés para numa pernada cortar o rosto do oponente. “Miguelzinho Camisa Preta”, “Meia-Noite”, “Edgard”, párias da velha guarda, estavam desprestigiados. Quem mandava agora eram os traficantes. Com o pacto de Brizola, que entre a bandidagem ganhou o apelido de “cocaína”, traficantes passaram a disputar territórios. E, claro, desceram para o asfalto. E assim a vida seguiu…

Em um primeiro movimento para se defender dos assaltos nas próprias favelas, comerciantes se uniram no combate a marginalidade – eram os grupos denominados “autodefesa”. Logo, a eles se juntaram policiais inescrupulosos, assassinos de aluguel, assassinos somente por instinto, e aí está o nascedouro das milícias que hoje erguem prédios de areia que desmoronam e matam. Aí está o nascedouro das milícias que, assim como o tráfico de drogas, controlam o preço do gás, decretam toque de recolher, cobram aluguéis exorbitantes por barracos, determinam quem vive e quem morre. Assim veio à luz o chamado estado paralelo, que deixou de ser paralelo e transformou-se no próprio Estado, sob o foco da teoria de Theodor Adorno, um dos mais competentes sociólogos que já passou pela humanidade: no instante em que presos continuam operando em penitenciárias, territorialmente pertencentes ao Estado que legitimamente detém o monopólio da repressão, no momento em que milicianos ocupam cargos públicos, o que era estado paralelo passa a ser o próprio Estado. Pois é, a chapa é quente e vai esquentar ainda mais. Brizola não seguiu a máxima que partiu da boca de um bandido: Lúcio Flávio Villar Lírio: “polícia é polícia, bandido é bandido”. O deplorável ápice da ação das milícias foi a execução da vereadora Marielle Franco que as denunciava.

Assine nossa newsletter:

Inscreva-se nas nossas newsletters e receba as principais notícias do dia em seu e-mail

“Biqueiras e lojinhas”

DEU RUIM Witzel ficará afastado por seis meses: aniquilado pelo
STJ por 14 votos contra 1 (Crédito:Pilar Olivares )

Na linha do poder que já não pode mais ser chamado de paralelo por já ser o próprio Estado, há dois importantes pontos na análise das engrenagens da Segurança Pública do Rio de Janeiro. Ao que se sabe há um tipo de criminalidade que só existe lado a lado com o Estado: corrupção. Sem os desvios de verbas públicas e sem políticos que roubem e barganhem com marginais não seria possível existir tal cenário. A corrupção só ocorre porque políticos e agentes do Estado cometem atos ilícitos. Se houvesse chance de acabar com o Estado, os crimes praticados por gente engravatada ou por aqueles que andam com o “cano” na cintura seriam extintos. Mas há de se fazer uma ressalva: para se ter domínio de “biqueiras” ou das “lojinhas” (pontos de venda de drogas) não necessariamente se precisa da existência do Estado em sua integralidade — basta apenas a sua pública ou velada omissão. Quando essas duas extremidades se unem de maneira indissociável, quando ganham um só corpo e alma, é porque o Estado falhou em sua função ética de estamento burocrático governamental. “Essa relação íntima com a criminalidade organizada é histórica no Rio de Janeiro e isso só acontece com a cumplicidade do setor público”, diz o sociólogo Ignacio Cano, do Laboratório de Análise de Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Duas tentativas marcantes foram feitas para reconstituir a caótica situação — e ambas fracassaram. Em 2008, no governo do hoje preso Sérgio Cabral, criou-se as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) que começaram a operar no Morro de Santa Marta. A promessa era combater a milícia e o narcotráfico, e levar às comunidades lazer, educação, cultura e saneamento. Nada disso aconteceu, o que houve foi extorsão por parte da polícia, tortura e mortes. “O desenho original das UPPs previa a recuperação do Estado em territórios dominados pelo tráfico e milícia”, diz a socióloga e pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da USP, Giane Silvestre. “Acontece que essa política só reproduz o modelo de enfrentamento violento e recrudescimento entre e a polícia e a sociedade”. A segunda tentativa foi a intervenção militar na gestão do presidente Michel Temer. Diversos generais, entre eles o ex-comandante do Exército Eduardo Villas Bôas, alertaram que a função das Forças Armadas não é subir morro e descer morro atrás de bandido. Mais: a instituição poderia sair queimada nessa história. Não deu outra. O músico Evaldo dos Santos foi morto depois do seu carro ser alvejado com oitenta tiros quando a família voltava de um chá de bebê.

