O garimpo ilegal levou para fora do País 229 toneladas de ouro entre 2015 e 2020, segundo relatório do Instituto Escolhas. O que significa U$ 8,2 bilhões roubados do Brasil. Nos números já apurados para o Ministério Público Federal, de janeiro de 2021 a junho de 2022, o ritmo segue forte: 47 toneladas. Um assalto à vista de todos, principalmente dos satélites e drones que podem registrar a criação dos garimpos em terras indígenas e a movimentação de aviões e barcos com o ouro roubado. Inúmeras denúncias de órgãos como o Inpe não fizeram o governo de Jair Bolsonaro mover um dedo para deter os ladrões do ouro, um grupo que inclui facções do crime organizado, políticos, agentes públicos e grandes fazendeiros, que infestaram o território demarcado dos Yanomamis, em Roraima, com mais de 20 mil garimpeiros.

Só agora essas quadrilhas começam a sentir a força da lei. Desde a sexta-feira, dia 3, o governo iniciou uma investida na região. Grupos armados do Ibama, ao lado da Força de Segurança Nacional, da Funai e da Polícia Federal, começaram a desativar garimpos e destruíram maquinário de extração, barcos, aeronaves e pistas de pouso. Algumas pistas estão sendo inutilizadas pelos próprios garimpeiros em fuga, para impedir que aviões com agentes do governo pousem na região. Pelo menos 70 aeronaves foram confiscadas, entre pequenos aviões e helicópteros, e pelo menos 23 deles foram inutilizados. Nos dois primeiros dias dessa operação de desmonte, foram destruídas muitas escavadeiras e bombas usadas na mineração. O Ibama registra 18 marcas de escavadeiras entre as ações de 2016 até hoje. A cidade de Itaituba, no Pará, ponto de concentração de negócios de ouro, tem várias lojas das marcas internacionais desse tipo de trator, a preços que chegam a R$ 890 mil, com vendas disparadas na ampliação da área de garimpo ilegal. O ex-presidente Jair Bolsonaro chegou a ordenar ao Ibama que as escavadeiras encontradas em garimpos clandestinos não fossem destruídas.

As Forças Armadas estão controlando o tráfego aéreo e a movimentação de embarcações nos rios, e também vão participar da operação em terra. Nas últimas três semanas, seu trabalho foi prioritariamente dedicado ao povo Yanomami, submetido a uma situação de calamidade sanitária, com centenas de mortos nos últimos anos por fome e malária. O secretário de Saúde Indígena do Ministério da Saúde, Ricardo Weibe Tapeba, afirmou que, após o término da retirada dos garimpeiros da reserva, dois hospitais serão montados nas regiões de Surucucu e Auaris, onde se concentra a maioria da população indígena doente.

O garimpo ilegal se espalhou nos últimos quatro anos pela reserva dos Yanomamis, com conivência ou colaboração do governo de Bolsonaro, acusado de promover o genocídio dos indígenas. As evidências da culpa desse quadro degradante são claras em personagens como os ex-ministros Ricardo Salles e Damares Alves, entre outros. Não por acaso, o primeiro grande empresário investigado pela PF em Roraima é Rodrigo Martins de Mello, o Rodrigo Cataratas, que não teve sucesso ao tentar se eleger deputado federal pelo PL, partido de Bolsonaro. Ele é dono de aeronaves apreendidas pela PF.

CAÇADA HUMANA Abaixo, dois momentos de captura de garimpeiros pelas equipes  do Ibama em ação no rio Uraricoera; Ibama põe fogo em embarcação encontrada em garimpo ilegal abandonado

Governo faz investida em garimpos ilegais em terra Yanomami
Bruno Kelly

Governo faz investida em garimpos ilegais em terra Yanomami
Bruno Kelly
Governo faz investida em garimpos ilegais em terra Yanomami
Bruno Kelly

