Há anos o Brasil caiu em uma polarização tóxica. Enquanto a sociedade enfrenta a ressaca da pandemia, com os altíssimos preços nas prateleiras e a busca por empregos que sumiram, o debate sobre a retomada econômica está viciado pela disputa dos extremos representados por Lula e Jair Bolsonaro. Com receitas populistas, os dois se beneficiam da divisão da sociedade e, não à toa, investem no voto útil, instigando no eleitor o sentimento de que o apoio nas urnas deve ser dado não ao candidato de sua preferência, mas àquele que possa evitar a vitória do antagonista. O operário e o capitão apresentam o primeiro turno da próxima eleição como uma final de Copa do Mundo. Mas há outros times que podem entrar em campo.

A senadora é a única candidata a se comprometer abertamente com o teto de gastos e as reformas administrativa e tributária

Depois de tropeçar em brigas internas, o centro democrático colocou-se de pé lançando a senadora sul-mato-grossense Simone Tebet ao Planalto, com a paulistana Mara Gabrilli como vice. A chapa é a única formada por duas mulheres a pontuar nas pesquisas. A formação, para membros da campanha, é estratégica pela representatividade do eleitorado feminino e por elevar a discussão sobre a inclusão por meio da figura de Mara, que ficou tetraplégica após um acidente automobilístico em 1994. “Estamos trazendo, pela primeira vez, para o primeiro patamar da República, o debate sobre os direitos das pessoas com deficiência. Estamos falando de uma população que pode chegar na casa dos 20% do Brasil, porque, além dos cidadãos com deficiência permanente, há aqueles com redução de mobilidade temporária”, defende um estrategista da coligação.

INÍCIO Bruno Araújo, João Doria, Simone Tebet e Baleia Rossi lançam a terceira via (Crédito:Divulgação)

Simone e Mara terão menos de dois meses para convencer a população de que encarnam o caminho alternativo à polarização que enfraquece a democracia. Herdeira do programa “Uma Ponte para o Futuro”, que balizou a gestão Michel Temer, a presidenciável pretende seguir os passos do ex-mandatário e se coloca como a candidata da segurança jurídica e da responsabilidade fiscal. O discurso é resultado direto de costuras com pesos-pesados da economia que integram sua campanha, como a ex-diretora do BNDES Elena Landau (coordenadora das privatizações no governo FHC), Edmar Bacha (um dos pais do Plano Real) e José Roberto Mendonça de Barros.

A senadora é a única na corrida presidencial a se comprometer abertamente com temas caros ao mercado financeiro, como a manutenção do teto de gastos. “Não fosse por essa âncora fiscal, você pode ter certeza que o orçamento secreto seria muito maior e que mais graças eleitorais sairiam do controle. Isso impactaria ainda mais a estabilidade econômica, desvalorizando nosso câmbio, aumentando a inflação e obrigando o Banco Central a aumentar mais os juros, o que reduz os investimentos”, argumenta. Simone defende as reformas tributária e administrativa. Por isso mesmo, chamou atenção do PIB nacional, que já lhe declarou apoio.

O suporte do empresariado, no entanto, está longe de ser suficiente para a vitória. A chave para obter bons números nas urnas está nas respostas práticas às maiores preocupações cotidianas da população como emprego, seguridade social, comida, educação e saúde. Nessa seara, a situação de Simone se complica. Não pelo fato de a senadora não estar comprometida com a agenda social, mas porque cerca de 70% da sociedade não sabe quem ela é, nem o que propõe.

O MDB aposta no crescimento após o início da propaganda eleitoral, que começa no próximo dia 26. Para colocá-la no imaginário do eleitorado, a comunicação estruturou a primeira leva de inserções com a apresentação da congressista e sua luta contra a fome, a miséria e a desigualdade social. As peças devem explorar motes como “esperança”, “amor” e “coragem”. “A maior fatia do eleitorado não consegue formular uma opinião sobre ela. Então você precisa fazer um trabalho de construção a partir da biografia, de quem ela é, dos valores que ela defende e encaixar isso na lógica das propostas”, pontua o marqueteiro Felipe Soutello.

A trajetória política de Simone é extensa. Filiada ao MDB há 25 anos, ela já foi deputada estadual, prefeita de Três Lagoas e vice-governadora. No Senado, onde ocupa uma cadeira desde 2014, liderou a Comissão de Constituição e Justiça, o mais significativo colegiado do Congresso, e tornou-se a primeira mulher a concorrer à presidência da Casa em 198 anos. Ganhou projeção nacional no ano passado, quando capitaneou a bancada feminina na CPI da Covid. Ela arrancou de depoentes denúncias que embasaram o relatório final, a exemplo do episódio em que o deputado Luis Miranda afirmou que Bolsonaro teria lhe dito que o esquema de corrupção na compra da vacina indiana Covaxin era “coisa” do líder do governo na Câmara, Ricardo Barros. É com base nesse histórico aguerrido que ela será apresentada como política experiente, mas avessa à demagogia e capaz de solucionar problemas sem platitudes.

