O príncipe João Henrique de Orléans e Bragança, de 64 anos, esteve, em junho, no Museu Nacional para participar da comemoração dos 200 anos da instituição. Dom Joãozinho, como é conhecido, fez um discurso enaltecendo o imenso acervo cultural de 20 milhões de itens deixado para o Brasil pelos seus antepassados. Ele só não podia imaginar que seria um discurso de despedida. Três meses depois tudo virou cinzas. O que sobrou foi um prédio em ruínas e um enorme sentimento de decepção. “Duzentos anos de trabalho, de ideais, de esforços de educadores e pesquisadores, tudo foi queimado”, afirma.
Para o príncipe, a destruição do Museu Nacional é um retrato atual da nossa realidade. “O Brasil está em cinzas e os culpados são toda a classe dirigente das últimas décadas, da esquerda à direita, que não pensa o Brasil como nação, com políticas públicas de longo prazo”, afirma. Ele vê o país em frangalhos, numa profunda crise de representação política e também identifica uma histórica má vontade republicana com o Museu Nacional, visto como um símbolo do passado monárquico. “Uma Nação, um povo, precisa reconhecer a sua identidade, a sua cultura, para poder preparar o futuro. E o nosso passado se queimou nesse desastre”, completa.

Como explicar a tragédia?
As cinzas do Museu Nacional são um retrato da nossa realidade. O Brasil está em cinzas e os culpados são toda a classe dirigente das últimas décadas, da esquerda à direita, que não pensa o Brasil como Nação, com políticas públicas de longo prazo. Enquanto vemos a saúde, a educação, a segurança em escombros, a classe política continua fazendo as leis para si mesma, para se perpetuar no poder com privilégios. Não tinha nem água para apagar o fogo.

O incêndio é uma espécie de colapso civilizatório?
É isso que estou falando. É um colapso da nação, é um colapso do País, não é um colapso do Ministério da Cultura ou do setor cultural. O País tem dinheiro. O que não temos é material humano, gente com capacidade para dirigir o País. É uma situação que só piora e acho que chegamos a um estado de desespero. Era esperado que algo assim acontecesse?
Não, isso é uma coisa que deixou o mundo de boca aberta. E todos fogem da responsabilidade. O ministro da Cultura foge de explicar o que aconteceu, o reitor disse que a verba que vinha para o Museu Nacional era cada vez menor. Gastou-se, no ano passado, cerca de R$ 50 mil por mês com o museu. É o que um deputado ganha. Não pode dar certo esse país.

O senhor esteve lá recentemente?
Estive na comemoração dos 200 anos do museu, dia 6 de junho, e fiz um pequeno discurso dizendo o quanto o Brasil estava orgulhoso de ter uma instituição que dura tanto tempo. O que aconteceu agora é que tudo se queimou. Duzentos anos de trabalho, de ideais, de esforços de educadores e pesquisadores, tudo queimado. É uma crise profunda. Que esse incêndio seja uma razão para uma mudança estrutural.

O que o senhor sentiu quando viu o museu destruído?
Foi mais um sentimento de revolta do que de tristeza. Há uma desconexão total da classe política, que só pensa nos seus interesses momentâneos e ignora os interesses da sociedade. Quando criou o museu, em 1818, Dom João VI queria ter uma referência da identidade brasileira em um país que em breve seria independente e precisava se conhecer como nação. Queria um centro de pesquisa e educação que pudesse reunir as várias e ricas culturas em um país continental. Em seguida, Dom Pedro I continuou o trabalho de enriquecimento do acervo comprando raras múmias egípcias que um mercador de passagem pelo Rio estava vendendo. Dom Pedro II e a imperatriz Teresa Cristina aumentaram a coleção doando quase todos os presentes que ganhavam como chefes de estado de dignitários estrangeiros, como uma importante coleção de peças etruscas trocadas por peças indígenas com o rei Ferdinando II, das Duas Sicílias, irmão de Teresa Cristina. Uma nação precisa reconhecer a sua identidade, a sua cultura, para poder preparar o futuro. Nosso passado se queimou nesse desastre.