A entrada das forças federais na reserva já teve vários garimpeiros presos, ainda sem números divulgados. Essa ação fez com que muitos iniciassem sua fuga da região. A maioria é de pessoas sem recursos financeiros que tentavam a sorte no garimpo. Eles estão fugindo a pé, em jornadas que podem demorar muitos dias, e são facilmente detidos pelos agentes armados do Ibama. Depois de restringir o espaço aéreo na reserva por uma semana, a Força Aérea Brasileira abriu corredores de voo para os garimpeiros que desejam deixar Roraima. Aeronaves particulares podem seguir por essas rotas, respeitando os 11 km de largura estabelecidos para cada uma. Pilotos estão cobrando R$ 15 mil por passageiro. Muitos donos de garimpos, que também possuem aviões e abriram pistas de pouso dentro e fora do território indígena, retiraram as aeronaves de circulação. Os aviões que estão servindo de táxi aéreo aos garimpeiros são pequenos, alguns com apenas cinco lugares. Assim, mesmo quem está disposto a pagar o preço pedido pela retirada está encontrando dificuldade para deixar a região.

Antes do início do desmonte, foram registradas três mortes de Yanomamis e de um garimpeiro em conflitos na floresta. Com a operação em curso, ainda não há relatos de resistência aos agentes armados do Ibama na ocupação dos garimpos ou na captura das pessoas que fogem a pé. Mas a tensão na reserva cresce, com a perspectiva de confronto pesado entre os agentes do governo e os marginais que ocupam grandes garimpos, alguns deles controlados pela facção criminosa paulistana PCC, que tem alcance nacional. A preocupação se estende até a capital do estado, Boa Vista, porque grande parte da economia local depende dos garimpos ilegais, como a notória Rua do Ouro, que reúne dezenas de lojas que compram o minério extraído ilegalmente em Roraima. A PF trabalha com a hipótese de reação violenta por parte desses integrantes da cadeia do ouro ilegal.Governo faz investida em garimpos ilegais em terra Yanomami

Ouro camuflado

A Rua do Ouro já oferece a chance do primeiro e decisivo passo no processo de lavagem do ouro roubado. Ali os garimpeiros assinam suas declarações de boa-fé, escritas à mão num papel, o que é suficiente para inserir o produto no mercado legalizado. “O ouro continua sendo ilegal”, explica a procuradora da República em Manaus, Ana Carolina Bragança, que nos últimos anos trabalhou em Roraima. “O ouro extraído de terra indígena ou qualquer outra exploração ilegal tem dois caminhos. Ele pode ser levado por aviões direto para Venezuela, Guiana ou Suriname, isso de fato acontece. Não temos dados da porcentagem de ouro que vai por essa rota. Ou ele pode vir para dentro do mercado nacional. Mas ele tem que ser lavado, camuflado como legal. Aí é que entra essa dinâmica de declarar que um ouro vindo de terra protegida foi extraído de uma área em que existe permissão ao garimpo. A lavagem se faz numa mentira na origem da cadeia do ouro, para chegar ao mercado financeiro, às joalherias e à exportação.”

A quantidade de certificados de legalidade emitidos em Boa Vista não é grande. O principal ponto para execução dessa farsa é Itaituba. É ali que se concentra a receptação do ouro vindo de Boa Vista, de Manaus ou diretamente do garimpo. Existem maneiras de constatar a ilegalidade, mas elas são executadas depois de algum tempo, quando o ouro ilegal já está inserido no mercado brasileiro ou foi exportado. Com as notas das operações na mão, o Ministério Público Federal usa imagens de satélite para detectar dois tipos de ilegalidade. Primeiro, a não existência de garimpo no local informado, às vezes coberto totalmente pela floresta. E também é possível analisar se o garimpo indicado na nota fiscal, fotografado em alta definição, tem condições de fornecer a quantia de ouro informada. Essa comparação não impede a saída do ouro ilegal, mas dá sustentação a processos como os que o MPF abriu contra três empresas com licença para comercializar ouro, as Distribuidoras de Títulos e Valores Monetários (DVTMs) FD’Gold, Carol4 e OM. Elas são acusadas de transações com cerca de 4,3 toneladas de ouro ilegal em 2019 e 2020. O MPF pede a suspensão de atividades e o pagamento de R$ 10,6 bilhões. A Comissão de Valores Mobiliários solicitou investigação de cinco DTVMs suspeitas de concentrarem a maior parte da negociação do ouro roubado. São elas as três apontadas pelo MPF e mais Parmetal e Fênix. Todas negam as acusações.

