Jair Bolsonaro construiu sua carreira política fazendo declarações irresponsáveis. Na Presidência, dedicou-se durante quatro anos a desafiar as instituições. Por isso, até a semana passada, ele enfrentava quatro inquéritos no STF. Sua situação já era delicada e a contenção que se autoimpôs após perder a eleição presidencial, seguida de um exílio improvisado na Flórida, visava justamente a evitar uma ordem de prisão que poderia vir a qualquer momento se ele fosse associado a qualquer iniciativa golpista. Essa fronteira pode ter sido superada.

A condição jurídica piorou dramaticamente após milhares de apoiadores assaltarem as sedes dos três Poderes, no ataque mais grave da história às instituições. Por conta disso, o ex-presidente também é investigado como um dos autores intelectuais das ações de vandalismo no dia 8. E, após a descoberta de uma minuta golpista na casa de seu ex-ministro da Justiça, o cerco se fecha também no TSE, que deve torná-lo inelegível. Para a democracia, o importante é que o grande mentor dos atos terroristas às instituições seja definitivamente responsabilizado e as ameaças, contidas.

NOS EUA Bolsonaro disse a apoiadores no dia 16 que “lamentava” os ataques no dia 8. Foib“inacre­ditável” (Crédito:Divulgação)

O PL avalia que Bolsonaro deve pagar, ainda em 2023, a conta pela selvageria as sedes dos Poderes. Para o partido, a inelegibilidade do ex-presidente será decretada no inquérito que investiga os atos criminosos de 8 de janeiro, em trâmite no STF, ou na ação de investigação judicial eleitoral (Aije) que mira o capitão por abuso de poder pela difusão de fake news sobre as urnas eletrônicas em uma reunião com embaixadores, em julho passado. Os dois processos foram turbinados com a inclusão da minuta encontrada pela PF na casa de Anderson Torres, um dos auxiliares mais próximos do ex-presidente. Esse documento é o esboço de uma medida que previa estabelecer o estado de defesa no TSE revertendo a eleição de Lula, abrindo investigações de ministros do STF e transferindo na prática ao Ministério da Defesa a condução do processo eleitoral. Ou seja, um mapa para o golpe. As investigações vão determinar de quem partiu a ideia dessa farsa jurídica que imita de forma canhestra os Atos Institucionais da ditadura. A minuta é altamente comprometedora para o ex-ministro da Justiça e pode complicar de forma definitiva Bolsonaro, se for possível comprovar que ele tinha conhecimento dela ou que participou da sua elaboração.

PRESO Anderson Torres, ex-ministro da Justiça bolsonarista, embarca na Flórida no dia 14 para se entregar às autoridades (Crédito:Divulgação)

Ex-ministro do TSE, Fernando Neves pontua que a papelada, de fato, tem potencial para atingir o ex-presidente. “O fato de a minuta estar na casa do ex-ministro da Justiça e a interpretação dela no contexto geral de investidas contra a democracia dão ao documento algum valor. O crime tem todo um itinerário: a cogitação, os atos preparatórios e a execução, que pode resultar na consumação ou ficar na tentativa. Escrever um decreto sem assinar ou levá-lo adiante não é crime, mas em um cenário geral isso pode ser encarado como ato preparatório, servindo de indício de outro crime, como a tentativa de abolir o Estado Democrático de Direito”, afirma. Neves, no entanto, pondera ser preciso avançar na apuração para ligar o ex-presidente à minuta. “Você tem de provar a ciência, concordância ou autoria.”

Integrantes do partido do capitão acrescentam que o fato de extremistas terem repetido “ipsis literis” falas de Bolsonaro em meio ao quebra-quebra no Palácio do Planalto, Supremo e Congresso reforça a condição dele de “autor intelectual” da barbárie, ainda que não tenha dado ordem direta para a invasão. É de amplo conhecimento a incitação de Bolsonaro aos radicais. Já no lançamento da sua candidatura na Convenção do PL, em julho passado, o capitão classificou os apoiadores como um “exército” e os instigou a jurarem “dar a vida pela liberdade”. No dia 9 de novembro, ele disse a simpatizantes: “Quem decide o meu futuro, para onde eu vou, são vocês. Quem decide para onde vão as Forças Armadas são vocês”. Era, obviamente, um incentivo para que seus apoiadores agissem – o que acabaram fazendo no dia 8 de janeiro. Na última “live” como mandatário, no dia 30 de dezembro, mais uma vez este estimulou os radicais e declarou: “Acreditem vocês, como foi difícil ficar dois meses calado, trabalhando para buscar alternativas”.

