Eitan Abramovich

Um dos temas mais polêmicos envolvendo as mulheres, o aborto voltou a ser assunto de debate em vários países. Na quarta-feira 8, o Senado argentino votou o projeto de lei que permitia a interrupção da gravidez até a 14a semana. Três dias antes, o Supremo Tribunal Federal encerrava, em Brasília, um ciclo de audiências públicas destinado a ouvir de entidades médicas, religiosas, jurídicas e movimentos sociais argumentos contra e a favor da descriminalização do aborto no Brasil. No mês passado, mulheres tomaram as ruas no Chile pedindo a liberação para todos os casos e, em maio, na Irlanda, um referendo popular aprovou a legalização naquele país. A ascensão do tema às instâncias de poder mais elevadas dessas nações é mais um resultado do movimento global pela transformação do papel da mulher nas sociedades, com ênfase na luta por maior autonomia, direitos e igualdade. É sob essa ótica que o mundo discute agora o aborto.

GLOBAL Na Argentina (acima), festa quando projeto que liberava o aborto foi aprovado na Câmara. Na Irlanda, referendo permitiu o procedimento (Crédito:Peter Morrison)

Os debates evidenciam, no entanto, que a discussão ainda se encontra mais próxima da polêmica, e não do consenso, em especial em países com fortes raízes religiosas. O que aconteceu na Argentina é exemplo disso. Lá, o aborto é permitido em casos de gestação resultante de estupro ou quando a saúde da mãe está em risco. Em outras circunstâncias, é penalizado com quatro anos de prisão para a mulher e o médico. O projeto de lei, reprovado pelo Senado, havia sido aprovado semanas antes pela Câmara dos Deputados. Porém, as pressões dos grupos contrários derrubaram a iniciativa. Parte dos argumentos levava em conta a posição do Papa Francisco, argentino, que considera o aborto um ato ofensivo à doutrina cristã.

Em países com fortes raízes religiosas, como Brasil e Argentina, as discussões estão mais próximas da polêmica do que do consenso

No Brasil, o aborto é permitido em casos de gravidez depois de estupro, risco para a saúde materna ou quando o feto apresenta anencefalia (má formação caracterizada pela ausência parcial do encéfalo e da calota craniana). A pena para a mãe que provocar o aborto fora dessas condições é de um a três anos de prisão. Para o médico, de um a quatro anos. A discussão levada ao plenário do STF na semana passada foi originada da ação ajuizada pelo Anis, Instituto de Bioética, e pelo PSOL, pedindo a revisão dos artigos 124 e 126 do Código Penal, que criminalizam o procedimento.Na Irlanda, país com grande presença católica, a permissão do aborto de forma irrestrita até a 12a. semana de gravidez e, em caso de risco para a saúde da mãe e de anormalidade fetal até a 23a. semana, só aconteceu depois de décadas. Por isso, o dia 26 de maio foi considerado histórico pelo primeiro-ministro irlandês, Taoiseach Varadkar. Logo em seguida à aprovação, ele tuitou: “Dia memorável. Uma revolução silenciosa aconteceu.”

Argumentos no tribunal

Ao longo de dois dias, 50 representantes de entidades revezaram-se diante da ministra Rosa Weber, relatora do processo, colocando suas posições. Ao todo, 32 apresentaram-se favoráveis à descriminalização, 16, contra e 2 não manifestaram considerações claras. O placar a favor, no entanto, não significa que haja consenso. Várias organizações contrárias à interrupção da gravidez não compareceram. As audiências mostraram que a discussão no Brasil ainda é pautada por visões distintas. Um aspecto levantado por muitos participantes foi a necessidade de entender o aborto como uma questão de saúde pública, e, como tal, merecedora de assistência do Estado e não de punição. Segundo o Ministério da Saúde, uma a cada cinco mulheres já interrompeu a gravidez. Por ano, são um milhão. O aborto causa uma morte a cada dois dias. “Há mais de três décadas a Organização Mundial de Saúde trata o aborto como problema de saúde pública e recomenda que seja tirado da ilegalidade. É a única forma de diminuir o número de abortos e de mortes”, afirma Olímpio Moraes Filho, presidente da Comissão de Pré-Natal da Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia.

