Quem negar, nessa altura, que o clima está mudando e que isso acontece por causa da ação humana, está ruim da cabeça ou age de má-fé. A sexta edição do Relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), da ONU, divulgado segunda-feira, 9, confirma, de maneira peremptória, que todas as regiões da Terra estão passando por alterações perturbadoras e que nosso futuro e o das próximas gerações está seriamente ameaçado. A parte mais visível dessa catástrofe se observa, por exemplo, nas geleiras do Ártico, em derretimento contínuo e acelerado, nos incêndios na Itália ou na Grécia, nas enchentes na Alemanha, na seca do Rio Paraguai, a mais severa da história, e na desertificação do semiárido nordestino. O nível dos oceanos subiu de 1,35 milímetros por ano, entre 1901 e 1990, para 3,7 milímetros por ano, entre 2006 e 2018 e se tornou irreversível neste século, de acordo com o IPCC. O Brasil é vítima e algoz dessa destruição programada, que deveria ter sido contida há pelo menos 30 anos, mas foi negligenciada. É o sétimo maior produtor de gases do efeito estufa, segundo números do Observatório do Clima, e tem dado repetidos sinais de irresponsabilidade para o mundo, estimulando queimadas e fazendo pouco para combatê-las. Paga um preço alto sofrendo na pele as consequências severas do descontrole global nas emissões de gás carbônico (CO2).

ENCHENTES Fortes chuvas e inundações devastadoras e atípicas atingiram Alemanha, Bélgica e Holanda e mataram quase 200 pessoas. É um dos maiores desastres naturais na Europa nas últimas décadas

O novo relatório do IPCC é o mais incisivo e contundente de todos os publicados até hoje e diz sem meias palavras que o mundo está mergulhado num ciclo de destruição e que se nada for feito imediatamente o sofrimento de grandes populações será inevitável. “O estudo mostra com clareza que a mudança climática está atingindo todas as pessoas, todos os países e todos os setores da economia”, afirma o cientista Paulo Artaxo, professor do Instituto de Física da USP. “E mostra também que o Brasil vai ter de mudar sua trajetória de desenvolvimento de qualquer forma e instituir políticas públicas para conter a destruição. ”Em linhas gerais, o documento ratifica a necessidade de diminuição das emissões de gases em 7% ao ano a partir de agora para fazê-las cair pela metade em 2030 e chegarem a zero líquido em 2050, com as emissões existentes sendo neutralizadas pela remoção de carbono. Só dessa forma, o aquecimento global poderia ser revertido. Caso não seja, a temperatura média no planeta aumentará além de 1,5° C nas próximas décadas, o que levaria a uma total imprevisibilidade dos fenômenos naturais e a uma ampliação da tragédia que já estamos assistindo. As ações humanas, segundo o IPCC, contribuíram com 1,07°C para o aumento da temperatura média. “O relatório é um alerta vermelho para a humanidade”, disse o secretário-geral da ONU, António Guterres. “Devemos por fim ao carvão e às energias fósseis antes que destruam nosso planeta.”

“O Brasil é hoje, entre as maiores economias do mundo, o único país que ainda atua no negacionismo”, afirma Mauricio Voivodic, diretor executivo do WWF-Brasil. “O País retrocedeu muito no seu papel de liderança no debate climático global e hoje está em posição de isolamento.” Segundo Voivodic, o relatório do IPCC trouxe para o dia-a-dia a preocupação com o risco de emergências climáticas como tempestades, furacões, secas prolongadas e ondas de calor, que se espalham por todo o planeta e não podem mais ser questionadas. As ondas de calor, por exemplo, triplicaram no mundo atual se comparadas ao período 1850-1900 e as variações extremas de temperatura, que eram registradas uma vez por década, agora ocorrem 2,8 vezes no mesmo período. Enquanto os Estados Unidos, a China, a União Europeia e a Rússia assumem compromissos importantes de redução das emissões, o Brasil pratica uma política de destruição programada das florestas que coloca a perder todos os compromissos internacionais assumidos desde a Eco-92. “A política desse governo é aumentar o desmatamento até onde for possível e entregar para grileiros as terras da União e as reservas indígenas”, afirma Artaxo.