UNIDOS Ministros do STF debatem no dia 12 a recuperação do prédio da Corte (Crédito:CARLOS ALVES MOURA)

Uma dessas “alternativas” pode ter sido a minuta golpista descoberta com seu ex-ministro da Justiça. Comprovando o elo do capitão com os atos golpistas, os terroristas também ecoaram no dia 8 os argumentos que ele repetiu sistematicamente na campanha: que o TSE e o STF eram suspeitos e as eleições foram “roubadas”. São as mesmas mensagens que Bolsonaro veiculou dois dias depois do ataque à Praça dos Três Poderes, sua primeira manifestação após o episódio, em um vídeo nas redes sociais. A peça mostrava um procurador do Mato Grosso do Sul afirmando que “Lula não foi eleito pelo povo, ele foi escolhido e eleito pelo STF e TSE”. Provavelmente para evitar as implicações legais, o vídeo foi apagado poucas horas depois.

Aliados do PL frisam, no entanto, que a situação piorou depois disso. No clã Bolsonaro, a postagem desse vídeo é colocada na conta de Carlos, o 02, que administra as mídias sociais do pai. De qualquer forma, afirmam liberais, a publicação soou como um “sinal” para novos atos criminosos.

A expectativa, em geral, é de que a inelegibilidade tramite mais rápido no TSE. Entre ministros, entende-se que o andamento do processo do STF será mais lento porque, com a condenação na seara criminal pela mais alta Corte, a prisão seria imediata. Há um consenso, portanto, de que o inquérito precisa ser conduzido no Supremo com cautela e amplo espaço ao contraditório para não transformar o ex-presidente em mártir. No TSE, tramitam ao todo 16 ações que podem afastar Bolsonaro de disputar eleições pelos próximos oito anos. Todas estão sob a relatoria do corregedor-geral da Justiça Eleitoral, ministro Benedito Gonçalves. A mais próxima de uma decisão, que tem origem em uma denúncia do PDT, refere-se ao evento com os embaixadores. E o trâmite pode ser célere. É bom que seja assim, já que em novembro as Aijes sairão das mãos de Gonçalves, que tem agido de maneira firme junto com o presidente da Corte, Alexandre de Moraes, e passarão a ser responsabilidade de Raul Araújo, ministro que tem agido de forma favorável a Bolsonaro.

Dois dias depois do “Capitólio brasileiro”, o ex-chefe do Executivo afirmou à CNN que voltaria ao Brasil antes do final de janeiro por questões de saúde, uma vez que chegou a ser internado nos EUA. Mas, com o cerco se fechando, o ex-presidente repensa a estratégia. Bolsonaro cogita permanecer por pelo menos mais um mês em solo norte-americano dando palestras remuneradas sobre política, segundo noticiou a “Folha de S.Paulo” e confirmou a ISTOÉ. Os termos do retorno dele ao Brasil devem ser tratados presencialmente entre Flávio Bolsonaro e Valdemar Costa Neto. O 01, que acompanhou o pai na Flórida, volta ao País nesta segunda-feira. O senador tende a enfrentar duras cobranças do manda-chuva do PL, que chegou a se encrencar na Justiça pelos caprichos do capitão, que exigiu uma contestação sobre o resultado das urnas, e, agora, está a ver navios.

“Foi uma tentativa de golpe. Não sei se ele mandou. Sei que tem culpa, porque passou quatro anos instigando o povo a ter ódio” Luiz Inácio Lula da Silva, presidente (Crédito:MAURO PIMENTEL)

As bancadas do PL na Câmara e no Senado estão insatisfeitas com a postura do capitão. Deputados ouvidos por ISTOÉ reclamam do “exílio” de Bolsonaro enquanto eles próprios correm o risco de perder os mandatos por terem atuado nas trincheiras do ex-presidente. “Bolsonaro tem provado que não é um líder”, diz um parlamentar, sob reserva. Não bastasse o sumiço do capitão, a troca do número do celular dele, sem que compartilhasse o novo contato com ninguém, irritou — e muito — os congressistas que o apoiaram. No partido, com a iminente inelegibilidade do capitão, já são até aventados nomes para a Presidência em 2026. Michelle seria o nome adequado para manter vivo o bolsonarismo, enquanto Romeu Zema é encarado como a melhor opção para uma “direita moderada”.

Enquanto a legenda do Centrão pensa no cenário futuro, Bolsonaro e seus aliados próximos se preocupam com os desdobramentos nos próximos dias. A declaração pública do advogado de Anderson Torres, Rodrigo Roca, de que o ex-ministro não fechará um acordo de colaboração premiada “porque não há o que ser delatado” não acalmou os bolsonaristas. A notícia de que Torres chegou a receber atendimento psicológico dentro da prisão leva aliados do ex-presidente a acreditarem que é uma questão de tempo até que ele ceda, sobretudo porque já foi abandonado pelo clã Bolsonaro. Teria se tornado um “homem-bomba”. O ex-presidente e os filhos não saíram em defesa do antigo nome forte da Justiça, que já foi jogado à cova dos leões pelo próprio governador do Distrito Federal, que o havia nomeado para a Secretaria de Segurança distrital. Ibaneis Rocha frisou em seu depoimento à PF que Anderson Torres sequer o avisou que deixaria o País no final de semana fatídico.

