No começo da pandemia se previa que a volta ao normal seria explosiva, como foi há cem anos, na década de 1920, a libertação da população depois da 1ª Guerra Mundial e da Gripe Espanhola. Agora não vai ser bem assim, até porque os tempos não são mais de tanta repressão e não há qualquer necessidade de extravasamentos. Mas a vontade de retomar velhas rotinas e prazeres começa a se impor em vários lugares do mundo onde a vacinação avança rápido. Se no Brasil o número de mortes diárias está em torno de 400, e a situação é crítica por causa do atraso nas medidas de proteção e do início da imunização, em países europeus a abertura é um fato, com as mortes abaixo de uma centena ou beirando zero. O avanço da vacinação dá ânimo para a reativação da indústria do entretenimento, da cultura e do turismo, inclusive de brasileiros, e reaviva comportamentos que ficaram restritos durante um ano e meio, como frequentar casas noturnas ou ir a estádios de futebol. Verificam-se vários indicadores sociais recuperando níveis pré-pandemia, como o uso do transporte público, o aumento do tráfego aéreo e terrestre, da bilheteria dos cinemas, do público de eventos esportivos e das compras presenciais.

A chave da normalidade é a vacinação e é ela que está determinando o ritmo da abertura. Invariavelmente, os lugares onde a volta às antigas rotinas é mais flagrante alcançaram altos índices de imunização com a segunda dose, em torno de 70% — no Brasil apenas 48% da população está imunizada. A chegada do estágio de imunização coletiva se verifica na Inglaterra, Espanha, França, Portugal e Itália, por exemplo, onde, apesar de um ruidoso movimento antivacina, a maior parte da população se rendeu às evidências científicas e constata o enfraquecimento da doença. Há conflitos por causa da exigência do passaporte da saúde, que certifica o recebimento das duas doses e restringe a circulação dos negacionistas, e da apresentação de testes de contágio em situações específicas, principalmente para ingressar em eventos públicos. Existe também um controle rígido das autoridades federais, ao contrário do que acontece no Brasil, para garantir uma transição responsável para o período pós-pandemia. Um clima de libertação cautelosa, com abertura de casas noturnas e retomada dos grandes acontecimentos, deve dar o tom do comportamento daqui para frente.

Os governos consideram que o público precisa de tempo para recuperar a confiança e voltar a frequentar locais públicos com a mesma desenvoltura do passado. Apesar de alguns lugares terem abolido a exigência de uso de máscara, muitos cidadãos ainda preferem utilizá-la para se proteger a si e aos outros. Alguns preferem esperar um pouco mais até sair de casa. A ansiedade com a abertura é maior entre os jovens do que entre os mais velhos, grupos mais suscetíveis a sofrer os piores efeitos da doença. Na Inglaterra, com quase 70% da população vacinada e as mortes diárias em torno de 100, os bares reabriram em horário normal, entre 11 h e 23 horas, e os clientes voltam a ser atendidos também nos balcões, que estavam vetados. Desde julho, o governo autorizou o funcionamento de pubs, restaurantes e salões de cabeleireiros, no que se chamou de “super- sábado”, que permitiu o retorno de 960 mil pessoas aos seus postos de trabalho. A recomendação geral é que as pessoas tenham seu passaporte Covid em mãos e os turistas que visitarem a Inglaterra ou qualquer outro país europeu precisam estar com os papéis em dia. Ainda há receio em relação a aglomerações desnecessárias e grandes festas populares. O governo cancelou a tradicional queima de fogos no fim do ano, que será substituída por um show mais modesto ao ar livre.

Na Espanha, o novo normal começou a ficar mais claro no final de setembro, com a abertura das discotecas. Em cidades como Madri ou Barcelona, a noite passou a ferver e os metrôs voltaram a funcionar 48 horas entre o sábado e o domingo para atender a população boêmia. Locais turísticos como o Museu do Prado, em Madri, ou a igreja Sagrada Família, em Barcelona, exigem a apresentação de vacinação completa na entrada. Um dos símbolos mundiais de sucesso de combate à doença é Portugal, onde o dinamismo na vacinação e a adoção de medidas restritivas no momento oportuno, possibilitaram o estancamento da doença. No dia 1º de outubro, o país entrou na chamada terceira fase do período de desconfinamento e as casas noturnas puderam reabrir as portas depois de 18 meses fechadas. Agora, desde que apresentem o certificado digital de vacinação ou o teste negativo, os clientes podem retomar a diversão. Um dos bares mais quentes de Lisboa, o Village Underground, reabriu as portas no primeiro minuto do dia 1 e voltou a funcionar até as 6 horas da manhã, como antes da pandemia.

