Illya, de 11 anos, sobreviveu ao terror das bombas em Mariupol e foi sequestrado por soldados russos. Seu testemunho contribuiu para o mandado de prisão contra Vladimir Putin.Illya conta que certa noite ele e sua mãe saíram do porão. Queriam pedir água e um pouco de comida a uma vizinha. Quase tudo ao redor já estava em ruínas e, em todas as direções, ouviam-se tiros. "Não conseguimos chegar até a vizinha", diz o menino. "Um foguete atingiu a vizinhança. Mamãe caiu com a testa no chão. Ela morreu no dia seguinte."

O garoto de apenas 11 anos conta a história mecanicamente. Como se a tivesse memorizado. E não como se fosse sua própria história.

O ucraniano Illya vem de Mariupol, a grande cidade no extremo sudeste da Ucrânia que se tornou um símbolo mundial do terror russo depois do início da guerra, em 24 de fevereiro de 2022, quando Moscou invadiu o país vizinho. Durante o cerco de três meses a Mariupol, o Exército russo destruiu quase completamente a cidade e matou dezenas de milhares de civis. Um deles foi a mãe de Illya, Nataliia Matviienko.

Ela morreu em 21 de março de 2022, algumas semanas antes de Illya completar nove anos. O próprio Illya foi gravemente ferido pela queda do foguete em sua perna direita. Soldados russos o descobriram logo após o ataque e o levaram embora; ele foi hospitalizado na cidade ucraniana de Donetsk, que está sob ocupação russa desde 2014. Ele deveria ser entregue a uma família russa, mas sua avó, que vive em Ujhorod, a cidade mais ocidental da Ucrânia, o tirou de Donetsk e o levou para a casa dela.

Logo depois, Illya testemunhou perante o Tribunal Penal Internacional (TPI) em Haia. Seu testemunho contribuiu para o mandado de prisão contra o presidente russo, Vladimir Putin, e sua representante dos direitos das crianças, Maria Lvova-Belova.

Illya é uma das dezenas de milhares de crianças ucranianas que foram sequestradas por soldados ou funcionários russos nos territórios ucranianos ocupados desde fevereiro de 2022. Uma estimativa oficial ucraniana coloca o número de menores deportados em cerca de 19 mil. A representante de Putin, Lvova-Belova, se gabou no verão de 2023 de que as autoridades russas já haviam "resgatado" da Ucrânia 700 mil crianças. Até o momento, a Ucrânia só conseguiu trazer de volta cerca de 400 crianças sequestradas.

Crime de guerra

Independentemente de tais números, esse é um dos piores crimes de guerra na Europa desde a Segunda Guerra Mundial. A advogada ucraniana, ativista de direitos humanos e ganhadora do Prêmio Nobel, Oleksandra Matviichuk, fala de um genocídio que está sendo cometido pela Rússia na Ucrânia.

"Esses crimes de guerra não são coincidência nem acidente, são um método da Rússia e uma tática de guerra russa contra a Ucrânia", disse Matviichuk à DW. "As crianças são enviadas para campos de reeducação, primeiro lhes é dito que são russas e que a Rússia é sua terra natal. Mais tarde, são enviadas a famílias russas. É uma política de eliminação da identidade ucraniana e uma política genocida."

Illya quase teve esse destino também. Até fevereiro de 2022, ele tinha uma infância normal em Mariupol. Morava com sua mãe solteira em uma casa na periferia leste de cidade e cursava a terceira série. Ele diz que em seu tempo livre gostava de ir ao cinema e brincar no parque com um tio.

No dia seguinte ao ataque russo a Mariupol, ele fugiu com a mãe para o centro da cidade. Eles moraram em um hotel por alguns dias e, mais tarde, em um abrigo antiaéreo. Em algum momento, a sua mãe decidiu voltar para a casa na periferia da cidade em busca de comida. Quase tudo lá havia sido destruído, mas eles encontraram outra casa com um porão intacto e alguns alimentos, onde se esconderam por alguns dias – até aquela noite fatídica, quando tentaram ir à casa de um vizinho.

Illya conta que, após a queda do foguete, a vizinha veio e levou sua mãe gravemente ferida e ele para o apartamento dela. Ele diz que não se lembra exatamente como foi quando sua mãe morreu. No dia seguinte, os soldados russos chegaram. Eles simplesmente disseram: "Retirada!" E o levaram com eles. "A viagem até o hospital em Donetsk foi terrível", conta. "Minha perna machucada doía tanto que não consigo nem descrever."