O relatório do IPCC servirá de base para as discussões da próxima reunião da 26a Conferência das Partes sobre Mudanças Climáticas da ONU (Cop26), que acontecerá a partir do dia 31 de outubro em Glasgow, na Escócia. Ali, serão definidos os próximos passos para a implementação completa do Acordo de Paris, compromisso para conter o aquecimento global que entrou em vigor em 2016. Ratificado por 147 países, ele ainda está longe de alcançar suas metas. Em Glasgow, os participantes terão oportunidade de reforçar seu empenho no controle de emissões e exigir um maior comprometimento dos signatários do acordo. Espera-se que essa reunião se converta num marco histórico das discussões sobre o clima com a reorientação dos esforços globais para confrontar a crise. Outra expectativa é que os Estados Unidos, agora sob o comando de Joe Biden, retomem o protagonismo no debate. Uma das primeiras decisões de Biden ao tomar posse foi voltar ao Acordo de Paris. Quanto ao Brasil, representado pelo presidente Jair Bolsonaro, chegará ao encontro sem nada de produtivo para mostrar e sem políticas públicas capazes de conter a destruição das florestas, principal contribuição do País para as emissões de CO2.

DESERTIFICAÇÃO Secas prolongadas na região Centro-Oeste reduzem áreas cultiváveis e ameaçam o futuro da produção agrícola; área desertificada no Semiárido já equivale ao território da Inglaterra

Incapaz de assegurar um desenvolvimento menos destrutivo, o País ainda toma decisões na contramão do esforço mundial para conter a poluição. Além do problema dos incêndios cada vez maiores, as perspectivas brasileiras de contenção futura das emissões de gás carbônico pioraram. O motivo é o aumento da produção de termoeletricidade nos próximos anos, exigência para compensar a falta de energia hidrelétrica, comprometida pelo esvaziamento dos reservatórios em todo o País — outra evidente consequência do aquecimento global. A Medida Provisória 1031/2021, que trata da privatização da Eletrobras e tramita no Senado, prevê a contratação de termelétricas que operarão em tempo integral com a queima de combustíveis fósseis. Caso a MP seja aprovada, as emissões de gases do efeito estufa do setor elétrico terão um acréscimo de 13,1 MtCO2e, aumentando 24,6%. Há uma evidente falta de visão estratégica nessa medida. Se optasse por fontes limpas, como a solar ou a eólica, segundo Artaxo, o País também poderia suprir suas deficiências energéticas sem contribuir para o efeito estufa.

O relatório do IPCC destaca vários problemas que o Brasil vêm enfrentando e que tendem a se acentuar devido às mudanças climáticas. Um deles é a desertificação do Semiárido, que já avança para um território equivalente ao da Inglaterra. Outro é o aumento das secas agrícolas em todas as regiões, inclusive no Centro-Oeste, com o encolhimento das áreas cultiváveis. O Rio Paraguai enfrenta uma das piores secas de sua história. Em várias partes do País há previsões pessimistas para a produção de alimentos nas próximas décadas. O relatório da ONU deixa claro que o mundo está à beira do abismo, mas ainda há chance de recuar na destruição e garantir uma vida melhor e mais sustentável para as próximas gerações. “O texto do relatório usa um novo vocabulário mais certeiro e dá inúmeros exemplos concretos da destruição acelerada”, afirma Fabiana Alves, coordenadora das campanhas de Clima e Justiça do Greenpeace. “Todos estão atentos ao recado que os cientistas estão passando: não há mais tempo para ignorar a crise do clima. É preciso agir logo. ”Felizmente, a voz da ciência, apesar de expor a crise, dá a receita explícita do que deve ser feito para garantir a sustentabilidade climática do planeta: controlar as emissões de CO2 o mais rápido possível e de uma vez por todas.