ANOMIA Bolsonaro em sua clássica pose e Witzel ao comemerar a morte de um sequestrador enfermo mental: cultura belicista

Quando a cidade maravilhosa não se tornara ainda uma carnificina e Chico Buarque não era Chico Buarque, ele fez uma composição no auge da juventude a qual, infelizmente, nunca gravou – e a pena de não tê-la gravado é porque, nela, já se antecipava o gênio. Parte da letra diz:

“Criança quando morre vira anjo, mulher vira uma flor no céu” Á Ágatha Vitória Sales Félix, oito anos de idade, morta no Rio de Janeiro com uma bala de fuzil nas costas, era criança e era menina – virou, portanto, anja e flor ao mesmo tempo. Ágatha foi assassinada em mais um episódio envolvendo a Polícia Militar, e tudo leva a crer, até pela pressa das autoridades em dizer que o inquérito provavelmente será inconclusivo devido à dificuldade de perícia, que a arma foi disparada, como afirmaram testemunhas, por uma policial. Claro que ela não tinha Ágatha como alvo, mas isso não atenua em nada as responsabilidades. Ao contrário: expõe o tanto que o governador Wilson Witzel incita o ódio e anima dedos fardados a apertar gatilhos como quem traz nas palmas das mãos somente a linha da morte. Ele age dessa forma porque a inspiração para a violência, enquanto método de solução de mazelas sociais, lhe vem de cima, vem de Brasília, mais especificamente vem do presidente Jair Bolsonaro.

Witzel já vibrou com mortes, já pegou em fuzis. tal qual Bolsonaro que criou o seu próprio QG para incitar o ódio

Mauro PIMENTEL / AFP

O mais alto mandatário do País foi o primeiro a caminhar na direção dos ventos que espalham sementes e, muitas vezes, os frutos maduros do ódio. Ele efetivamente montou no interior do próprio Palácio do Planalto, a trezentos metros de sua mesa de trabalho, o chamado “gabinete da raiva” comandado pelo filho vereador (em licença) Carlos. Trata-se, digamos assim, de um bunker ideológico que funciona no terceiro andar e emprega três pessoas: Tércio Arnaud Tomaz (montou site e ajudou na campanha eleitoral), José Matheus Gomes (trabalhou no gabinete de Carlos) e Mateus Matos Diniz (ex-aluno de Olavo de Carvalho). Os seus salários oscilam entre R$ 10 mil e R$ 13,6 mil, e são eles que em diversos momentos importantes se transformam em conselheiros da corte, dizendo aquilo que o rei deve dizer e fazer publicamente, sempre tendo como base, não resta dúvida, o radicalismo. A esse grupo deve-se a gasolina que alimentou o fogo que fritou os ex-ministros Gustavo Bebianno e Carlos Alberto dos Santos Cruz, até serem defenestrados. Fontes palacianas afirmam que muita gente trabalha constrangida e sob absurdas e extorsionárias ameaças desse gabinete, do qual saem recados do tipo: “o Carlos não vai gostar de saber disso” ou “você lembra o que aconteceu com o Bebianno?”. Sem dúvida, um horror! Um atentado à República brasileira

VOZ DAS RUAS Protesto contra o governador e a polícia: em nome de todas as crianças mortas (Crédito:Carl DE SOUZA / AFP)

O nome desse núcleo palaciano é até brando diante de sua atuação – mais correto seria chamá-lo de “gabinete da guerra”, até porque é a forma de política por ele praticada que, verticalmente, desce até Wilson Witzel. Em plena campanha, Jair Bolsonaro declarou coisas do seguinte gênero: “se vocês querem saber se a polícia terá minha autorização para matar, eu afirmo que terá”. Há quem diga que aí já era o futuro “gabinete da raiva” montando frases ao candidato – frases, aliás, que ele ama, porque traduzem o seu pensamento. Se enfocarmos, agora, o governador, veremos que ele é claro xérox do presidente. Basta lembrarmos que Witzel já andou de helicóptero, fardado feito um sniper, exibindo metralhadora e colocando comunidades sob a sua mira. E também é cópia em declarações. Em campanha, ele prometeu que, se eleito, em sua gestão a polícia iria “mirar a cabecinha e, ó”. Outra lembrança? Quem não se recorda da cena que envergonhou o Brasil perante o mundo, mostrando Witzel dando socos no ar para comemorar o extermínio de um enfermo mental que sequestrara um ônibus? Nada mais em relação a ele e a Bolsonaro nos surpreenderá. Indignar sim, surpreender não.