PELO PAÍS A senadora Simone Tebet participa da “Caminhada da Esperança” em São Gonçalo (RJ), no dia 25 de junho, dentro de um roteiro de visitas regionais (Crédito:Divulgação)

A senadora tem perfil distinto de Bolsonaro, que se aproxima da população com seu perfil de “homem comum” e antissistema, e de Lula, que cresceu na política como um líder operário. Ela é filha do ex-presidente do Senado Ramez Tebet e reconhece os privilégios que lhe foram garantidos durante a vida. Buscará se conectar com a sociedade de outra forma. Com o slogan “mulher vota em mulher”, quer apostar no empoderamento feminino e, como mãe de duas Marias, demonstrar que entende das aflições de outras matriarcas. Por meio desse discurso, espera impactar parte do eleitorado feminino, que representa 53% do total de pessoas aptas a votar no Brasil. O olhar feminino será transportado, inclusive, para as pautas econômicas.

Simone promete, por exemplo, uma revisão do Auxílio Brasil, versão atualizada do Bolsa Família. A ideia é manter o atual valor de R$ 600 apenas para casas com pessoas em situação de miséria, voltando-se a utilizar os dados do Cadastro Único. Outro programa que tende a ser repaginado é o Casa Verde e Amarela, antigo Minha Casa, Minha Vida. Simone se propõe a ampliar os investimentos na construção de casas de famílias enquadradas na faixa com renda até R$ 1,8 mil. Com a consolidação das propostas-chave, o seu QG espera que ela ultrapasse Ciro Gomes no meio da campanha. O grupo avalia que o presidenciável do PDT enfrenta problemas. Um deles é que não representa “o novo”, uma vez que já se candidatou à Presidência quatro vezes. “O eleitorado ‘nem Lula, nem Bolsonaro’ busca um nome novo na disputa ao Planalto, mas experiente e comprometido com a questão da desigualdade social”, defende um dos estrategistas, sob reserva. Em outra ponta, frisam os aliados, o pedetista tem perdido terreno na esquerda com a acidez dos ataques a Lula, já que deveria ter como principal alvo Bolsonaro.

Se esse cenário se concretizar, a campanha de Simone avalia que ela se mostraria uma alternativa viável e, dessa forma, se cacifaria para um segundo turno. Há muitas dificuldades a superar, inclusive internas. A negociação da chapa foi viabilizada apenas após um racha no PSDB, em que o ex-governador João Doria (o primeiro a propor uma união da terceira via) foi inviabilizado pela direção partidária mesmo após vencer as prévias da legenda. O senador Tasso Jereissati, que participou da manobra para deixar ao PSDB com a posição de vice, não quis participar da nova chapa. A vaga ficou com a senadora Mara Gabrilli, que representa a seção paulista do PSDB, a mais importante do País, e tem ótimas relações com o ex-governador paulista. O Podemos aderiu no dia 5, coligando-se com o MDB, PSDB e Cidadania, após ter apostado em um primeiro momento da candidatura de Sergio Moro. Simone representa a segunda maior chapa em número de partidos, atrás de Lula e à frente de Bolsonaro.

A candidata do MDB ainda terá de superar as dissidências em sua própria legenda. Onze diretórios estaduais do MDB vão apoiar no primeiro turno Lula. A própria convenção do MDB foi judicializada por aliados de Renan Calheiros, que é aliado do petista. O presidente do MDB, Baleia Rossi, minimiza essa defecção e diz que ela se limita a alguns senadores do Nordeste. Ele diz que há pesquisas internas do partido que já apontam Simone com 8% das intenções, podendo chegar a dois dígitos no começo da propaganda eleitoral. O MDB terá no total 2 minutos e 10 segundos, o terceiro maior tempo. Lula terá 3 minutos e 15 segundos, enquanto Bolsonaro vai contar com 2 minutos e 38 segundos. Ciro Gomes, por exemplo, terá apenas 51 segundos.

Para ajudar na pavimentação do caminho, a campanha quer deixar claro que haverá segundo turno. Aliados de Simone frisam que, ainda que Lula esteja à frente nas pesquisas, o PT jamais liquidou a fatura na disputa pela Presidência no primeiro turno. O único a conquistar o feito foi Fernando Henrique Cardoso, que disputava em um cenário econômico e social distinto. Argumentam, ainda, que Bolsonaro tem chances de equilibrar o jogo, com o impacto do pacote de bondades, que incluiu o aumento do Auxílio Brasil, o qual começou a ser pago no último dia 9 (a senadora votou a favor das PECs eleitoreiras do presidente, um ponto que precisará explicar na campanha).

