Para o dramaturgo Milo Rau, arte e política caminham juntas, e sua “Antígona na Amazônia”, adaptada de um dos personagens mais desafiadores do teatro grego, está sendo apresentada no Festival de Avignon, no sul da França, como um “ato de solidariedade” aos trabalhadores rurais sem terra do Brasil.

A peça começou como uma ‘performance’ realizada em abril em uma pequena cidade no estado do Pará, no norte do país, onde o diretor trabalhou na recriação do Massacre de Eldorado dos Carajás, ocorrido 27 anos atrás.

Em 1996, 19 militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) foram mortos pela polícia ao bloquearem a via em protesto por uma reforma agrária.

“No Brasil, houve uma grande controvérsia nas redes sociais, onde fomos acusados de ‘fake news’, apesar de termos recriado um massacre que realmente aconteceu”, disse à AFP o diretor suíço, conhecido por confrontar o teatro com a realidade.

“Parlamentares, generais do Exército e agroindustriais pediram a proibição da obra no Brasil, mas, naquele momento, a obra ainda nem existia!”, lembrou.

Ao longo de sua carreira, Rau, de 46 anos, tem optado pela polêmica e a visceralidade ao contar histórias, e esta não é uma exceção.

– ‘Catártico’ –

A ‘performance’ é uma parte integrante da peça, apresentada em vários países europeus, e encerra uma trilogia baseada em mitos antigos.

Em “Orestes em Mossul”, o dramaturgo transporta a tragédia de Ésquilo para o norte do Iraque, devastado pela guerra e pelas atrocidades do Estado Islâmico (EI).

E em “O Novo Testamento”, refugiados de um acampamento na Itália interpretam personagens bíblicos.

Rau foi declarado persona non grata na Rússia depois de encenar uma versão fictícia do julgamento do grupo feminista Pussy Riot.

Na Bélgica, causou escândalo com a obra “Five Easy Pieces”, na qual sete crianças contavam a história do maior pedófilo do país.

Mas “Antígona na Amazônia” é, para ele, “a que teve maior impacto”. “Foi comovente, catártico e um belo ato de solidariedade mostrar o sofrimento dessas pessoas”, afirmou, referindo-se ao MST.

“Se a realidade é chocante, por que a arte não deveria ser? Se pessoas foram assassinadas na Amazônia, por que não deveríamos mostrá-lo?”, questionou Rau, que acaba de ser nomeado diretor do Festival de Viena.

A reconstituição do massacre, que foi filmada, só poderá ser vista em vídeo.

– Manifesto contra o óleo de palma –

Se a Antígona de Sófocles confronta a razão de Estado de seu tio Creonte, a Antígona amazônica diz não à destruição da maior floresta tropical do mundo.

Na tela, Antígona é interpretada pela ativista indígena Kay Sara. Ao lado dela, um coro composto por sobreviventes do massacre e suas famílias.

Na cena, dois atores belgas e dois brasileiros explicam como a obra foi criada e os desafios éticos que enfrentaram.

Eles interpretam vários personagens da tragédia de Sófocles, na qual Antígona se empenha em dar um sepultamento digno a seu irmão Polinices, considerado traidor de Tebas, desafiando a ordem de seu tio e monarca Creonte.

Rau quis ir além do palco e convocou um boicote a todos os produtos dos compradores da Agropalma, um importante produtor de óleo de palma, assim como de outras grandes empresas agroalimentares.

A “Declaração de 13 de maio”, nome do manifesto, foi assinada, entre outros, pela Nobel de Literatura francesa Annie Ernaux e pelo intelectual americano Noam Chomsky.

“Nossos chocolates e coelhinhos de chocolate, nosso chocolate Kinder e a Nutella em nosso sanduíche matinal estão ligados a violações dos direitos humanos, apropriação de terras e destruição ambiental, seja na América Latina, Ásia ou África”, afirma o documento.

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