“Não houve tiroteio, não houve tiroteio com a PM. O que aconteceu foi assim: pá, pá” Motorista da Kombi (nome preservado) em que estava Ágatha (Crédito:Reginaldo Pimenta/Agência O Dia)

De tudo isso, Ágatha, a garotinha bailarina assassinada, é uma grande vítima. Ela virou anja e virou flor, e virou comoção e homenagens póstumas em todo o mundo – jamais terá o seu nome esquecido. Aqueles que se alimentam do ódio e se hidratam com a raiva, todos esses, quando esfarelarem, se tornarão absolutamente nada – quer morram de “ave bala”, como ocorreu com ela, quer morram de “morte morrida”, em uma das melhores e mais bem trabalhadas definições dadas pelo poeta João Cabral de Melo Neto. Assim como nenhuma criança de oito anos tem condições cognitivas de saber sobre toda a maldade que a cerca, Ágatha também não sabia que, no chão que ela morava, a política do governador é a de mandar e endossar que a polícia atire, atire, atire, atire – mesmo que dispare a esmo. Ágatha soube, isso sim, da dor de uma bala de fuzil na carne, quando na noite da sexta-feira 20 voltava de Kombi para casa, acompanhada pela mãe, Vanessa, no Complexo do Alemão. Oito policiais militares desconfiaram de um motoqueiro que não obedeceu a ordem de parar… ah, mano, não obedeceu é tiro certo, o que não significa tiro certeiro.

Diga-se logo, em relação ao motoqueiro, que ele não atirou em direção aos policiais. Diga-se logo que não se sabe se ele é ou não um transgressor. Diga-se logo que o “cara da moto” pode ser, por exemplo, um trabalhador tipo gato já escaldado de ser parado pela polícia e “levar esculacho” – pobre e preto, no País, tristemente tornam-se bem cedo calejados nisso. E, finalmente, diga-se logo: ainda que tal motoqueiro seja o mais perigoso delinquente do Brasil, cabe à polícia o dever de ofício de atirar somente para reagir e, bem importante, precisa avaliar com rapidez se pode atirar no local do evento sem colocar em periclitação a vida de outra pessoa. Claro que os policiais e a escala hierárquica que leva a Witzel falaram, imediatamente, que houve tiroteio. Mas o motorista da Kombi é categórico: “não houve tiroteio algum e a rua estava bastante movimentada. Foi assim: pá, pá”. Gravemente ferida, Ágatha foi transportada por esse mesmo motorista para uma Unidade de Pronto Atendimento, e daí acabou transferida ao hospital Getúlio Vargas. Passou por cirurgia, não resistiu… a garotinha, que no boletim escolar tinha raras notas inferiores a dez, morreu. “A vida que poderia ter sido”, com a licença de Manuel Bandeira, “não foi”. O que se tem é uma vítima a mais no rol de dezessete crianças que no Rio de Janeiro sofreram violência esse ano – cinco delas, incluindo-se Ágatha, morreram em decorrência de tiros saídos de armas da Polícia Militar.

No Brasil a repercussão foi imediata com entidades denunciando a macabra metodologia de Witzel e encaminhando uma carta de protesto à ONU, onde a Alta Comissária de Direitos Humanos, Michelle Bachelet, criticou o governador e a polícia. Outros governadores condenaram o colega. Manifestações de ruas explodiram. Missa foi celebrada na Penha pelo cardeal arcebispo Orani Tempesta. Providencialmente, o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, avesso à política do ódio e da raiva, lembrou que na Casa, aguardando votação, havia um ponto nevrálgico no pacote anticrime do ministro da Justiça, Sergio Moro. Diante do silêncio de Witzel que teve a frieza de postar um alegre passeio com a sua filha enquanto Ágatha era sepultada, diante do silêncio de Moro que depois de horas manifestou-se protocolarmente, surgiu uma mensagem emocionada e sensata de Maia: “expresso minha solidariedade aos familiares sabendo que não há palavras que diminuam tamanho sofrimento. É por isso que defendo uma avaliação muito criteriosa e cuidadosa sobre o ‘excludente de ilicitude’ que está em discussão no Parlamento”. Assim, a morte da menina, por intermédio de Maia, legou para o bem do Brasil a chance de desmonte de uma legislação de exceção: o “excludente de ilicitude”. Ficou claro que a comissão especial da Câmara, agora, não o engoliria. Em palavras a todos compreensíveis, essa figura jurídica, da forma como Moro a moldou (modificando o seu texto já constante no Código Penal), propunha livrar de punição policiais que matassem, desde que eles alegassem que o fizeram por “escusável medo, surpresa ou forte emoção”. Na semana passada, a comissão especial dos deputados acabou com a festa da impunidade. Moro introduzira isso em seu pacote porque o chefe Bolsonaro pediu, o que obviamente não cai bem em um ex-magistrado. Com tal “excludente de ilicitude”, é bastante fácil adivinhar o que os policiais militares passariam a utilizar, feito linha de montagem, em suas defesas.

