Fã e cria da ditadura, Jair Bolsonaro prometeu em sua campanha resgatar o “Brasil grande”, conceito caro aos militares e politicamente conveniente para a propaganda populista. Dois anos depois, a economia encolheu, a saúde pública entrou em colapso, os parceiros comerciais foram afastados, a influência internacional evaporou e os brasileiros são hostilizados em vários países pelo mundo afora. O Brasil virou um pária.

NOS EUA Manifestantes protestam diante da Casa Branca contra Bolsonaro, que visitou Trump em março de 2019 (Crédito:Divulgação)

O desastre ocorre em quase todas as áreas. O isolamento começou já em 2019 com a tragédia ambiental patrocinado pelo presidente, que relaxou as regras restritivas e desmontou o controle e fiscalização. As queimadas na Amazônia alarmaram o mundo e afastaram países parceiros. O meio ambiente é um tema central do debate internacional, e o Brasil caminha na contramão do mundo. Escalado para lidar com a enxurrada de notícias negativas da Amazônia, o vice Hamilton Mourão criticou no último Fórum de Davos “a falta de financiamento internacional para atividades sustentáveis no País”. Não citou que o próprio governo inviabilizou fundos bilionários que ajudavam na preservação da floresta. Dias depois, um grupo de 55 instituições financeiras que administra US$ 7 trilhões em ativos lembrou que as ações são insuficientes e a tendência é de piora. O presidente dos EUA, Joe Biden, a chanceler alemã, Angela Merkel, e o presidente francês, Emmanuel Macron, foram ironizados por Bolsonaro por causa do tema. Em jornais e revistas pelo planeta, o presidente virou “Bolsonero”. Não há sinal de retomada da crucial agenda verde, que exigiria uma forte ação governamental. Em lugar disso, o governo optou por uma propaganda inútil em TVs internacionais. O estrago levará muitos anos para ser desfeito.

SUPER-HERÓI O chanceler Ernesto Araújo é caracterizado de 007 na capa da revista digital bolsonarista “A Verdade”: virou meme nas redes e foi ridicularizado por diplomatas brasileiros (Crédito:Divulgação)

O despautério na gestão da pandemia completou o estrago na reputação do País. O Brasil ostenta um dos programas mais ambiciosos de vacinação do planeta, mas o negacionismo e a ação irresponsável do mandatário fez do País um exemplo negativo. Bolsonaro criticou a OMS, atacou medidas de prevenção, sabotou vacinas e defendeu medicamentos sem eficácia. Colocou-se ao lado de líderes ridicularizados no exterior, como Alexander Lukashenko, o bielorrusso que recomendava sauna e vodka contra o coronavírus. O resultado foi trágico. O Brasil é o segundo país em número de vítimas e já se aproxima de 230 mil óbitos. O governo brasileiro é o pior do mundo a lidar com a doença, segundo o centro de estudos australiano Lowy Institute. O Washington Post classificou Bolsonaro como o pior líder global na saúde. A imprensa internacional, como o jornal francês Libération, cobriu o colapso em Manaus e a chamou de “capital mundial da Covid”.

Com a doença fora de controle e a cepa de Manaus ameaçando chegar a outros países, cresce o número de países que restringem viajantes provenientes do Brasil. Só nas últimas semanas, os governos da Espanha, Alemanha, França, Colômbia, Portugal, Israel, Turquia, Itália e Peru proibiram voos partindo do País. Cerca de 100 nações já restringem a entrada. Como consequência, brasileiros são hostilizados em várias regiões. Na Ásia, ganharam o apelido de “corona”. Bolsonaro, que é tratado como um bufão na imprensa, estigmatizou os viajantes fora do País. A personal trainer Sheila Aguiar, que mora há dez anos na Austrália, diz que há deboche dos apresentadores dos noticiários.