Foco na mãe

Na opinião de pessoas que se opõem à liberação, não se pode focar apenas na mãe. “Há vida desde a fecundação. Muitas pessoas que defendem o aborto não querem ver que já há outro ser humano envolvido”, diz a médica Lenise Garcia, do Movimento Nacional da Cidadania pela Vida. Um dos que representou a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, o bispo Dom Ricardo Hoepers, partilha da mesma opinião. “Estamos preocupados em equilibrar a defesa da mulher com a da criança. É preciso entender que se trata também de outro sujeito, que deve ser considerado”, afirma. A pastora luterana Lusmarina Campos tem entendimento diferente. “A ênfase da CNBB é equivocada. Volta-se o olhar para uma pré-pessoa em detrimento de uma pessoa que já existe, que é a mãe. Essa visão é resultado de uma construção histórica de desprezo pela mulher”, diz.
Do lado de fora do STF, a divisão ficou clara com manifestações pró e contra. Entre as favoráveis, muitas vestiam roupas que imitavam o figurino da série The Handmaid´s Tale, onde mulheres são escravizadas e usadas como reprodutoras, e usavam lenço verde, símbolo da luta pela descriminalização. Ainda não há previsão de quando o processo no STF será concluído.

O que está em julgamento
As audiências públicas realizadas no STF são decorrência de ação ajuizada pelo Anis, Instituto de Bioética, em parceria com o Psol, de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental As entidades argumentam que a criminalização do aborto fere os preceitos constitucionais ao colocar em risco a dignidade e a inviolabilidade da vida das mulheres, direitos garantidos pela Constituição
Por isso, pedem ao Ministério Público Federal que reveja, sob a ótica constitucional, os artigos 124 e 126 do Código Penal e descriminalize o aborto até 12 semanas de gestação
As discussões foram encerradas na segunda-feira 6 e não há data para que o tribunal delibere sobre o tema

OPINIÕES Ao longo de dois dias, 50 representantes de entidades médicas,religiosas, jurídicas e ongs revezaram-se no plenário do STF, em Brasília (Crédito:Divulgação)

ENTREVISTA: Olímpio Moraes Filho, ginecologista e obstetra

A criminalização do aborto estigmatiza e amedronta as mulheres”

Por Paula Diniz

Milhares de brasileiras recorrem a métodos perigosos para interromper gestações indesejadas, sem acesso a contraceptivos seguros, sem consciência dos limites e nuances entre sexo consentido e abuso sexual, sem acesso ou sem direito a hospitais, sem dinheiro para clínicas clandestinas confiáveis. Desesperadas, desamparadas, com medo da reação da família e da prisão, muitas chegam ao SUS para tratar as complicações de aborto clandestino. Escondem até dos médicos sua real situação, o que leva a graves sequelas, esterilidade e mortes totalmente evitáveis. Esse é o contexto de uma em cada cinco mulheres de até 40 anos no Brasil, com variações de sofrimento conforme o grau de vulnerabilidade econômica e social de cada uma. É essa trágica situação que precisa de uma resposta urgente, na opinião do ginecologista e obstetra Olímpio Moraes Filho, diretor da Maternidade do Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros, que oferece aborto permitido por lei desde 1996, em Pernambuco. Ele concedeu a seguinte entrevista a ISTOÉ.

Quais os impactos do aborto ilegal para o País?

De acordo com o Ministério da Saúde, procedimentos inseguros de aborto levam a mais de 250 mil hospitalizações no SUS por ano. Isso gera 15 mil complicações, 5 mil casos de quase morte e 203 mortes. Quase uma morte a cada dois dias. Números extremamente altos, com imensos impactos sociais e econômicos, além dos graves danos à vida da mulher. Uma em cada cinco mulheres brasileiras já fez aborto. O Ministério da Saúde estima 1 milhão de abortos induzidos por ano. Desses, ao menos um quarto gera complicações que levam a internações para curetagens pós-abortamentos na rede pública. Muitas mulheres ficam estéreis ou têm a saúde comprometida por toda a vida, além das 251 a 300 que vão a óbito. As complicações mais graves que o abortamento clandestino causa no Brasil são infecções do trato pélvico-genital, hemorragia, insuficiência renal, distúrbios metabólicos, choque e embolia. Isso gera superlotação nos serviços de obstetrícia e emergência obstétrica do SUS com custos humanos e financeiros totalmente evitáveis. As mulheres mais pobres são as mais vitimadas porque não acessam os meios mais seguros que outras mulheres conseguem acessar apesar da ilegalidade.

Como a Organização Mundial da Saúde trata o aborto?

