Causou indignação e perplexidade nos brasileiros e nos mexicanos uma declaração recente do presidente da Argentina, Alberto Fernández, de que os argentinos “vieram dos barcos” enquanto os brasileiros “vieram das selvas” e os mexicanos “vieram dos índios”. A frase foi racista e chocou muita gente que ainda via Fernández como um advogado progressista que lutou nos anos 1980 pela redemocratização argentina.

Fernández citou erradamente o escritor mexicano Octávio Paz como autor da frase. Não importa quem foi o autor. Ao dizê-la, o presidente argentino mostrou uma ignorância brutal sobre o passado do próprio país, forjado nas guerras contra o ditador Juan Manuel de Rosas, entre as províncias do interior e a capital Buenos Aires. A Argentina, na configuração atual, só surgiu em 1854, quando o caudilho José Urquiza foi eleito o primeiro presidente, após a derrota de Rosas na batalha de Monte Caseros – para a qual contribuiu o Brasil. Entre 1811 e 1854, existia a Confederação Argentina: embora uma república, não uma federação. Até 1854, o poder foi exercido por Rosas, que governava como ditador supremo a partir de Buenos Aires, e seu braço-direito Facundo Quiroga, um gaúcho iletrado e violento, que a mando do ditador aterrorizava as províncias.

Contra Rosas e Quiroga, o intelectual Domingo Sarmiento escreveu o livro “Facundo: Civilização e Barbárie”, em 1845. Sarmiento foi presidente a partir de 1868 e lançou as bases da Argentina moderna: era preciso que a “civilização” representada pelas cidades, pela imigração europeia, pelo ensino universal e pelas ferrovias, vencesse a “barbárie”, representada pelos indígenas, pelos gaúchos, pelos homens do campo.

No afã de “civilizar” a Argentina, o porto de Buenos Aires recebeu mais de 4 milhões de imigrantes europeus entre 1870 e 1930. A imensa maioria, italianos e espanhóis, principalmente galegos e andaluzes. Antes, porém, era necessário “civilizar” o campo. Tarefa que o general Roca, presidente argentino na década de 1880, fez através da “Conquista del Desierto”, uma campanha militar brutal que durou anos na Patagônia, nos territórios não ocupados ao sul do Río Negro e do porto de Bahía Blanca. A guerra do deserto significou o extermínio de milhares de indígenas patagônicos, e também a morte de milhares de soldados argentinos negros e mestiços. Em 1860, antes ainda da Guerra do Paraguai – chamada de “guerra da tríplice aliança” na Argentina, 30% dos moradores de Buenos Aires eram negros. Ao mandá-los combater os indígenas na Patagônia, Roca mandou milhares à morte, enquanto matavam os nativos das atuais províncias de Chubut, Río Gallegos, Santa Cruz. Eliminada nas guerras a maior parte da população negra, indígena e mestiça, a elite de Buenos Aires pôde conduzir seu projeto de “embranquecer” o país: não trazendo imigrantes do Norte da Europa, porque estes preferiam ir aos Estados Unidos, mas aqueles que não tiveram escolha: italianos, espanhóis, poloneses, sírios e armênios, que chegavam com o passaporte do Império Otomano – daí serem chamados de “turcos”.

No final, o projeto de “branqueamento” argentino não funcionou. Pelo menos 8% da população atual do país se considera negra, enquanto uma proporção desconhecida, mas certamente numerosa, se considera indígena, principalmente no norte do país, em Salta, Jujuy, Santiago del Estero, nas províncias perto da Bolívia. Faltou ao presidente argentino ler Sarmiento e conhecer um pouco mais da história sangrenta do próprio país, antes de dar declarações preconceituosas sobre os vizinhos. Faltou humanidade e cultura, atributos extremamente raros nos governos latino-americanos da atualidade.