14/10/2022 - 9:30
Desqualificar e ofender, preconceituosamente, os nordestinos é um dos passatempos prediletos do arremedo de presidente que é Jair Bolsonaro – ele tem o prazer e o cacoete de desprezar a população da região Nordeste, historicamente uma das mais engajadas na política nacional e dona do dom de irradiar sabedoria e cultura para todo o País.
Essa é a tradição nordestina que atravessa séculos. Já a de Bolsonaro é bem mais curta, vem dos tempos em que era deputado do baixo clero da Câmara, onde ficou por vinte e oito anos até chegar à Presidência da República. É aquela coisa mais do que sabida: o sujeito sobe na vida, mas não aprende absolutamente nada, segue tosco.
De forma dolosamente ofensiva, Bolsonaro utiliza os termos “pau-de-arara”, “cabeçudo” e “paraíba” para se referir aos indivíduos dessa região. Agora, após o primeiro turno das eleições, ele achou por bem inovar e chamou os nordestinos de analfabetos para se vingar do fato de eles terem votado massivamente no candidato e ex-presidente Lula, e não nele. Ao dizer que foram os analfabetos do Nordeste que botaram fé no pernambucano de Garanhuns Luiz Inácio Lula da Silva, o capitão inquilino do Palácio do Planalto quis também ofender o seu próprio oponente. Que estultice. Que índole ditatorial. Que insciência…
O Nordeste tem cerca de 53 milhões de habitantes, equivalendo a 31% da população brasileira. Ao palpitar do jeito que palpitou, Bolsonaro demonstrou total desconhecimento de indicadores do próprio governo federal na verificação da qualidade do ensino nas instituições públicas brasileiras: dos vinte e dois estudantes que tiraram nota máxima na prova de redação no último Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), dez são nordestinos.
Pernambuco tem o terceiro maior Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) para o ensino médio público do País. Mais: desde 2009 o programa de Educação Integral pernambucano é política de estado e 75% dos alunos do ensino médio estão em escolas de tempo integral – não há nada que equivalha a esse índice em nenhum outro estado brasileiro.
Já o Ceará é referência internacional na alfabetização (viu, Bolsonaro) e no ensino fundamental. O estado tem oitenta e sete escolas públicas entre as cem melhores do Brasil, do primeiro ao quinto ano, segundo apuração do Ideb no ano passado. No Piauí, a capital, Teresina (carinhosamente enaltecida pelo nordestino Caetano Veloso em música em homenagem ao poeta igualmente nordestino Torquato Neto), possui a rede pública de ensino com o melhor desempenho do País em matemática e português (viu, Bolsonaro), no quinto e nono ano do ensino fundamental. Também é dos piauienses de Teresina a unidade educacional com o melhor Ideb do País: a Escola Municipal Professor José Gomes Campos.
Os excelentes indicadores do Nordeste na Educação não são fruto de uma política nacional de ensino, mas, isso sim, do trabalho e do esforço dos próprios entes dessa parte territorial brasileira. E, nesse ponto, é obrigatório citar o consciente e altíssimo grau de engajamento político dos nordestinos.
Para ficarmos nessa região, lembremos do pernambucano Paulo Freire (Bolsonaro tem calafrios de ódio quando ouve esse nome), Patrono da Educação no Brasil e eternamente reconhecido como um dos principais pensadores mundiais da pedagogia. Costumava ele falar de outro tipo de analfabetismo, que bem definia como “analfabetismo político”.
Trata-se de uma “concepção de realidade mecanicista e fatalista da qual os indivíduos não participam de forma ativa”. Pois bem, os nordestinos, ao contrário, têm plena consciência de seu papel político na construção da história. De forma coerente, não se omitiram nas eleições. Dentre os dez estados com menor taxa de abstenção, cinco estão no Nordeste: Ceará, Piauí, Rio Grande do Norte, Pernambuco e Sergipe.
O protagonismo político do Nordeste vem de distante no tempo, e foi sobejamente lembrado esse ano no qual se comemora o bicentenário da Proclamação da Independência. “Não é possível estudar a Independência do Brasil sem estudar o Nordeste, que teve um papel determinante nesse processo”, destaca Marco Antonio Villa, um dos mais conceituados historiadores do País. “No decorrer do século XIX o Nordeste sempre esteve na liderança das principais questões democráticas, como a Confederação do Equador, em 1824, e a Revolução Praieira, entre 1848 e 1849”.
Feita a Independência, vale salientar que também em outra Proclamação, a da República, foi um nordestino que tomou à frente: o alagoano Marechal Deodoro da Fonseca, que se tornou, em natural decorrência, o primeiro presidente do Brasil. E o seu vice também trazia as Alagoas como estado natal. No em torno ou mesmo núcleo dessas movimentações do passado e nas movimentações do presente circularam e circulam diversos intelectuais. Engajamento político e irradiação intelectual se imbricam e se justapõem. Vejam só: dedicados ao alagoano Floriano o maranhense dramaturgo Artur Azevedo fez versos que se espalharam no início do século XX em todo o Brasil:
Vai-se o marechal ingente
vai-se o grande alagoano
e eu, leitor, digo somente:
Floriano foi um prudente
seja o Prudente um Floriano
Que desmedido analfabetismo, não é Bolsonaro? Fala nada não, capitão, fecha a boca. Retomemos, nós, os círculos intelectuais e os engajamentos sociais para fazer emergir o nome de um dos principais pensadores nordestinos: Joaquim Nabuco, figura essencial na arquitetura de uma verdadeira democracia.
No campo da sociologia, fiquemos com o pernambucano Gilberto Freyre e o seu clássico livro Casa Grande & Senzala, que abre o ciclo de busca e explicação de uma identidade nacional. Mais uma vez o Nordeste sai de seu contorno regional e toma conta do Brasil, e tal busca de identidade repercute em São Paulo com Sergio Buarque de Holanda, Antonio Candido e Carlos Guilherme Mota (não nordestinos), repercute no Rio de Janeiro com Raymundo Faoro (não nordestino), e contamina com a mesma força intelectual o paraibano Celso Furtado (não se seguiu no texto o ordenamento cronológico das produções intelectuais). “O Nordeste, como cenário cultural, está presente no Cinema Novo brasileiro; na pintura, com Os Retirantes, de Candido Portinari; na literatura, com talvez o grande romance do Século XX brasileiro, Vidas Secas, do alagoano Graciliano Ramos”, enumera o professor. Ou seja: o Nordeste sempre esteve presente na história do Brasil e desqualificá-lo é puro preconceito. “É uma discriminação que tem de ser repudiada”.
Ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal e ex-presidente da Corte, o sergipano Carlos Ayres Britto, cultura ímpar a ponto de já ter tecido sentenças judiciais em versos rimados, igualmente condena o comportamento discriminatório do presidente: “Além de demonstrar desconhecimento, a sua declaração foi ofensiva e estapafúrdia. Associar o analfabetismo a essa região do País é um ultraje à dignidade dos nordestinos”.
Ayres Britto lembra que a região foi o nascedouro de importantes artistas, cientistas e pensadores de vanguarda nos mais diversos campos, como a sociologia e o direito, entre tantos outros. “Não há por que desunir assim o País. Nos termos da Constituição, o Brasil é um só, há um só povo brasileiro. As regiões são múltiplas, mas na perspectiva de uma unidade nacional”.