A perna de Illya foi operada no hospital. Ele disse aos funcionários do local que tinha uma avó e que ela poderia ir buscá-lo. Mas depois de alguns dias, disseram a ele que poderiam levá-lo a Moscou, para uma nova família. "Eu não respondi nada", recorda. "Porque não sabia se eles iam me fazer alguma coisa se eu contrariasse."

A odisseia da avó

Illya conta que havia muitas crianças ucranianas no hospital e que jornalistas também foram até lá e filmaram o lugar. Por acaso, a avó de Illya, Olena Matviienko, viu um vídeo nas redes sociais em que seu neto aparecia. Ela ligou imediatamente para o hospital e disse que iria buscá-lo. Pouco tempo depois, ela partiu para a Donetsk ocupada – de Ujhorod, no oeste da Ucrânia, passando pela Polônia, Lituânia, Belarus e Rússia.

Foi uma odisseia sobre a qual Matviienko só pode contar alguns detalhes – na época, o retorno de Illya e de outra menina foi organizado com a ajuda do governo ucraniano e de um empresário russo.

Para não colocar em risco possíveis resgates futuros, apenas isso pode ser revelado: Illya e sua avó conseguiram voltar à Ucrânia através da Turquia no final de abril de 2022. "Chorei quando cruzei a fronteira da Ucrânia com meu neto", conta Matviienko.

Na Ucrânia, Illya foi inicialmente internado em um hospital em Kiev para reabilitação. Lá, um assessor do presidente ucraniano, Volodimir Zelenski, perguntou se ele estaria preparado para contar sua história aos investigadores do Tribunal Penal Internacional. O menino concordou.

Desde então, ele não apenas testemunhou na corte em Haia, mas também perante representantes da ONU. E falou com vários políticos ocidentais, inclusive dos EUA e da Alemanha. "Entendi que tenho que fazer isso", afirma. "Para que não haja indiferença, para que saibam que não se trata de um conto de fadas, mas para que saibam o que realmente aconteceu."

Mas não dói demais ter que recontar a história várias vezes? "Não", responde Illya. "Eu entendo que esse é meu destino e é por isso que não choro. Nunca chorei quando contei a história". Ele diz isso como um adulto e como se estivesse longe. E acrescenta que sua avó sempre chora quando ele relata a situação que enfrentou.

"Talvez eu morra. Afinal, estamos em guerra"

A senhora, de 65 anos, é uma mulher amável. Passou a vida trabalhando em Mariupol, inclusive na siderúrgica Azovstal, que se tornou um símbolo de resistência contra os ocupantes russos em 2022. Ela teve quatro filhos. Um deles morreu em 2014 lutando contra os ocupantes russos no leste da Ucrânia. Depois que sua única filha morreu, em 2022, lhe restaram dois filhos. E seu neto, Illya. Ela se mudou de Mariupol para o outro extremo da Ucrânia, para Ujhorod, em 2017, porque na época queria ficar o mais longe possível da guerra nas chamadas Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk.

Matviienko recebe uma aposentadoria equivalente a 67 euros (R$ 368) por mês. Parte desse valor ela doa para as Forças Armadas ucranianas todos os meses. "Eu não trocaria a Ucrânia por nada no mundo, mas seria bom se pudéssemos receber um pouco mais de aposentadoria", diz ela.

Illya e sua avó moram em uma espécie de apartamento compartilhado em Ujhorod, onde não há um banheiro próprio. Eles gostariam de ter um banheiro com chuveiro e prefeririam morar em uma casa só para eles. "Tenho saudades do mar, da cidade e da pizza que eu costumava comprar todos os dias no caminho para a escola. E, é claro, da minha mãe. Que Deus lhe dê paz", afirma o menino.

O garoto afirma não acreditar que o mandado de prisão contra Putin vá dar em alguma coisa. "Ele é um idiota, mas pelo menos ele sabe que não pode mais viajarpara qualquer lugar." O próprio Illya quer ser médico quando crescer. "Não sei se conseguirei, porque tenho a síndrome da desesperança. Mas seria meu sonho. Mas talvez eu morra amanhã. Afinal, estamos em guerra."