DEBOCHE A deputada Alexandra Ocasio-Cortez zombou de Bolsonaro ao se vacinar nos EUA (Crédito:Divulgação)

“Quando mencionam a forma do governo brasileiro lidar com a pandemia, é com desdém, como se fosse uma brincadeira”, diz. Segundo ela, sempre que Bolsonaro aparece é motivo de escárnio. Já o engenheiro Guilherme Carvalho, que mora na Holanda desde 2017, diz que o Brasil não é nem retratado nos noticiários, como se não existisse ou não fosse digno de ser mencionado, apesar da vice-liderança nos óbitos. A mesma sensação de irrelevância é relatada nos EUA pela professora do departamento de estudos em Língua Portuguesa e Espanhola da Universidade de Princeton Andréa de Castro Melloni. Não há mais interesse pelos seus cursos. “Quando o Brasil estava bem, até meados de 2013, a procura era enorme, havia entusiasmo com o País.” Ela afirma que chegou a ter quatro turmas cheias. Atualmente, são apenas duas, uma com oito alunos e a outra, cinco. “O Bolsonaro só nos traz vergonha e isso é muito abordado nas aulas. Os alunos ficam chocados com as atitudes que ele tomou.”

Investimentos em queda

A projeção econômica do País também é cada vez mais questionada. Ficaram famosas duas capas da revista Economist, em 2009 e 2013, que ilustravam o Cristo Redentor decolando e, mais tarde, caindo. Retratavam a exuberância econômica seguida do colapso nos anos petistas. O brilho do País na Olimpíada e na Copa foi substituído pela anemia econômica, que se traduziu na segunda década perdida desde a redemocratização e no aumento da desigualdade. Apesar das previsões megalomaníacas do ministro da Economia, a retomada não aconteceu com Bolsonaro. Já a inflação voltou a preocupar e a dívida pública explodiu, o que também cria desconfiança entre os investidores. O déficit representava 76% do PIB no início de 2020. No final, atingiu 95%. Em janeiro passado, o presidente disse que o Brasil “está quebrado”. E o mundo ouviu. A declaração rodou o planeta em um momento delicado. O investimento direto no País caiu mais de 50% no último ano. A pandemia é responsável por boa parte desse rombo, mas as empresas têm cada vez mais dúvidas sobre a capacidade de o País solucionar os problemas crônicos que prejudicam o ambiente de negócios — contra os quais o presidente e Paulo Guedes não apresentaram até agora respostas concretas. Com o governo sem voz no exterior e força para negociar, o comércio exterior também é impactado. E a crise sanitária piora a situação. A China e outros países apontaram a presença do coronavírus em produtos nacionais e barraram compras, ampliando o risco de um isolamento comercial. A crise de reputação do País não tem afetado apenas a atração de investidores. Para não perder negócios, os empresários nacionais hesitam em associar seus produtos ao Brasil, nota Oliver Stuenkel, professor de Relações Internacionais da FGV-SP. Há o temor de que os consumidores dos países ricos boicotem os produtos “Made in Brazil” por causa das ações antiambientais do governo.

O “soft power”, poder de persuadir outras nações, diminui a olhos vistos. O caos no Ministério das Relações Exteriores, comandado por Ernesto Araújo, é responsável direto por isso. Stuenkel lembra que os diplomatas mais experientes do Itamaraty estão se refugiando em consulados e postos de menor visibilidade para não se associar ao governo. Um funcionário de carreira, sob a condição de anonimato, relata que diplomatas passam por cenas constrangedoras nos organismos internacionais “tendo que defender pontos de vista que pessoalmente consideram absurdos”. Para ele, a situação se agravou com a derrota de Trump, que “extinguiu o único e duvidoso benefício que o Brasil possuía em seu posicionamento diplomático”. Ao mesmo tempo, a capacidade de negociar e influenciar em organismos multilaterais, como a ONU e a Organização Mundial de Comércio (OMC), é prejudicada por um chanceler que ataca o próprio multilateralismo, ou seja, critica os próprios fóruns de entendimento. “O Brasil tem cometido muitos erros básicos”, aponta o especialista da FGV.