Há mais de três décadas a OMS trata aborto como problema de saúde pública, recomenda que seja tirado da ilegalidade e defende ações que aumentem as possibilidades legais de acesso ao aborto seguro. Só assim ele aparece e começa a ser tratado pelo Estado para que não continue acontecendo. Essa é a única forma efetiva, baseada em evidências, de diminuir o número de abortos e de mortes.

Quanto maior o número de situações em que o aborto é lícito, menor a mortalidade materna. Como isso se dá?

Em países onde houve reformas legais, a mortalidade materna caiu de forma significativa. Quando tratado como problema de saúde pública, a consequência, com o passar do tempo, é a diminuição do número de abortos. Quando vão fazer o aborto com segurança, as mulheres saem do hospital com orientações sobre contraceptivos seguros – algo a que muitas não têm acesso – porque elas não desejam a gravidez. Quando o aborto é considerado crime, elas resolvem na clandestinidade, colocam sua vida em risco e saem sem contraceptivos. Dados mostram que até cinco anos depois elas voltam a fazer aborto.

Por que o aborto ainda é permitido no Brasil somente em casos de estupro, anencefalia e risco de vida da mãe?

O caso do Brasil é parecido com o de países marcados pelo patriarcalismo e pela grande influência das religiões nas políticas públicas – embora declarem-se laicos. É assim em grande parte da América Latina, nos países mulçumanos e teocratas. São todos países atrasados, subdesenvolvidos, que não respeitam os direitos das mulheres e os direitos humanos. Nos países democráticos, com alto índice de desenvolvimento humano, com políticas públicas baseadas em evidências científicas e na racionalidade, o aborto já é caso de saúde pública.

A questão do aborto foi levada ao Supremo Tribunal Federal por uma ação que pede o fim da criminalização do aborto em qualquer situação, desde que realizado até a 12ª semana de gravidez. Por que até essa idade gestacional?

Porque o sistema nervoso do embrião ainda não está formado, não tem pensamento, nem emoções. É mais seguro e mais fácil realizar o procedimento – mais seguro que um parto normal. Também é um tempo satisfatório para a mulher decidir.

Acha legítimo que o aborto seja permitido até 12 semanas em qualquer situação?

Baseado em evidências científicas, minha opinião é que seja descriminalizado em qualquer caso até 12 semanas; em todas as idades gestacionais para todos os casos de risco de morte e malformações incompatíveis com a vida; e até 22 semanas para estupro.

O que o senhor espera após as audiências no STF?

Tenho muito esperança. As falas foram bem fundamentadas. Toda sociedade civil baseada em razões científicas é favorável a mudanças para descriminalizar o abortamento até 12 semanas. Todas as entidades que olham o problema pelo lado racional, como a Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia, a Sociedade Brasileira de Bioética, o Conselho Federal de Psicologia, o Conselho Federal de Antropologia e a Sociedade Brasileira de Progresso à Ciência, por exemplo, concordam com a descriminalização nessas condições.

Como a criminalização do aborto dificulta o atendimento médico?

Mesmo com o sigilo médico, a criminalização causa nas mulheres um grande estigma e medo. Se a mulher não pode falar que fez um aborto ilegal por medo de ser descoberta e presa, ela vai mentir ou não vai contar exatamente o que aconteceu. Sem confiança, não tem como diagnosticar e tratar corretamente.

Mesmo em casos de abuso e violência, muitas se sentem culpadas pela gravidez?

Sim. Muitas mulheres são violentadas e nem imaginam que aquilo foi estupro. Acham normal. A imagem que têm do estupro é de homens armados que as levam para o matagal e as violentam. Não sabem que relação não-consentida, até mesmo com namorado, marido ou amigo, é estupro. Nesses casos, se ela engravidar e desejar abortar, ela pode, em qualquer idade. Até 14 anos o ato sexual é considerado estupro em qualquer caso, mesmo se consentido. Meninas até 18 anos exploradas sexualmente também têm direito ao aborto, inclusive prostitutas até essa idade. Foi uma decisão do Ministério Público Federal de 2002 não muito divulgada. Quando essas mulheres chegam aos hospitais, confiamos na história delas.

Ainda faltam hospitais que façam abortos permitidos por lei?

Sim. Muitas mulheres pobres ainda morrem por falta de acesso ao serviço de aborto seguro, principalmente no interior do Brasil.

Por que isso ocorre?

Por falta de vontade política. Teoricamente, todos os hospitais poderiam oferecer aborto seguro para casos previstos por lei, mas quem está realmente interessado em que essas mulheres vivam?