Javier Bardem sempre será lembrado pelas façanhas no Oscar. Foi o primeiro ator espanhol a ganhar uma indicação, por “Antes do Anoitecer” (2000), e o primeiro a levar uma estatueta para casa, por “Onde os Fracos Não Têm Vez” (2007). Mesmo sem ter trocado Madrid por Los Angeles, continua requisitado por Hollywood – principalmente quando o papel exige força dramática. É o caso do capitão morto-vivo que ele interpreta em “Piratas do Caribe: A Vingança de Salazar”, que estreia no Brasil dia 25, retomando a franquia que já arrecadou US$ 3,7 bilhões em bilheteria. “Cidadão do mundo”, como ele mesmo diz, Bardem aproveita para explorar o planeta enquanto filma em diversos países. Em entrevista à ISTOÉ, o ator de 48 anos criticou a ascensão dos movimentos nacionalistas e defendeu o projeto The DNA Journey, criado para rastrear origens genéticas e quebrar preconceitos.

“Piratas do Caribe” deu a Johnny Depp a chance de viver um personagem acessível às crianças, com selo Disney, sem perder o lado transgressor. Sua participação segue o mesmo caminho?

Sim. O que Johnny Depp trouxe à franquia continua presente, permitindo que outros atores se aproveitem da porta que ele abriu. Como a Disney já se arriscou deixando Johnny livre na concepção excêntrica e marginal de Jack Sparrow, eles continuaram abertos nesse sentido. Deixaram que eu fizesse do jeito que eu queria.

De que forma o Capitão Salazar se distancia a dos vilões clássicos da Disney?

Como eu queria que ele fosse realmente assustador e perverso, procurei encarná-lo como um touro ferido, uma espécie de poço de raiva. Seus trejeitos físicos e a sua movimentação vêm daí. Na minha imaginação, aquela gosma saindo de sua boca é sangue envenenado, refletindo seu estado emocional. Eu o vejo como um touro que passou por uma experiência dolorosa. Não só fisicamente, mas de orgulho ferido.

“Gosto de sentir que estou me arriscando e, ao mesmo tempo, que sou respeitado por quem me contratou”
“Gosto de sentir que estou me arriscando e, ao mesmo tempo, que sou respeitado por quem me contratou” (Crédito:Disney Enterprises)

O que é aquela baba viscosa preta saindo de sua boca?

Fúria (risos). É uma gosma que a equipe de maquiagem fez para mim. Não sei o que era, apesar de terem me explicado tantas vezes. Achei melhor não saber do que foi feito. Tinha gosto parecido com o do chocolate, mas certamente não era. No set de filmagem, eu chamava aquela gosma de cocô de macaco (risos).

Embora tenha explorado uma imagem sexy em seu início de carreira, na Espanha, você nunca deixou Hollywood aprisioná-lo no papel de “latin lover”. Isso foi proposital?

Não escolho os personagens com o intuito de construir uma determinada imagem. Normalmente sou mais atraído pelos papéis com forte densidade dramática. De preferência, com cores diferentes, capazes de despertar sentimentos desconhecidos e incômodos. Mesmo quando trabalho em blockbusters, como foi o caso em “007 – Operação Skyfall” (2012), preciso que a produção esteja aberta a sugestões criativas. Gosto de sentir que estou me arriscando e, ao mesmo tempo, que sou respeitado por quem me contratou. Posso seguir perfeitamente uma linha definida por eles, mas preciso dar a minha contribuição. Se percebo que o personagem não exige muita preparação, não tem graça.

O fato de Penélope Cruz, sua mulher, ter atuado em “Piratas do Caribe: Navegando em Águas Misteriosas” (2011), pesou na sua decisão de aceitar o papel?

Sim. Visitei Penélope no set de filmagem no Havaí e pude ver como a equipe trabalhava. Anos depois, quando Jerry Bruckheimer (produtor da franquia) me chamou para interpretar Salazar, sabia que eles cuidariam bem de mim – não no sentido de me paparicar, mas me deixando participar da criação do personagem e de seu design.

“La Reina de España”, último filme de Penélope, foi boicotado pelo fato de o diretor, Fernando Trueba, ter dito que nunca se sentia espanhol. Qual sua opinião?

Isso aconteceu porque tiraram do contexto a declaração de Fernando, dada em 2015, ao receber um prêmio honorário (do Instituto de la Cinematografía y de las Artes Audiovisuales), durante o festival de cinema de San Sebastián. No palco, quando disse que não se sentia espanhol, Fernando se declarou um cidadão do mundo. Aqueles que gostam de barreiras ficaram incomodados e usaram isso contra ele. Tudo o que Fernando fez foi se posicionar contra o nacionalismo, um movimento político muito perigoso nos dias de hoje.

Por isso você se solidarizou com Fernando, mesmo sem participar do filme?

Foi principalmente por repudiar esse movimento, que cresce em várias partes do mundo, inclusive na Espanha. Ser nacionalista hoje significa que eu me sinto superior aos outros e que sou contra todos os que são diferentes de mim. O nacionalismo só cria inimigos e levanta muros. Como isso nos levará a um mundo melhor? Para que fechar fronteiras? É preciso entender que fazemos parte do mesmo planeta.Todos nós deveríamos participar do experimento de um site que nos convida a fazer teste de DNA para descobrir nossos ancestrais.