Um deles tem relação com o maior parceiro comercial do País. Mesmo liderando o fluxo comercial com o Brasil há dez anos, a China foi seguidamente atacada pela família Bolsonaro. O filho 03, Eduardo, disse que o país tinha interesse na rede 5G para “espionar” o Brasil. O ex-ministro Abraham Weintraub insinuou que o país se beneficiava com a pandemia e ridicularizou a pronúncia chinesa. O STF abriu um inquérito para investigá-lo por crime de racismo. Esses ataques prejudicaram a vital importação de insumos chineses para as vacinas contra a Covid-19. E devem continuar a impactar outras negociações. A diplomacia chinesa é especialmente sensível ao preconceito contra o país. O Brasil até hoje tinha um status especial porque era uma nação amiga e isenta dessas manifestações. Com Bolsonaro, isso mudou. Outro aliado histórico, os EUA, também virou um problema. Joe Biden não mostra interesse em falar com o brasileiro porque o presidente questionou sua eleição, uma interferência indevida em outro país, o que já tinha acontecido com a Argentina.

Dossiê contra Bolsonaro

Biden e membros do governo americano receberam um dossiê que pede o congelamento de acordos e negociações com o Brasil enquanto Bolsonaro estiver no poder. O documento é endossado por mais de cem acadêmicos de dez universidades, incluindo Harvard e Columbia. A subserviência à agenda nacionalista de Donald Trump na OMC também causou atritos com a Índia — outro país estratégico para o fornecimento de vacinas. São conquistas de Ernesto Araújo, que já exaltou a condição de “pária” do País. Ele radicaliza seu discurso para motivar os radicais bolsonaristas, e ignora os efeitos nocivos disso nos círculos diplomáticos. É exatamente o contrário do que se espera para o chefe das relações exteriores. Com um agravante. Durante a ditadura, o Itamaraty conseguiu preservar em alguma medida a imagem do País no exterior. Agora, o Ministério das Relações Exteriores trabalha ativamente para isolar o País. “Parece que há até um certo prazer em colocar o Brasil como vilão e pária no cenário internacional”, espanta-se Stuenkel.

CRISE DE IMAGEM Queimada na Amazônia: descaso ambiental prejudicou a reputação do País (Crédito:Brasil2)

A antidiplomacia de Bolsonaro trouxe um efeito colateral. Levou outras esferas de governo a negociar diretamente com outros países, driblando o Itamaraty. É o caso do governo de São Paulo, que abriu representações comerciais em Dubai e em Xangai. Esta última, como se viu, foi vital para o início da vacinação. Governadores e prefeitos também passaram a tratar diretamente com farmacêuticas no exterior para a compra de imunizantes. Empresas privadas também tentaram superar a inação do Ministério da Saúde. Na última semana, enquanto o titular da pasta, o general Eduardo Pazuello, se asilava em Manaus para tentar esfriar as investigações contra ele por crimes na condução da pandemia, o embaixador chinês se reunia com senadores em Brasília para oferecer mais uma vacina, a da estatal Sinopharm, que poderia ser produzida pelo Instituto Butantan. Ou seja, o representante chinês precisa driblar os canais oficiais para ampliar as negociações com o País. É o retrato do Itamaraty atual. O movimento é bom para ampliar a interlocução com outros países, mas indica que o Brasil tem uma política externa sem consistência. O diálogo precário ou inexistente do chanceler com seus pares fala por si só.

COLAPSO Populares tentam comprar oxigênio em Manaus, em janeiro: repercussão global (Crédito:Bruno Kelly)

A perda de relevância do País é palpável. A FutureBrand, consultoria que avalia a reputação de 75 países com formadores de opinião, colocou o Brasil em 57º lugar no seu ranking de 2020. Caiu 14 posições em seis anos. Vários setores contribuem para essa piora. O aumento da violência e do armamentismo faz Bolsonaro ser comparado a Rodrigo Dunterte, o presidente filipino que defende extermínio. No ano passado, a notória reunião ministerial que causou a demissão de Sergio Moro rodou o mundo e foi chamada de “show de horrores”. O jornal alemão Tagesspiel contou os palavrões, repetidos dezenas de vezes. O 7×1 na imagem do País virou o novo normal. Após a década perdida e a gestão devastadora de Bolsonaro, o Brasil deixou de ser uma prioridade no cenário global. A imagem negativa e a falta de perspectivas abalaram a própria noção de que o País se tornará algum dia uma nação moderna. Parafraseando o escritor Stefan Zweig, autor de um dos textos clássicos de interpretação do Brasil, nunca o Brasil se projetou tanto como o País do futuro — mas esse momento pode nunca chegar.

Colaborou Taísa Szabatura