O rancor que Bolsonaro e Witzel carregam na alma está levando o Brasil a um estágio de anomia delinquencial por parte daqueles que deveriam proteger a vida humana, em vez de aniquilá-la. É loucura! Ainda com o caso de Ágatha pairando sobre nós, na semana passada Witzel retirou o bônus que era dado a policiais que não matavam – ou seja, ele dobrou a sua aposta na barbárie. Sente-se respaldado, e esse é o perigo maior. No clássico filme “Casablanca”, o chefe de polícia diz: “prendam os suspeitos de sempre”. Em uma analogia, no Brasil ocorre não apenas as prisões dos “suspeitos de sempre”, mas, também, as desculpas e as incriminações eternas. O vice-presidente da República, general Hamilton Mourão, culpou “o narcotráfico”. É óbvio que o Estado tem de combater o tráfico de drogas, porém isso não quer dizer que precisemos assistir à morte de crianças. Já Witzel empurrou a culpa em quem “fuma maconha” – é o mesmo que dizer que ele é culpado quando o Corinthians, time para o qual torce, perde um jogo.

O capitão da reserva e seu lugar-tenente democraticamente às urnas e viram-se investidos de mandatos. Tal fato guarda, então, o significado de que a maioria do povo brasileiro dá o seu apoio a atos repressivos como o que matou Ágatha? Cruamente falando, a resposta é sim. Recente pesquisa de um jornal do Rio de Janeiro apontou que 70% da população gosta da maneira que Witzel comanda a polícia – claro que isso está errado, o Estado de Direito ordena que a polícia deixe mil bandidos escaparem se, para prendê-los, for necessário matar um inocente. Conclui-se, a partir de tal consulta popular, que o brasileiro é ruim? Não, não mesmo! Essas mesmas pessoas que endossam métodos draconianos comovem-se com a morte de Ágatha. Esse é sociologicamente o Brasil passional descrito pelo historiador Sérgio Buarque de Holanda. Deixando as teorias nas estantes, esse é o Brasil que anda literalmente com o saco cheio da crise econômica, do desemprego, da iniquidade, da violência, da inoperância e da corrupção. Vê-se, na pesquisa, a porção do País que está completamente obnubilada, zonza e confusa. Mais cedo ou mais tarde, no entanto, inevitavelmente ela descobrirá que a confusão e a zonzeira são causadas pelo ódio; e que o ódio é dolosamente destilado por alguns governantes.

Aos oito anos, Ágatha não poderia saber da política de Witzel que manda a polícia atirar, atirar, atirar, atirar. Ela soube, isso sim, da dor de uma bala de fuzil nas costas

“A vida que poderia ter sido, e não foi”

ÁGATHA Alegria, sonhos e medo de estampido de tiro: a delicadeza versus um Estado delinquente (Crédito:Divulgação)

A pequena Ágatha, de oito anos, era o futuro. Mas era também o presente que cruzou o caminho de um escuro cano de fuzil. Obediente ao ponto de despertar a admiração em quem estava ao seu lado e autodisciplinada, Ágatha poderia vir a ser uma grande artista brasileira: adorava desenhar e pintar, a começar pelo desenho que fez de sua própria casa, intitulado “Agatha’s House”.

Ágatha poderia, também, brilhar como grande escritora brasileira: tinha livros e gibis, que lia com frequência sentada em sua cama. Se parava de ler, aí desenhava realidades paralelas e futuros possíveis.

Ágatha poderia ser, igualmente, uma excelente fotógrafa brasileira: adorava tirar fotos e posar para câmeras, como aparece quando fantasiada de Mulher-Maravilha.

Ágatha poderia ser, ainda, uma exímia enxadrista: quando não podia ir às aulas de xadrez, devido aos tiroteios, sentia-se muito frustrada e triste.

Ágatha poderia ser, finalmente, uma ótima bailarinha – aliás, esse era o seu maior sonho.

Já o seu maior medo se traduzia no estampido de tiros: encondia-se no banheiro, com os pais, para tentar não ouvir o zumbido das balas.