O The DNA Journey?

Sim. Eu acompanho esse experimento (uma iniciativa do www.momondo.com/letsopenourworld) pelo YouTube. Eles testaram o DNA de 67 pessoas, de diferentes nacionalidades, mostrando como temos mais em comum do que imaginamos. É impressionante como, antes do teste, muitos se sentem tão orgulhosos de seus países, demonstrando ar de superioridade pelo sangue que julgam ter. Após o resultado, muitos deles têm o seu orgulho nacionalista desmascarado, o que é um orgulho falso. Percebem que eles são misturas de muitos povos e que todos nós somos o mesmo. Se todos fizessem o teste, descobrindo a sua herança genética, não haveria motivo para tanta separação.

Sua profissão, por proporcionar filmar em vários países, com equipes de várias nacionalidades, contribuiu para a sua visão de mundo?

Sim. “Piratas”, por exemplo, filmei na Austrália. Tive muita sorte por rodar em tantas partes do mundo com diretores com os quais sonhei trabalhar a vida inteira, sem imaginar que um dia isso se tornaria realidade. Como Woody Allen (em “Vicky Cristina Barcelona”, em 2008, quando ele começou a namorar Penélope) e Ridley Scott (em “O Conselheiro do Crime”, em 2013). Mas rodar em inglês é uma dificuldade para mim.

Ainda hoje?

Sempre. Quando falo a minha língua, sinto que o meu DNA aciona experiências emocionais. As palavras para descrever amor, dor, sofrimento ou alegria que saem da minha boca vêm carregadas de sentimentos. Como não fui criado falando inglês, preciso fazer uma espécie de cirurgia na minha mente, onde tento colocar uma emoção em uma palavra, na falta de um significado imediato. Preciso repetir muitas vezes aquilo para que a frase passe a dizer algo para mim. Te amo, por exemplo. Todas as vezes que digo isso eu me lembro das situações anteriores quando disse o mesmo. Já “I love you” não significa nada para mim.

Depois de receber o Oscar de melhor coadjuvante por “Onde os Fracos Não Têm Vez” (2007), você disse não saber o que as suas falas em inglês queriam dizer. Não teve receio de revelar isso, algo que poucos atores admitiriam?

Eu disse porque era verdade. Para mim, não é fácil atuar em língua estrangeira. Talvez a minha declaração tenha sido bem recebida pelo fato de o personagem, Anton Chigurh (um matador que decide vidas humanas jogando cara ou coroa), ser desconectado do resto do mundo. Não dava mesmo para saber o que passava na cabeça dele. Para encarnar alguém tão sem emoção, assisti a muitos documentos sobre tubarões. Descobri que, quando eles estão prestes a atacar, ganham uma espécie de véu nos olhos, o que os torna quase cegos. Foi esse olhar que eu procurei reproduzir. De qualquer forma, o que mais será lembrado daquele personagem será o corte de cabelo terrível (risos).

Salazar foi inspirado em touro. Anton, em tubarão. De onde vem essa ligação que você faz com animais na preparação para os papéis?

Não sei (risos). Só posso adiantar que abordei Pablo Escobar como um hipopótamo (em “Escobar”, filme sobre o traficante colombiano atualmente em pós-produção, dirigido por Fernando León de Aranoa). Eu o escolhi por ser um dos animais mais perigosos de toda a África. Apesar da aparência pacata, quando ele ataca, não há nada que a vítima possa fazer. Pelo que pesquisei, é um dos que mais mata pessoas no continente, mais que qualquer outro animal, até mesmo os leões e os tigres. Não deve ter sido por acaso que o hipopótamo era o animal preferido de Escobar. Ele tinha alguns como bicho de estimação em sua casa.

Escobar gostava de hipopótamos por essa razão?

Imagino que ele tenha detectado esse aspecto do hipopótamo, que o fazia se lembrar de si mesmo. Mas é apenas um palpite que tenho. Por isso, construí o personagem com essa energia: de um cara aparentemente manso, com pressão arterial baixa, mas capaz de arrasar com tudo ao seu redor em um rompante. Espero que eu consiga dar a complexidade que Escobar exige. É um filme que eu mesmo produzo.

E como lida com os filmes malsucedidos de sua carreira, como “The Last Face”, de Sean Penn, vaiado em Cannes no ano passado?

O filme não é redondo. Traz alguns bons momentos, mas também muitas falhas. Embora eu goste de algumas cenas, admito que elas não foram suficientes. O resultado é um filme irregular, pelo qual pagamos um preço alto ao exibi-lo em Cannes, onde são esperadas obras-primas. Só posso dizer que dei o meu melhor. Estou sempre tentando fazer bons filmes. Nem sempre dá certo.

É verdade que você passou temporada vivendo no Brasil, nos anos 1990?

É. Em Búzios, no Rio. Na minha juventude, meu irmão teve um bar lá, chamado A Ruína. Adoro o Brasil, que visitei tantas vezes. Conheço Salvador, Maceió, Recife, Natal, São Paulo e Brasília. A minha temporada ajudando o meu irmão em Búzios durou até o dinheiro acabar. Nós gastávamos tudo o que ganhávamos (risos).