Quando o historiador pesquisa em arquivos, constata que certos fatos, como crimes célebres, têm vida própria. Boa parte da vitalidade póstuma desse tipo de ocorrência se deve à crônica policial, que o eterniza. Primeiro, os repórteres narram o fato, convertendo-o em notícia e em folhetim diário ou semanal. Depois, este vira caso célebre até às vezes atingir o status de literatura. O crime, paradoxalmente, dá vida a um momento histórico. Apesar disso, ele parece fazer parte mais do jornalismo e das memórias do que da historiografia. A memória é vaga para captar os detalhes e a história despreza o fato secundário.

“Poucos historiadores se preocupam com crime”, diz o historiador, jurista e cientista social paulistano Boris Fausto à ISTOÉ. “Devo ser exceção.”

Fausto, de 88 anos, é autor de livros de história do Brasil modelares para compreender a formação do Brasil. Entre eles figuram “Revolução de 1930: historiografia e história”, de 1970, “Crime e cotidiano: A Criminalidade em São Paulo (1880-1924)”, de 1970, e “Fazer a América: a imigração em massa para a América”, 1999. Ao mesmo tempo, em outras obras, refletiu sobre
a função da memória no exercício da história.

“Exploro a alma da cidade de minha infância nos assassinatos célebres. Não são nada perto da carnificina geral de hoje” Boris Fausto, escritor

Salto no tempo

Ele acaba de lançar um livro que concilia suas três obsessões: história, assassinato e lembranças infantojuvenis. Estas se debruçam na transformação do Brasil com a imigração e a revolução industrial em São Paulo. Em “O Crime da Galeria de Cristal e os dois Crimes da Mala, São Paulo, 1908-1928” (Companhia das Letras), dá sequência à invenção uma modalidade inédita de narrativa. Ele a iniciou em 2009, com “O Crime do Restaurante Chinês: Carnaval, futebol e justiça na São Paulo dos anos 30”. Nele, dá um salto ao fundo de uma cidade que fortalece as instituições e a cultura, mas onde irrompem casos criminais excêntricos, como a morte misteriosa de um cozinheiro chinês dentro de seu restaurante em 1938.

Assine nossa newsletter:

Inscreva-se nas nossas newsletters e receba as principais notícias do dia em seu e-mail

Com tramas assim, Fausto forjou um gênero literário no qual conjuga o espírito da novela policial, a análise histórica e a crônica de saudade. Ele pode ser definido como novela memorialística. Fausto prefere “suspense proustiano”, porque coloca
a memória e a nostalgia no fulcro dos fatos narrados, à maneira do escritor francês Marcel Proust. Meio ao modo deste, tenta captar formas de sensibilidade esquecidas na São Paulo nos anos 1930. Com esse método, Boris Fausto vagueia pelo Centro da capital em busca de vestígios dos locais em que aconteceram crimes célebres ou obscuros. “A arquitetura da área central não mudou”, diz. “Os prédios e os traçados das ruas estão lá. Até o início dos anos 1950, era a cidade dos imigrantes que conheci tão bem.” Quando criança, corria pelo Largo da Café. Perto. Na rua São Bento, ficava o escritório do pai, Simon Fausto, comerciante de café. “Quando ando por lá, é como se eu voltasse ao passado: teatros, restaurantes, cinemas, cafés e leiterias como a Leiteria Pereira, onde saboreávamos um tipo de sorvete que não existe mais. Enxergo tudo como se fosse ontem.”

Sangue antigo

Além da experiência impregnada de lembranças, Fausto se apodera dos tempos que não viveu por meio de documentos e da memória de outros. Ele estende o conhecimento na direção de um passado que não testemunhou. O resultado é que ele passa a viver as sensações de épocas remotas: é tomado pela “nostalgia”: “Eu tinha 8 anos quando aconteceu o Crime do Restaurante Chinês e me lembro bem dele. Não era nascido quando se deram os crimes da Galeria de Cristal e os dois Crimes da Mala. Mas tenho ouvido falar deles desde criança.”

Ele partiu para investigar os três últimos crimes como se voltasse ao escritório do pai. “Os três casos contam com mulheres como protagonistas num momento em que a cidade se expande e a imprensa passa a fazer parte do cotidiano com coberturas folhetinescas de fatos escabrosos”, diz. “O ambiente se situa na ‘belle époque’ da Pauliceia, marcada pelas mudanças tecnológicas, culturais e de costumes. A vida da capital paulista acelerou com a introdução das novas invenções.” Em outros tempos, seria impensável, por exemplo, uma mulher se vingar do amante, cortando-lhe a garganta com a ajuda do marido, e ainda ser inocentada, como aconteceu com a professora Albertina Barbosa, a assassina da Galeria de Cristal.

“Meu fascínio pelo assunto vem de uma mistura de impulso acadêmico com o pessoal”, explica. “Sinto atração pela nova história, que aborda temas antes tidos por irrelevantes, como o crime. Sou seduzido por histórias de crime, cultivada, até porque leio os mestres das histórias de detetive. E me comovo toda vez que faço a imersão na São Paulo do passado.”

Segundo ele, o crime é a fagulha que faz uma época voltar a brilhar e ressuscitar. Além disso, o crime é o modo pelo qual a memória ganha sentido e se transforma em matéria permanente. “Continuo no rastro do sangue antigo”, diz. “A tarefa é infinita.”

 


Siga a IstoÉ no Google News e receba alertas sobre as principais notícias