A República sempre tratou mal o museu?
A República já começou fazendo nesse prédio o leilão do Paço, com todos os objetos que eram do Estado brasileiro. Dom Pedro II morava lá, mas ele respeitava profundamente o que era privado e o que era público. Então o governo, depois do golpe da República, a primeira coisa que quis fazer foi acabar com toda a memória do governo anterior, do Império. Leiloaram tudo o que tinha dentro do Paço, que se chamava Paço de São Cristóvão. É uma pena que aquele patrimônio público foi dividido, leiloado e virou propriedade privada.

“Quando criou o museu, Dom João VI queria ter uma referência da identidade, um centro de pesquisa e educação que pudesse reunir as várias e ricas culturas de um país continental”

Podemos falar em uma má vontade republicana com o Museu Nacional?
Certamente. Prevaleceu sempre a visão de quem não pensa no Estado. Os grandes homens e as grandes mulheres pensam em um país-nação. Quando você pensa pequeno, como nós estamos vendo no Brasil hoje, não adianta a economia ir bem, fazer um voo de galinha e cair logo depois. Não adianta. A gente nunca vai chegar naquilo que merecemos. Hoje poderíamos ser um país justo socialmente. Não somos. E não é por causa da sociedade brasileira, é por causa da classe política.

Dom Pedro II era um homem zeloso com o dinheiro do Estado?
Muito. Tem uma frase dele que está documentada — ele escrevia muito: “gasto supérfluo é furto à nação”. Isso ele falava há 150 anos. É gasto desnecessário, que poderia ser evitado. Ele respeitava o dinheiro público. Mandavam uma pensão para ele no exílio e ele não aceitava, dizendo que não podia receber dinheiro sem estar servindo ao País. Quando as pessoas me perguntam se eu tenho orgulho disso eu digo “não”. Para mim isso é uma coisa normal. Todos deviam ser assim.

Outros patrimônios culturais estão correndo risco? Fala-se, por exemplo, da Biblioteca Nacional.
Vários museus pegaram fogo no Brasil. É inacreditável tudo isso. Mas é o que eu falo: estamos vendo a falência do Estado brasileiro. Essa conjuntura deveria servir de ponto de mudança e levar aqueles que nos governam a tomar alguma providência. Se não mudar, as coisas só devem piorar. Desculpe estar insistindo nesta parte política, mas a causa de todos esses problemas, não só com o patrimônio histórico, mas também na educação e na saúde, são políticos. Se não houver uma reforma do Estado e do governo, um reforma rígida, que seja uma ruptura com a atual situação, não iremos melhorar a curto prazo. É triste constatar a situação devastadora a que chegamos.

O museu poderá ser reconstruído?
Os dirigentes que falam que vão reconstruir o museu estão mentindo. Eles vão reconstruir o prédio. O patrimônio, o acervo, se perdeu para sempre. E é uma perda incomensurável. Não há palavras para descrever isso. Eram 13 mil metros quadrados de área construída lotados de documentos históricos, gravações de línguas indígenas dos anos 1930, 1940, de línguas que se extinguiram, não existem mais. Imagina a perda disso? Cartas de Dona Leopoldina, a própria Carta de Independência, assinada por ela, estava lá. São documentos que eu gostaria de levar meu neto para ver, mas que não vou mais poder.

Você está disposto a ceder parte de seu próprio acervo na tentativa de reconstruir parcialmente o museu?
Seria um ato simbólico, pois o museu foi criado pela minha família e quero que ele recomece da mesma forma. Falei ao Marcelo Araújo, presidente do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), que quero ceder parte de nosso acervo e reinaugurar o museu com nossa ajuda. Quero ser mais um a contribuir. Espero que outros façam a mesma coisa.