Um silêncio constrangedor marcou o leilão da Alcalá Subastas, em Madri, na Espanha, no último 23 de junho. Divulgado como destaque do dia, o quadro Aparição da Virgem do Pilar ao Apóstolo Santiago e Seus Discípulos, de Francisco de Goya (1746-1828), não teve uma oferta sequer. Ninguém ergueu o braço e os telefones não tocaram. A quietude beirou o vexame. Avaliada em € 2 milhões — cerca de R$ 11 milhões — a obra foi rejeitada até pelo Ministério da Cultura da Espanha, que não manifestou interesse.

O leilão promovido pela casa especializada estava animado. No lote do dia, jarras de vidro do século 18 e talheres de prata por € 6 mil causaram alvoroço. No entanto, o Goya era o trunfo na categoria “pintura antiga”. Segundo especialistas, o quadro de 1775 representa a devoção da nação espanhola diante de sua padroeira. O artista espanhol foi membro da Academia de Belas Artes de Madri e “pintor da câmara do rei”, trabalhando como retratista da família real. Ele tem obras avaliadas em € 6 milhões, como O 3 de Maio de 1808. Por isso, o fato de um de seus trabalhos ter sido esnobado causou estranheza.

A situação piora quando se narra a situação do leiloeiro da Alcalá Subastas. Ele exibiu o quadro com toda a pompa e avisou que o lance inicial seria de € 2 milhões. Advertiu ainda que a obra não poderia sair do país. Entre os participantes, físicos e virtuais, ninguém demonstrou interesse. Nenhuma pergunta foi feita e o martelo foi batido.

ACERVO Obras de Goya expostas no Masp, em São Paulo: Retrato de Fernando VII, Retrato da Condessa de Casa Flores e Retrato do Cardeal Don Luis Maria de Borbon y Vallabriga

Valor de acordo

Uma representante do Ministério da Cultura da Espanha estava presente e chegou a arrematar objetos no valor de € 90 mil euros. Esperava-se que ela ao menos esboçasse vontade com o Goya, o que não ocorreu. À imprensa, ela garantiu que não houve desprezo: o que ocorreu foi que nenhum museu apresentou a solicitação de compra. Entre os profissionais do setor, o fato de Goya ter sido menosprezado em um leilão repercutiu. Danielle Schütz, autora do livro Manual Básico de Conservação e Restauro, aponta um empecilho que pode ter intimidado os lances.


EMPECILHO Danielle Schütz: para a restauradora, valor não estava em desacordo com os preços do mercado (Crédito:Divulgação)

“Em função de ter sido declarada ‘bem de interesse cultural’, a Aparição da Virgem do Pilar está impedida de ultrapassar as fronteiras da Espanha. Esse fato pode ter inibido investidores que pretendiam movimentar seus ativos no mercado mundial de arte”, avalia. Para ela, a alta cifra pedida não chegou a ser considerada um fator negativo. “O valor não parece estar em desacordo com a grandiosidade do trabalho de Goya, visto que o preço de suas obras, independentemente da fase em que o artista as produziu, costuma girar na casa de alguns milhões de euros”, analisa.

É o mesmo pensamento de Marcos Rizolli, professor do Centro de Educação, Filosofia e Teologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie. “Essa é uma pintura realizada durante a primeira maturidade do artista. A imagem se refere a um Goya ainda identificado com a mais naturalista e impregnada das alegorias, presa num estilo um tanto barroco. O valor segue a ‘lógica ilógica’ do mercado de arte internacional. Pelas regras expressas, a obra deveria permanecer em território espanhol. Essa cláusula certamente afastou os colecionadores e, principalmente, os investidores internacionais”, afirma.

“O fato de a obra ter que permanecer na Espanha afastou investidores internacionais e colecionadores” Marcos Rizolli, professor do Mackenzie

Para Danielle, não fosse esse porém, até mesmo colecionadores do Brasil poderiam se interessar pela compra: “A pintura de Goya agregaria valor aos acervos de qualquer museu do País. Tratando-se de lugares públicos, o preço de venda pode não se adequar à realidade dos recursos disponíveis. Desse modo, a referida obra teria mais chances em algum dos museus privados do País, como o Masp, que, entre as décadas de 1940 e 1950, gastou cerca de US$ 6 milhões em suas obras de arte”. Até o fechamento desta edição, a Alcalá Subastas não havia informado a data de um novo leilão.