Depois de vencer vários obstáculos para viabilizar sua candidatura, Simone ainda tem um longo caminho pela frente. Na área da comunicação, o marketing divide sua estratégia em três eixos: na TV, estabelecerá a agenda; no rádio, vai buscar transmitir credibilidade; e, nas redes sociais, vai posicionar a senadora em polêmicas. O PIB nacional ajudará com doações. Mas o papel central é da presidenciável, a quem cabe convencer que, além de superar as divisões no centro e a crise dos partidos que emergiram da redemocratização, também é capaz de unificar o País em seu momento mais conturbado em décadas.

CENTRO DEMOCRÁTICO Mara Gabrilli e Simone Tebet oficializam a chapa no último dia 2 (Crédito:Suamy Beydoun)

“Instituições se uniram” Candidata a vice, a senadora Mara Gabrilli diz que ameaças de Bolsonaro acabaram fortalecendo a democracia

A sra. vê um risco de ruptura institucional?
É irônico, mas nossas instituições se uniram e se fortaleceram quando Bolsonaro tentou vulnerabilizá-las com ameaças. Ele pode tentar romper a democracia, mas será em vão.

Como a sra. avalia o deboche do presidente com a Carta aos Brasileiros?
Não me surpreendeu. É mais um indicativo do modus operandi do presidente. Ele já caçoou de vítimas da Covid-19 imitando uma pessoa com falta de oxigênio. O que pode ser mais cruel? Infelizmente, nosso presidente tenta crescer alimentando a discórdia.

A revogação da política armamentista é uma das prioridades?
Sim. O Brasil é campeão em feminicídio. Podemos dizer que quanto mais acesso os homens tem às armas, mais mulheres morrerão, mais vulneráveis as mulheres estarão. Não vem com essa história de que, diante de um homem com uma arma, a mulher se tornará uma heroína e a arrancará das mãos dele ou recorrerá a uma que está na gaveta para atirar. Entre março de 2019 e o mesmo mês de 2021, mais de 400 mil armas de fogo foram compradas e 96% estão registradas em nome de homens. Esse papo de que a política armamentista ajudará as mulheres é falácia.

REACÃO Deputada Tabata Amaral: “é inaceitável que mulheres, da esquerda à direita, sigam sofrendo violência” (Crédito:Pedro Ladeira)

O ALERTA DOS ATAQUES ÀS MULHERES
Violência política de gênero será um dos principais desafios no pleito deste ano

Em meio à pré-campanha, Tebet recorreu ao lema “mulher vota em mulher” com a intenção de captar a atenção do eleitorado feminino. Mesmo com um slogan sem alfinetadas a adversários, a presidenciável sofreu ataques de bolsonaristas nas redes, como fez o coronel do Exército Ricardo Sant’Ana (leia à pág. 30). Essa violência verbal atinge especialmente as mulheres. Na semana passada, a deputada Sâmia Bomfim, que concorre à reeleição, registrou um boletim de ocorrência depois de receber ameaças de morte e estupro. A vereadora trans Duda Salabert passou por uma situação similar após receber e-mails de um grupo de neonazistas. A deputada Tabata Amaral recebeu ofensas ao declarar apoio a Lula. Em meados de maio, Manuela D’Ávila desistiu de concorrer ao Senado por temer pela segurança da família. Os casos evidenciam que a violência política de gênero será um dos principais desafios das autoridades no pleito deste ano. A lei que criminaliza a prática ainda não coíbe com firmeza as agressões. Um levantamento obtido pelo jornal O Globo aponta que o Ministério Público Federal abriu 31 procedimentos para apurar denúncias do tipo, numa média de mais de dois por mês.

“Orçamento secreto é o maior esquema de corrupção da história”
Senadora diz que emendas de relator precisam ser extintas e defende o teto de gastos como forma de garantir as despesas sociais

O governo do PT ficou marcado por escândalos como o Mensalão e o Petrolão, enquanto a gestão Bolsonaro enfraqueceu órgãos de investi- gação e controle. Qual a sua propos- ta para o combate à corrupção?
Os países com o maiores índices de corrupção são aqueles em que o cidadão tem menos confiança na democracia. Fizemos questão de trazer para o nosso lado o partido que tem a cara do combate a maracutaias: o Podemos. Precisamos fortalecer novamente os órgãos de fiscalização e controle. Isso começa por respeitar a lista tríplice para a escolha do PGR, que precisa ter independência e autonomia para fiscalizar, e não me oponho a dar mandato ao diretor-geral da PF. Temos de avançar na legislação.