REFORMA Equipe troca na quarta-feira, 18, os vidros destruídos, no dia 8, do Salão Negro do Congresso (Crédito:Pedro Fran)

Outra grande preocupação do bolsonarismo paira sobre a iminente quebra dos sigilos de Torres. Mesmo integrantes do STF pontuam que Alexandre de Moraes já decretou medidas cautelares em casos muito menos rumorosos. Lembram, por exemplo, os mandados de busca e apreensão expedidos contra empresários pouco antes do Sete de Setembro de 2022 — na ocasião, a decisão do ministro baseou-se somente em uma reportagem que mostrava conversas nas quais eles se posicionaram de forma favorável a um golpe de Estado, no caso da vitória de Lula. O cerco a Torres pode de fato atingir Bolsonaro, que deve ser enquadrado em dois artigos do Código Penal. Um deles (artigo 359-L) estabelece pena de quatro a oito anos de reclusão para quem “tentar, com o emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais”. Outro (artigo 359-M) pune com penas de 4 até 12 anos quem tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído.

AUTOR Alan Diego dos Santos se entregou no Mato Grosso: bomba no Aeroporto de Brasília e invasão da PF (Crédito:Divulgação)

É uma perspectiva sombria para o ex-chefe do Executivo. Além do afastamento de seus colegas do PL, ele também pode perder aliados como o presidente da Câmara, Arthur Lira, que não vinculou-o diretamente aos acontecimentos, mas afirmou: “Cada um responde pelo que faz. Meu CPF é um, o CPF do ex-presidente é outro”. Outra defecção nas fileiras bolsonaristas pode ser o Procurador-Geral da República, Augusto Aras. O titular da PGR tem se esforçado para se aproximar do governo Lula e defendeu publicamente no dia 16 que Bolsonaro fosse investigado pelos ataques em Brasília. Depois dos atos terroristas, Aras tem sofrido pressão de procuradores e também de membros do STF para dar vazão às investigações contra o ex-chefe do Executivo, o que sempre impediu com grande diligência. Já como uma reação, a PGR denunciou na última semana 39 invasores. Aras estimou que esse número chegaria a 200 até o final da próxima semana. No STF, o ministro Alexandre de Moraes previa terminar brevemente a análise dos casos dos 1.459 presos em Brasília. Até a quinta-feira, 354 tiveram suas prisões confirmadas e 220 foram liberados com medidas cautelares. A repercussão internacional levou o Parlamento Europeu a aprovar uma resolução condenando os ataques em Brasília, na quinta-feira. O texto responsabiliza Bolsonaro.

“Cada um responde pelo que faz. Meu CPF é um, o CPF do ex-presidente é outro” Arthur Lira, presidente da Câmara (Crédito:SERGIO LIMA)

As investigações prosseguem. Um dos suspeitos de participar da tentativa de atentado com bomba perto do Aeroporto de Brasília, em 24 de dezembro, se entregou em Comodoro (MT). Alan Diego dos Santos foi identificado pela Polícia Civil do DF como comparsa do bolsonarista George Washignton de Oliveira Sousa, já preso. Santos também é apontado como um dos suspeitos de participar da invasão da sede da PF, em 12 de dezembro. Outros vândalos notórios ainda estão sendo identificados e procurados. É o caso do bolsonarista que foi flagrado por uma câmera destruindo o relógio histórico de dom João VI, no Palácio do Planalto.

Para a Justiça, o desafio é imenso. Há um volume de trabalho sem precedentes para chegar a todos os que atentaram contra o Estado de Direito, e o medo é que as dificuldades acabem levando à impunidade. Mais importante, é preciso responsabilizar o grande arquiteto do golpismo, Bolsonaro, que inspirou todos eles. Fora da seara legal, resta também o cerco político. Lula tem subido o tom. Em encontro com centrais sindicais na última quarta-feira, o petista apontou o dedo para o ex-mandatário: “O que houve foi uma tentativa de golpe por gente preparada. Não sei se o Bolsonaro mandou. O que eu sei é que ele tem culpa, porque passou quatro anos instigando o povo a ter ódio, mentindo para a sociedade brasileira”. Um dos maiores instrumentos para responsabilizá-lo é a CPI prevista para ser instalada logo que os novos parlamentares assumam seus mandatos, em fevereiro. Mas o próprio Lula combate a ideia, alegado que uma CPI neste momento “pode causar muita confusão”. A explicação plausível é que o PT não quer perder o controle sobre os rumos da investigação e teme tirar o foco das realizações da nova administração, dando vitrine para congressistas de fora da legenda. Além disso, pode ser conveniente manter Bolsonaro politicamente vivo como uma ameaça à sociedade. Trata-se de um cálculo político pequeno que não ajuda o País a acertar contas com sua história. Apenas quando o ex-mandatário for punido de fato por seus ataques contra a democracia a sociedade poderá voltar a mirar o futuro.

PROCURADO Um dos principais terroristas foi flagrado por uma câmara do Planalto destruindo o relógio trazido por Dom João VI, em 1808 (Crédito:Divulgação)