Quando policiais, agentes públicos e demais funcionários da também máquina pública engrossaram as milícias ou se mesclaram àqueles que usam camisetas enroladas no rosto, a cultura da promiscuidade social se alastrou feito água morro abaixo, feito fogo morro acima: ninguém segura. Insistindo na imagem incendiária (já que a chapa é quente), é do porão que as chamas sobem à cobertura. É no pé do móvel que o caruncho começa a trabalhar. Não foi difícil, pois, tal promiscuidade criminosa atrair o gosto de governantes pela corrupção. Numa sociedade onde tudo que não presta é entrelaçado (embora nela a grande maioria das pessoas prestem), a “anomia social” (conceito de Émile Durkheim, um dos fundadores da sociologia) escancara as portas “para a corrupção política”. Resta saber, agora, como reverter tudo isso que nasceu há mais de quatro décadas com o sr. Brizola.

Chapa quente

A resposta é complexa e exige um tanto de paciência, já que as soluções não são no curto prazo — tais soluções mostraram que matar, matar e matar não levam a nada, a não ser ao final de vidas, vidas e vidas. Para que se mude, é preciso começar e o começo exige mudanças estruturais e profundas – que, claro, necessariamente têm de vir de dentro do próprio Estado. “É preciso políticas públicas sociais. Ficar apenas guerreando com os traficantes não leva a lugar algum”, diz o sociólogo José Claudio Souza Alves, autor do livro “Dos barões ao extermínio: a história da violência na Baixada Fluminense”. O Estado precisa agir em uma retomada dos territórios dominados pelo crime, seja por milicianos ou traficantes, mas não é só isso. As estruturas sociais têm de se tornarem, necessariamente, a força motriz do Estado, para que a recuperação também promova a equidade. Ou seja: “A qualificação da polícia, prioridades no orçamento do governo, cuidados com áreas degradadas, investimento nas reivindicações da população, tudo isso é vital”, diz Souza Alves. Se nada for feito, a chapa continuará esquentando, até o momento em que o incêndio vai incinerar os próprios incendiários. Aí, São Sebastião do Rio de Janeiro (pedindo licença ao genial Chico Buarque) será “a noite da derradeira fogueira”.

Os “Guardiões”

CORRUPÇÃO O prefeito Marcelo Crivella criou a sua guarda pretoriana, paga com dinheiro do povo (Crédito:Divulgação)

À frente do Hospital Rocha Faria, no Rio de Janeiro, dois homens gritam e brutalmente impedem o trabalho dos repórteres que estão no local mostrando a falência do sistema público de saúde na cidade. As câmeras são finalmente desligadas. Pronto, os estúpidos “Guardiões do Crivella” venceram mais uma parada. O nome diz tudo: uma turma que o prefeito Marcelo Crivella contratou com dinheiro público para proteger sua administração. Esses leões de chácara cumprem carga horária, batem ponto na Prefeitura e recebem em média salário mensal de até R$ 18 mil — juntos, custam anualmente quase R$ 1 milhão aos cofres públicos. Em grupos de WhatsApp eles se organizam, distribuem as tarefas e comemoram as desistências das equipes de reportagens que encerram as gravações devido às confusões provocadas. Segundo um dos integrantes do séquito, o próprio Crivella acompanha a troca de mensagens e parabeniza os funcionários quando a imprensa é silenciada. A Prefeitura não nega as contratações.

MEDO Personalidades morreram assim que estiveram no palácio. Oito prefeitos não terminaram o mandato (Crédito:Brenno Carvalho )

A maldição do Palácio Guanabara

O Palácio Guanabara, atual sede do governo do Rio de Janeiro e deslumbrante em seu estilo neoclássico, é uma esfinge: decifra-me ou devoro-te. Até agora, ele tem devorado quem nele trabalha ou se hospeda. A mansão foi construída em 1853. Doze anos mais tarde passou a ser residência da Princesa Isabel, que nele viveu juntamente com seu marido, o Conde d’Eu. Com a proclamação (decretação é melhor) da República, em 1889, o imóvel foi incorporado aos bens da União — a princesa entrou na Justiça mas até hoje nenhum de seus descendentes recebeu um centavo de indenização. No mês passado o STF publicou acordão mantendo a casa para a União.

Reza a história que um escravo foi torturado no local em que se ergueu o palacete e, antes de morrer, teria amaldiçoado aquele chão. Pode ser mera lenda, mas o fato é que a esposa de Hermes da Fonseca morreu, assim que o marido tomou posse na Presidência da República e passou a trabalhar no palácio. O rei Alberto, da Bélgica, lá se hospedou por um mês, em 1920. Morreu. Nos anos 1950, a casa foi sede da Prefeitura. Leitor, respire fundo: oito prefeitos tiveram seus mandatos interrompidos devido à morte, doença ou golpe.


 


Siga a IstoÉ no Google News e receba alertas sobre as principais notícias