Passei o fim de semana me achando um trouxa por não ter percebido a tempo a tramóia do Congresso e de Jair Bolsonaro na votação do orçamento de 2021.

O assunto foi levado aos plenários da Câmara e do Senado na última quinta-feira. Enquanto isso, eu ainda ruminava as palavras duras do deputado Arthur Lira, que um dia antes havia ameaçado Bolsonaro com a utilização de “remédios políticos amargos”, caso não houvesse mudança no trato da pandemia pelo governo.

Só depois fui me dar conta que, enquanto eu olhava para o outro lado, uma peça orçamentária escandalosa era aprovada. Ela tirou dinheiro de despesas obrigatórias para inflar o valor das emendas parlamentares – aquela grana que deputados e senadores destinam aos seus redutos eleitorais.

Despesas obrigatórias, como o nome diz, não podem ser contornadas. São, por exemplo, aposentadorias, pensões e seguro desemprego. De algum jeito, têm de ser pagas. Como? Ou com um cortes brutal de  gastos públicos, quando a margem para cortar já é pequena, ou com a abertura de créditos extraordinários. A primeira alternativa põe em risco até mesmo o funcionamento cotidiano da máquina pública. A segunda significa emissão de mais dívida pelo governo – o que deve ter como consequência aumento nos juros e no câmbio, e redução das perspectivas de crescimento da economia.

Mas não é só isso! Para fazer de conta que o obrigatório não é obrigatório, o Congresso lançou mão de pedaladas e maquiagens. Se o orçamento for executado do jeito que está, não vai romper o teto de gastos no papel, mas vai estraçalhá-lo na realidade. Bolsonaro precisa vetar trechos inteiros desse atravanco para não cometer crime de responsabilidade exatamente como fez Dilma Rousseff.

Como é que Paulo Guedes, aquele gênio, deixou passar um orçamento como esse? Sua declaração mais dura até agora foi a de que o orçamento é “inexequível” – trata-se daquela ideia de que não sobrará dinheiro nem para pagar a conta de luz do governo. Inexequível? O bicho é muito mais que isso. Cadê aquele Paulo Guedes que ficava afogueado só de ouvir falar em irresponsabilidade fiscal? Até agora não deu um pio. E nunca houve irresponsabilidade mais irresponsável do que essa, desde que ele chegou a Brasília.

Circula a história de que os técnicos do Ministério da Economia estão perturbadíssimos e muitos deles até ameaçam pedir demissão. A versão do deputado Márcio Bittar (MDB-AC), relator do orçamento, é diferente: a equipe econômica sabia de tudo que estava sendo feito, e deixou passar. As duas versões, na verdade, não são incompatíveis. Pode haver técnicos incomodados, ao lado de um chefe que deixou passar.

Também foi no mínimo curioso o comportamento de Jair Bolsonaro no meio dessa história toda. O presidente costuma zurrar alto cada vez que é afrontada por declarações como as do “remédio amargo” de Arthur Lira. Dessa vez, ficou dócil. Disse que estava tudo ótimo entre ele e o presidente da Câmara. Das duas, uma: ou a pressão do Congresso não parou na demissão de Pazuello, na criação de um Comitê da Pandemia e na execração pública de Ernesto Araújo, passando também pela aceitação de um orçamento mentiroso; ou Bolsonaro acha que o Congresso fez a coisa certa. Seja qual for a opção correta, Bolsonaro não é inocente.

O que vem pela frente? Se Bolsonaro não vetar o orçamento, cometerá crime de responsabilidade. Isso é ponto pacífico. Será que recebeu promessas de que não sofrerá impeachment por razões fiscais, como aconteceu com Dilma? Seria uma promessa difícil de ser cumprida – justamente porque já houve uma Dilma Rousseff.

Se ele vetar o orçamento, vai deixar os parlamentares irritados. Ninguém sabe quais seria as consequências.

Duas coisas são certas. Primeiro, em meio à pandemia e à crise econômica, deputados e senadores se preocuparam em garantir dinheiro para obras que ficam no seu Estado, no seu município. Alguém dirá que esse dinheiro das emendas ajuda a movimentar a economia. É verdade, mas só até certo ponto. Essa política paroquial, para não dizer mesquinha, não vai tirar o calhambeque Brasil do atoleiro. Diz mais respeito às eleições de 2022 do que àquilo de que o país precisa.

Em segundo lugar, e mais importante, eu posso ter sido enganado, mas quem interessa não foi e não será. Investidores estrangeiros e brasileiros sabem que o orçamento joga a responsabilidade fiscal às hienas. Pela enésima vez, tiveram a prova de que a malandragem é o modus operandi natural do Brasil. Mesmo que se desfaça a falcatrua lá na frente, um gosto ruim já ficou na boca.

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PS1: O antichanceler Ernesto Araújo caiu. Num governo tomado de alto a baixo por personagens nefastos, ele ainda conseguiu se destacar. Será lembrado para sempre como o homem que sonhou em transformar o Brasil em um pária internacional – e conseguiu. Seus meses à frente do Itamaraty não trouxeram apenas prejuízos de imagem ao país, dificultaram também a obtenção de recursos para o combate à pandemia.  Aguardemos agora o nome do substituto. Seria difícil piorar, mas com Jair Bolsonaro nunca se sabe.

PS2: O Ministro da Defesa Fernando Azevedo e Silva deixou o governo. Não era o pior dos generais cavilosos e de espinha curvada que cortejam o capitão-presidente, mas ele exagera ao dizer que “preservou as Forças Armadas como instituições de Estado”, em sua nota de despedida. Se Azevedo se refere ao fato de não ter embarcado em um golpe, como gostaria Bolsonaro, não fez mais do que a obrigação. O capitão-presidente diz que o Exército é “seu”, mas não é. Simples assim. Azevedo teria feito algo realmente digno de admiração se tivesse impedido a soldadesca de infestar a administração pública com fome de sindicalista, e se não tivesse comandado a invasão do orçamento pela Defesa. O Brasil não tem guerras em andamento, a não ser as da saúde e do desemprego. Mas foram as Forças Armadas as únicas que não viram sua verba diminuir nos últimos anos, pelo contrário. Com um presidente militar no Planalto, os militares aproveitaram para tiraram a barriga da miséria. A palavra que descreve isso não está inscrita em nenhum hino ou bandeira: é oportunismo.