Nos Estados Unidos, onde morreram 721 mil pessoas até agora e o número de óbitos diários chega a 2000, por causa da estagnação da vacinação e o avanço negacionista, a abertura é flagrante. Em várias grandes cidades onde o movimento anti-vacina não é tão forte, como Nova York e Califórnia, as rotinas pré-pandemia já foram retomadas. Desde julho vêm sendo realizados shows com dezenas de milhares de pessoas no Central Park, em Nova York, com a flexibilização de uso de máscaras. Na Califórnia, onde a imunização está mais acelerada, também foram retiradas restrições e a imunização se tornou obrigatória para estudantes. Nos Estados Unidos, a cobrança dos certificados das pessoas em bares e restaurantes não é tão vigorosa como em países europeus, entre eles a França e a Espanha. A partir de novembro, os brasileiros poderão voltar a visitar o país normalmente, desde que estejam totalmente vacinados.

A linha dura na exigência de vacinação pode ser verificada na final da Nations League, a copa de seleções da Europa. O jogo entre França e Espanha foi disputado no estádio de San Siro, em Milão, na Itália, com capacidade para receber 76 mil pessoas. Para entrar no estádio e assistir a partida foi exigida a apresentação do certificado de vacinação completo para os maiores de doze anos e do teste negativo para o contágio da doença. Na Itália, 80% da população está vacinada e o número de mortes diárias está em torno de 30. Há também um grande impulso ao turismo histórico, com a abertura e a revitalização de diversos monumentos que estavam fechados. Um dos locais que voltou a receber turistas foi a Via Apia, estrada que começava na cidade e cortava o império em direção ao Sul por 600 quilômetros. A Itália, primeiro país europeu a ser atingido pela pandemia, registrou, nos últimos cinco meses, a maior taxa de crescimento econômico entre os países do G-7. Isso se deve à aplicação de um rigoroso programa de vacinação. Brasileiros ainda dependem do cumprimento de quarentena para entrar no país.

A feira Art Paris 2021, realizada em meados de setembro, disparou a abertura de várias exposições na Cidade Luz, num clima de retomada da normalidade, como a mostra coletiva da Coleção Morozov, na Fundação Louis Vuitton, a exposição de Georgia O’Keeffe, no Centro Georges Pompidou, ou a exposição do cineasta Lars Von Trier, na galeria Perrotin. A exigência do passaporte de vacinação é generalizada e encarada com rigor. O museu D’Orsay reabriu em maio depois de seis meses fechado. A Torre Eiffel também voltou a receber público em julho depois de nove meses, com o uso obrigatório de máscara e limitação de 12,5 mil visitantes por dia, metade da média de público antes da pandemia. Neste sábado, 17, a agência de pesquisas ANRS Emerging Infectious Diseases fará uma noite de testes em duas discotecas em Paris, a Bellevilloise e a Machine Du Moulin Rouge, para avaliar o risco de contágio e transmissão em pessoas vacinadas em locais fechados.

No Brasil, os efeitos nefastos da doença ainda são sentidos duramente, com uma média móvel de mortes alta, o que impede qualquer comemoração. Há grande desnível entre várias regiões por conta da velocidade da vacinação e um número elevado de pessoas que segue as orientações antivacina do governo federal. O que se vê agora em grandes capitais é uma maior flexibilização, mas o País está pelo menos um mês atrasado em relação à Europa. A pandemia cobra a fatura do desleixo permanente de Bolsonaro. Um bom sinal é que a taxa de transmissão do vírus é a mais baixa desde o início da medição, o que deixa vislumbrar um futuro mais auspicioso. Todos querem se livrar dessa doença nefasta. Mas sem cautela e responsabilidade não se recuperará a liberdade. Quem imaginava que os tempos póspandemia seriam de desbunde terá que rever suas posições. A vida volta ao normal aos poucos, cheia de cuidados. Agora, pelo menos, os brasileiros já podem fazer planos de viagem.