Governo faz investida em garimpos ilegais em terra Yanomami
EM CAMPO A ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, acompanha atendimento a Yanomamis em hospital de campanha (Crédito: Ruy Conde)

Ana Carolina Bragança defende uma certificação de origem mais robusta, com a checagem da área que está sendo informada pelo garimpeiro na primeira venda de sua produção. “A minha percepção é que existe uma cegueira deliberada, uma confiança nessa presunção de boa-fé. Quando se presume a boa-fé do vendedor, o comprador se coloca desobrigado da possibilidade daquele ouro ter origem ilegal. É notório que se lava ouro em Itaituba, todo mundo sabe disso.” Uma providência para agilizar a verificação poderia vir com a adoção de nota fiscal eletrônica desde a primeira venda, o que daria tempo ao MPF agir. Raul Jungmann, presidente do Instituto Brasileiro de Mineração, propõe apertar o cerco na determinação da origem do ouro comercializado. “A nota fiscal eletrônica pode inibir operações irregulares na raiz. É preciso ter controle sobre DTVMs suspeitas de lavar o metal.” O procurador-geral da República, Augusto Aras, disse que a legislação que prevê a presunção da legalidade da origem do ouro baseado numa declaração de boa-fé é um retrocesso e que o governo precisa endurecer a fiscalização.

Levado a São Paulo ou a Belo Horizonte, o ouro vai para refinarias, onde é moldado no formato de barras para exportação. No processo, o ouro de Roraima pode ser misturado a ouro legal do Mato Grosso, Minas Gerais ou outros estados, eliminando de vez a distinção sobre a legalidade do minério fundido em barras.

Para Heleno Torres, professor titular de Direito Econômico, Financeiro e Tributário na USP, as regiões de garimpo ilegal passaram a sofrer uma diminuição severa dos controles, e isso ampliou fortemente a expansão da atividade. “O Brasil tem agora data e hora marcada para dar uma solução urgente ao problema em sua totalidade. Não pode se limitar à proteção dos indígenas.” Sobre a participação do PCC e de outras facções no garimpo, Torres aponta outro vetor de operação. “É preciso entender como o crime organizado está inserido nessa cadeia criminosa. Descobrir se o ouro é todo originário do garimpo ou se estão misturando ouro oriundo de furtos de joias ou outros crimes. Você pode ter uma lavagem de dinheiro do crime dentro desse processo.”

A FORJA DA FARSA Em Boa Vista, o minério ilegal pode ser transformado em joias ou ser negociado na chamada Rua do Ouro

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JOSE LUIS DA CONCEICAO

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CLOVIS MIRANDA

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Andre Penner

Visita ministerial

A ministra dos Povos Indígenas compartilha a necessidade de uma solução definitiva e global para o problema. Sonia Guajajara disse a ISTOÉ que “é urgente uma ação concreta para acabar com esse tipo de prática e devolver a dignidade das pessoas, bem como a proteção dos rios e florestas, pelo bem da humanidade”. Ela passou boa parte da semana no território Yanomami. “Acompanho de perto o rastro da destruição que a exploração mineral provoca no meio ambiente e na vida das pessoas. Trata-se de uma cadeia infinita de responsáveis, a qual envolve desde garimpeiros, que estão no local, a pessoas que se envolvem em outros serviços, inclusive comércio exterior.”

Segundo um especialista em monitorar a atividade criminosa ouvido por ISTOÉ, as quadrilhas devem ser “punidas” em 2022 pelo próprio mercado, com um faturamento menor. Ao contrário da alta desenfreada do preço do metal em 2021, com recordes históricos, o ano passado viu cair o preço do ouro nas negociações mundiais. E os garimpeiros no Brasil ainda tiveram de enfrentar uma grande alta no preço do diesel. Alguns garimpos grandes chegam a gastar R$ 150 mil por mês em diesel, que põe em ação o maquinário pesado na extração.Governo faz investida em garimpos ilegais em terra Yanomami

* Colaboraram Dyepeson Martins, Denise Mirás, Ana Mosquera e Carlos Eduardo Fraga, estagiário sob supervisão de Thales de Menezes