Amyr Klink entrou para a história da navegação mundial ao chegar a Salvador em 18 de setembro de 1984, tornando-se a primeira pessoa a atravessar o Atlântico sozinho, em um barco a remo. Em seguida, conquistou o Brasil com o livro-relato Cem Dias entre Céu e Mar, primeiro de vários best-sellers nas últimas décadas.Klink se tornou uma espécie de ídolo nacional, alternando mais viagens ousadas, algumas em barcos que ele mesmo construiu, e um enorme sucesso como palestrante. A genética falou forte e uma de suas três filhas, Tamara, 26 anos, já faz regatas transoceânicas e publicou seu primeiro livro com essas aventuras. Aos 67 anos, Klink continua direcionando sua vida para o mar, ampliando uma marina que construiu em Paraty e que abriga cerca de 300 barcos. Poucas pessoas podem ter mais conhecimento para avaliar o atual estágio das condições dos mares do planeta, e Klink é enfático: a coisa está piorando, com o aquecimento global criando ventos fortes onde antes eles não existiam, dificultando a navegação. Ele também é um forte crítico da pífia atuação do governo na preservação da cultura dos pescadores e jangadeiros. “Isso está morrendo”, diz o navegador.

Muita gente o considera uma espécie de herói brasileiro, aquele que conseguiu proezas mundiais. Basta ver o que as pessoas comentam sobre você nas redes para sentir essa admiração. Você tem noção do quanto gostam do Amyr Klink?
Não. Acho engraçados os comentários. Eu não fico acompanhando. Puxa, me comparam ao Ayrton Senna. Ele tinha recursos ilimitados, só se preocupava em fazer o que ele melhor sabia fazer. Eu vivi num mundo totalmente diferente, de restrições técnicas e financeiras. Quando eu fiz o barco Paratii II, ao longo de oito anos, era um projeto muito além de minhas possibilidades financeiras. Era um projeto de milhões e eu não tinha dinheiro para trocar um pneu. Nesse meio tempo, acompanhei vários amigos que iniciaram projetos de muitos milhões. E eles nunca conseguiram terminá-los. O mundo náutico enfeitiça um pouco as pessoas.

É possível imaginar como seria realizar com recursos tecnológicos de hoje a travessia do Atlântico, em 1984?
A tecnologia de um lado ajuda, mas de outro lado contamina. Você tem informações tão precisas hoje que se as tivesse na época, talvez eu tivesse desistido da viagem. Eu tenho um grupo de amigos que há mais de 50 anos se encontra às segundas-feiras para comer feijão. Nem sei por que a história do feijão, mas o objetivo é trocar conversa. É um grupo engraçado, tem aqueles que são “durango kid”, e tem caras que foram sócios do Jorge Paulo Lemann, alguns que montaram impérios fora do Brasil. E na mesa não tem nenhuma diferença entre nós. Vamos lá para contar histórias. Desde moleque eu sempre fiz viagens um pouco incomuns, desde os 15 anos. Fui parar no Líbano, depois fui para a Escandinávia sem dinheiro. Uma vez entrei num caminhão e fui parar em Belém, fiz toda a Belém-Brasília com colegas de escola. Fomos parar em Manaus, aí o barco naufragou, ficamos duas semanas parados no rio Madeira, entrávamos em bares onde os pistoleiros deixavam as armas todas em cima de uma mesa no canto. Nas segundas-feiras, sempre tinha uma história engraçada para contar. Se eu fizesse a viagem de 1984 com a tecnologia de hoje, eu chegaria a Salvador com um milhão de seguidores, mas na segunda-feira não teria nada para contar. Todo mundo já teria visto tudo. Isso aconteceu agora com a minha filha. De repente, tinha milhões de pessoas acompanhando a Tamara no Atlântico, mas quando ela chegou a Paraty não tinha nada. Todo mundo tinha lido os textos e visto as fotos na internet. Procuro não me contaminar com esse excesso de conectividade.

Mas a tecnologia traz segurança?
Há dez anos eu vou para a Antártida com um negocinho desses, um celular. Eu tenho equipamento de rádio no barco porque é uma obrigação legal ter, mas atualmente nem sei como é que liga. A gente faz tudo no celular, eu tenho a cartografia do mundo inteiro aqui. Para você ter uma ideia, para navegar em alguns lugares das Falklands você precisa ter umas 20 cartas náuticas. Autoridades exigem que você mostre esses documentos. Algumas dessas cartas custam 25 libras, são caras. Na rede, você tem toda a cartografia do planeta por R$ 49,90. E se você quiser atualizar os dados, tem outro aplicativo que faz isso por um dólar ao mês. A gente monitorou a Tamara com um desses aqui [mostra um GPS rastreador, pouco maior do que um celular], que custa uns 250 dólares. A gente monitora a viagem minuto a minuto, em qualquer lugar do planeta, sem custo. Bacana por um lado, mas às vezes… Olha, eu estava conversando com minha mulher à noite e, ao monitar a Tamara, a gente viu que ela tinha mudado de direção, aí você já pensa que ela caiu no mar, que alguma coisa aconteceu ao barco. Ficamos ali por horas, de madrugada, até ela voltar à rota, com uma velocidade normal. Veio o alívio.

