Se a trama de “Emily em Paris” se passasse no Brasil, a série envolveria todos os clichês que povoam nosso país: futebol, caipirinha e passista de escola de samba. Contudo, como bem diz o nome, a série se passa em Paris e quem sentiu o peso da brincadeira foram os franceses. O país de Voltaire não gostou de ver sua cultura ligada ao atraso, à falta de banho, às baguetes e ao hábito de fumar como sinônimo de elegância. Sucesso entre os jovens, a série aborda a trajetória profissional da americana Emily (interpretada por Lily Collins). Especialista em marketing digital, ela é promovida para trabalhar em uma agência de publicidade na capital da França. Criada por Darren Star, responsável pelo sucesso do fenômeno “Sex and The City”, a série mostra a Cidade Luz como um lugar exótico – palco de luxo para as aventuras de uma protagonista adorável.

Apaixonada por roupas de marca e redes sociais, Emily tem cada peça de roupa estudada e copiada por jovens do mundo todo. Marcas como Chanel, Dior, Valentino e Marc Jacobs tem uma nova garota propaganda. E com menos de um mês de sua estreia na plataforma de streaming, o frenesi em torno do universo de Emily não para de crescer. O problema? A forma como os criadores da série retrataram a cultura francesa. Na ficção de Darren Star os franceses são maus e dispostos a acabar com o sucesso de uma simples jovem sonhadora. A grande vilã é a chefe de Emily, uma “parisiense da gema” amargurada e retrógrada que se relaciona com homens casados. A melhor amiga? Uma chinesa milionária que decide ser babá para viver na cidade. A falta de nuances dos personagens fez até com que a crítica da famosa revista Paris Match fosse categórica: “Emily é uma representante do imperialismo americano em sua forma mais irritante”. Isso porque a busca de Emily pelo sucesso profissional faz com que todos ao seu redor pareçam preguiçosos ao se darem ao luxo de uma vida fora do trabalho. Já o professor de língua francesa Philippe Dietmann, parisiense radicado no Brasil, diz que precisou assistir à série depois da pressão de seus alunos, mas não se ofendeu. “É uma visão estereotipada de quem não pisa na França desde 1950”, diz. O que a bela Emily encontra em Paris de tão absurdo?

Fumar já foi algo considerado “chic”, mas faz tempo que isso deixou de ser verdade, mesmo em Paris. A cena em que Emily olha admirada para um grupo de mulheres fumando na saída da academia de ginástica seria possível, mas improvável. Hoje, a legislação local em relação ao fumo é rígida. Emily faz troça também com a legislação trabalhista do país. Quando é demitida pela vilã, ela aprende que é uma burocracia ser dispensada – já que a proteção aos trabalhadores é fortíssima na França – e continua a freqüentar o trabalho como se nada tivesse acontecido. Os estilistas são gays e vazios, os homens são machistas, a fidelidade no casamento é opcional e Emily é o bastião da competência. Apesar de tudo, é impossível não se apaixonar por sua sinceridade, trapalhadas e roupas coloridas caríssimas.

A Paris de Emily realmente não faz jus à cidade atual e parece congelada no tempo. Quem caminha por lá hoje vê um lugar cosmopolita, com forte presença das culturas árabe e africana, herança dos países colonizados pela França. A série não mostra essa diversidade, apresentando em sua maioria pessoas caucasianas, magras e vestidas com roupas de grife da cabeça aos pés. Emily parece ter se mudado para a França sem nunca ter lido uma linha sobre a história do país. Uma questão que chamou a atenção de Dietmann, que passou 40 anos em Paris, foi o fato de ela morar no coração da cidade, não andar de metrô e fazer tudo a pé com os maiores saltos do mundo. Vale lembrar que o seriado é um conto de fadas para os Millennials, pessoas nascidas na virada do século. Se no passado a França levou ao imaginário global mulheres como Brigitte Bardot, Catherine Deneuve e Audrey Tautou, agora chegou a era de Emily e Lily Collins. Darren Star, que idealizou a personagem, justifica o comportamento de Emily: “A primeira coisa que ela vê são os clichês, porque o ponto de vista é dela”. Se em dez episódios com cerca de meia hora cada, Emily virou tópico de conversa entre professores e filósofos, as próximas temporadas devem colocá-la em um pedestal ainda mais difícil de ser ignorado.