A sra. tem um discurso avesso ao “toma lá dá cá”. Mas como governar diante de um Congresso tomado pelo Centrão?
É preciso trazer para a base partidos que têm identidade na pauta econômica, de direitos humanos e de políticas públicas e deixar o restante fazer oposição. Essas legendas podem participar do governo, inclusive com ministérios. Mas o presidente jamais pode pagar mesadas, comprar consciências, distribuir dinheiro e muito menos usar orçamento secreto.

A sra. extinguirá o orçamento secreto, se eleita?
Sim. As emendas RP-9 serão extintas. Podemos aumentar um pouquinho, dentro da racionalidade, as emendas parlamentares individuais, que são seguras e transparentes. É uma forma de compartilhar gestão em um limite financeiro razoável. Não tenho dúvidas de que, depois de outubro, o MP e demais órgãos de fiscalização vão escancarar que o orçamento secreto, que é o maior esquema de corrupção da história do Brasil.

A sra. admite ser necessário aprimorar a reforma trabalhista. De que forma?
O problema do desemprego e da informalidade não foi criado pela reforma trabalhista. Mas ela já tem cinco anos e, portanto, pode ser aperfeiçoada. Temos pelo menos 5 milhões de trabalhadores de aplicativos que precisam de alguma segurança Se acontecer alguma coisa, eles precisam de um colchão para uma sobrevida de três meses até retornar ao mercado de trabalho. Podemos melhorar, ainda, a questão do trabalho intermitente, para dizer em que casos específicos ele não seria possível. Outro grande carro-chefe da nossa agenda é a questão dos cursos profissionalizantes para os jovens.

Com o teto desrespeitado, a Economia já estuda permitir que as despesas cresçam acima da inflação. A sra. concorda?
Sou radicalmente contra. Você pode até discutir lá na frente se vai reformular ou não o teto, mas, antes disso, precisa fazer o dever de casa. O que significa isso? Precisamos de uma reforma administrativa focada em um governo digital e na redução de privilégios. Por outro lado, é preciso uma reforma tributária, como a que está no Congresso, para impor o fim da cumulatividade de impostos, com transparência e menos burocracia. Com isso, o Brasil cresce e arrecada mais. O teto é a única garantia jurídica que temos. É o teto que propicia o gasto social, e não o contrário. Ele evita o aumento de despesas eleitoreiras pelo Congresso e obriga o Estado a fazer boas escolhas em investimentos públicos.

A proposta de reforma tributária mais adiantada no Congresso está parada na CCJ. Ela precisa de correções?
A reforma é justa porque tributa menos os produtos e mais os serviços — ou seja, é uma lei Robin Hood. Mas precisamos ver que tipo de serviços podem ser protegidos, como os essenciais. Outro ponto é que, como ela vai tributar no destino, os estados menores, como alguns do Norte, Nordeste e Centro-Oeste, tendem à perda de arrecadação e, com isso, amplia-se a desigualdade. O fundo que estão criando para compensar esses estados pelos próximos anos precisa ser constitucional e não apenas de Desenvolvimento Regional, para termos segurança de que os próximos eleitos cumprirão os repasses.

A economia verde e o desenvolvimento sustentável serão um eixo de governo. Não é meio ambiente ou agronegócio, mas meio ambiente e agronegócio. Os produtos brasileiros vão começar a ser barrados nas prateleiras da Europa se não tivermos o selo necessário. Precisamos garantir que o BNDES financie projetos sustentáveis e que tenham como resultado final geração de emprego e renda.

Qual será o papel do Itamaraty nesse reposicionamento do Brasil em relação ao meio ambiente?
Central. Viramos párias, perdemos a voz, não conquistamos novos espaços. Tudo isso porque temos um presidente que não só não acredita na economia verde como passa uma imagem do Brasil que não é verdadeira. Não consigo entender até hoje como o agro dá sustentação a alguém que atrapalha o negócio. O mundo acha que o agro do Brasil não é ecológico, quando ele é. O que temos são grileiros, mineradores, invasores de áreas públicas, mas que representam “meia dúzia”. A esses, o rigor da lei. Para eles, cadeia. São bandidos no meio de uma maioria absoluta do agro que não vive sem a preservação das suas florestas.

Seu slogan é “mulher vota em mulher”. No governo Bolsonaro, houve retrocesso na pauta feminina?
Todos os governos que passaram não olharam para as mulheres no limite de sua desigualdade. A cara mais pobre do Brasil — e não é de agora — é a de uma mulher negra nordestina. Isso é muito grave. A primeira condição para você ser mais pobre no Brasil é ser mulher, sendo o País majoritariamente feminino. E por quê? Aqui, mulheres com a mesma profissão, atividade e função recebem 20% a menos que um homem. Se for negra, 40% a menos. Aprovamos a igualdade de salário entre homens e mulheres, mas a proposta está parada na Câmara. Então, a primeira atitude de um presidente para demonstrar respeito pelas mulheres deve ser incentivar a chancela do parlamento ao texto.