Você acompanhou e se adaptou a todas as mudanças tecnológicas na navegação?
Acho que eu tive um privilégio. Como se eu fosse um piloto de corrida que teve a chance de competir em carros a vapor e, de repente, está usando esses carros elétricos ou esses Fórmula 1 de última geração. Vivi uma grande transformação. Na primeira viagem à Antártida, eu usava sextante, passava quatro horas planejando rota com calculadora científica, HP. Em muito pouco tempo houve uma transformação incrível. Mas o legal de estar no mar é que, quando você está sozinho num barco, no meio do oceano, você está vivendo a mesma experiência de um navegador do século XVI, não tem muita diferença. Existem transformações nos mares, mas a paisagem é a mesma, são os mesmos níveis de medo, de ansiedade, de contemplação, de surpresa. Sim, diminuiu muito o número de avistamento de baleias. Eu reli há pouco sobre o naufrágio do Essex, que deu origem ao romance Moby Dick. Em 1830, mais ou menos, uma ilhazinha de nada nos Estados Unidos, cidadezinha de 6.000 habitantes, tinha 840 navios a vela caçando não baleias, mas só cachalotes. Por causa do óleo valioso do bicho. Os homens ficavam no mar em temporadas de dois a três anos. Daí você pode imaginar quantas baleias estavam na água.

De um modo geral, o que mudou no mar?
As dificuldades continuam lá. O que eu pude perceber, nos últimos 20 ou 30 anos, é que o mar está piorando, com grande chance de ser reflexo do aquecimento global, com ventos muito mais fortes. Não existia registro de ventos nos canais da Terra do Fogo, na península Antártica, acima de 80, 90 nós, e hoje é comum chegar a 120 nós. Há pouco tempo, nas Falklands, tivemos um dia de 110 nós, ou seja, quase 200 km/h! Não existia isso. As quedas brutais de pressão barométrica são notáveis, sem precedentes. Dá um pouquinho mais de medo, mesmo com os recursos modernos. No mar, você consegue desviar a rota no máximo uns 300 km em 24 horas, então você não consegue escapar do fenômeno climático adverso.

O Brasil tem uma costa enorme para preservar e explorar. Os governos têm mostrado preocupação com esse imenso recurso natural?
Não. E é um problema intelecutal, não apenas político. Infelizmente, a nossa classe intelectual é muito pobre, extremamente ignorante. Quando você pega os principais intelectuais brasileiros, 95% não falam quatro idiomas. O ruim é que culturalmente a gente valoriza movimentos de fora. Fala-se muito em defender o que é brasileiro, mas não se faz quase nada. No mundo náutico, quando você vê o que acontece em países da Escandinávia, ou mesmo no Canadá, nos Emirados Árabes, existe uma preocupação muito grande com esse saber local.

Há quem se dedique a esse resgate e preservação?
Sim, como o Luiz Phelipe Andrès, que morreu em 2021. Ele montou um estaleiro-escola no Sítio do Tamancão, no Maranhão. Tem o Lauro Barcellos, do Museu Oceanográfico, que fundou o Museu do Mar, em Rio Grande. É um estaleiro-escola, para ensinar a meninas e meninos técnicas que estavam morrendo. E o Dalmo Vieira Filho, de Santa Catarina, com quem montamos o Museu Nacional do Mar. Eu tive e tenho ótima relação com esses ícones. Fui para o Maranhão com eles. O prefeito não sabia nada, o maldito governador também não. Eu não gosto de ter nenhum contato físico com políticos de espécie alguma.

Você já trabalhou com o governo?
Apenas com o Iphan, para revitalizar embarcações brasileiras antigas, para recuperar esse conhecimento. No Brasil, a gente valoriza o funk pancadão, mas não sabe o que é uma jangada de píuba ou uma biana, típica do Maranhão. Ninguém reconhece. A regata João das Botas, na Bahia, que tinha os braços mais bonito do mundo, sumiu.

Seus livros poderiam ter sido best-sellers simplesmente pela força do relato, por aquilo que você vivenciou. Mas você escreve muito bem, é um consenso entre os críticos literários. Pode falar sobre suas influências?
Olha, fiquei muito feliz com a Tamara, não porque ela seja uma navegadora destemida, malucona, mas porque ela tem uma habilidade literária. Ela diz que a família não influenciou em nada, mas ela nasceu no meio dos livros. Eu tenho uma casa grande e alguns imóveis nos quais tenho só livros. Não tem moveis incríveis, Sergio Rodrigues, são só livros. Todas as paredes estão forradas de livros. E eu descobri o mar através dos livros. Desde pequeno, fui influenciado pelos meus pais, gostava de ler. Mas, quando escrevi Cem Dias entre Céu e Mar, não tinha experiência de escrever textos muitos longos. Estudei literatura francesa por cinco anos e fui reprovado duas vezes. Então enchi o saco dos clássicos franceses, peguei bode. Mas era amigo da Cora, gerente da Livraria Francesa, no centro de São Paulo. E essa mulher me apresentou uma coleção francesa de relatos de aventuras marítimas. Todos impressionantemente bem escritos. Collection Mer et Aventure, deve ter mais de 200 títulos. Eu li todos.

O que vai ocupar Amyr Klink em 2023?
Projetos em Paraty. Tem um projeto de casas flutuantes, que desenvolvi, muito resistentes, com plataformas de concreto que podem ter várias formas, com junções intercambiáveis e a energia elétrica vindo por baixo do mar. Fiz assim minha marina, com predominância de veleiros e de pessoas que vivem no mar. Deu supercerto, são quase 300 barcos, estou ampliando. Um lugar muito bonito, estou entusiasmado. Há também viagens que fazemos há muitos anos. A gente monta um grupo de brasileiros e organiza uma viagem para uma região polar, num barco fretado. No ano passado foram duas para a Islândia e uma para o Ártico. Chegamos a levar 80 pessoas por vez, que pagam cada uma de US$ 15 mil a US$ 20 mil. Um cruzeiro diferente, não tem spa, sala de ginástica, não tem show do Roberto, mas uma carga de conteúdo histórico, geográfico, científico e cultural muito forte. As pessoas saem em botes infláveis durante o dia, e à noite acompanham palestras de exploradores ou especialistas. Até eu falo umas coisas.